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CAPÍTULO 2 CRÍTICA AOS MEIOS CONSENSUAIS SOB A PERSPECTIVA DO

3.6. Como os meios consensuais lidam com a disparidade de poder entre as partes?

3.6.1. Devido processo legal mínimo

Daniela Monteiro Gabbay afirma que a lógica adversarial do processo judicial é diferente da dinâmica não adversarial da mediação – ou de outros meios consensuais. No entanto, isso não significa que ela é desprovida de forma.

Dentro dessa dinâmica, considerada como autônoma em relação ao processo judicial, há um mínimo de procedimento a ser observado. O devido processo legal na mediação – embora exista – deve ser colocado em termos mínimos, sem gerar uma procedimentalização ou formalização excessiva que vá contra a sua flexibilidade. A normatização do procedimento de mediação tem como base as garantias processuais constitucionais e a teoria geral do processo461. Essa proposta permitiria que o devido processo legal observado nos meios consensuais não comprometesse a flexibilidade procedimental, sujeita ao consenso das partes, à sua voluntariedade e à possibilidade que qualquer uma delas encerre a qualquer tempo a mediação. A autora reconhece, todavia, que quanto mais os meios consensuais se expandem no Judiciário, mais se confrontam com questões ligadas ao devido processo legal462.

461 GABBAY, Daniela Monteiro. Mediação e Judiciário, cit., p. 33-34. 462 GABBAY, Daniela Monteiro. Mediação e Judiciário, cit., p. 34.

Essas ideias são inspiradas no texto de Richard Reuben, “Constitutional Gravity”, no qual o autor propõe uma teoria única para os meios alternativos de solução de disputas e os meios judiciais, todos orbitando em torno da Constituição. Para ele, uma teoria da resolução de conflitos deve abranger os métodos públicos e igualmente aqueles a que se chama de “ADRs privadas”, em razão, de um lado, da natureza dos valores constitucionais envolvidos no processo e, de outro, do valor coercitivo dado às soluções trazidas pelas ADR, como na arbitragem ou nos acordos homologados em juízo. Uma abordagem unificada, argumenta o autor, preserva as virtudes de vários procedimentos alternativos enquanto reconhece os seus limites constitucionais463.

Nesse sentido, a observação de Daniela Monteiro Gabbay de que deve haver maior preocupação com o devido processo legal quanto mais os meios consensuais se aproximarem do Judiciário se afigura correta, pois se o meio consensual é desenvolvido no âmbito desse Poder, com apoio ou fomento deste, então os objetivos de oferecer justiça procedimental devem ser estritamente observados.

No entanto, a intensidade do devido processo legal não deve se medir apenas pela proximidade com o Judiciário. Há situações distantes dele em que as preocupações com devido processo devem estar intensamente presentes em razão da disparidade de poder entre as partes. Explicamos: há procedimentos que se apresentam como mediações, são autenticamente consensuais, e possuem seus elementos essenciais, como a presença de um terceiro imparcial, mas o poder decisório está predominantemente nas mãos de uma das partes, dotada de maior poderio econômico e de mobilização de recursos para sua defesa.

Assim, em que pese haver a realização de sessões de mediação, grande parte do processo decisório ocorrerá dentro, por exemplo, da estrutura de uma das partes. Um exemplo disso é o Programa de Indenização 447, instituído para reparação dos familiares das vítimas do acidente aéreo ocorrido em 30 de maio de 2009, no voo 447 da empresa aérea Air France.

O programa envolvia mediações extrajudiciais entre os familiares das vítimas, a empresa aérea e as empresas de seguro envolvidas, e era normatizado por um estatuto que previa um procedimento mediado para obtenção das indenizações. O procedimento envolvia obtenção de documentação pelas mediadoras, repasse da documentação para as empresas, avaliação da legitimidade do pleito, e até sessões com possibilidade de produção probatória caso a empresa entendesse necessário464.

463 REUBEN, Richard. Constitutional Gravity: A Unitary Theory for Alternative Dispute Resolution and Public

Civil Justice. cit., p. 1046-1047.

Até pela necessidade de isonomia entre os diversos pleiteantes das indenizações, não há dúvidas de que o procedimento deveria efetivamente ser mais formalizado e atentar de maneira mais robusta aos imperativos de devido processo. Afinal, havia prova a ser analisada pela Air France. Como relata Fernanda Tartuce, uma das mediadoras que atuou no caso, muitos aspectos no procedimento propiciavam o fornecimento de informação adequada aos familiares das vítimas e a possibilidade de reação diante de possíveis situações que lhe pudessem gerar algum prejuízo, bem como a possibilidade de participação na definição do resultado465.

Assim, na primeira reunião presencial com os familiares, era feita uma explicação detalhada do funcionamento do programa, e os familiares eram ativamente escutados sobre a dinâmica familiar antes do acidente e podiam sanar dúvidas sobre a composição da indenização.

O ingresso no programa se dava mediante o preenchimento de um formulário e a apresentação de documentação que embasasse o direito à indenização, a qual era recebida pelas mediadoras e repassada às empresas466.

Contudo, caso as empresas entendessem faltar algum documento relevante, a informação era transmitida pela observadora, que fixava prazo razoável para sua entrega. Cabia, então, à empresa avaliar se o pleiteante possuía legitimidade para recebimento da indenização. A resposta deveria ser comunicada formalmente, sendo antes possibilitada a solicitação de informações complementares e até a realização de audiência de esclarecimentos467.

Remanescendo qualquer dúvida, cabia formulação de consulta ao Conselho Consultivo, com emissão de parecer não vinculante e que possibilitava às empresas a reconsideração de sua avaliação468.

Havia ainda uma preocupação com a isonomia e com a aplicação de critérios objetivos. A isonomia era assegurada pela igualdade de aplicação dos critérios de indenização, que eram conhecidos pelos envolvidos antes de ingressar no programa e fixados a partir dos parâmetros estabelecidos pela legislação vigente e aplicados de maneira predominante pelos Tribunais469.

No procedimento descrito pela autora, é possível identificar elementos de devido processo legal: mediação por terceiro imparcial, informação adequada, possibilidade de reação e possibilidade de participação. Assim, pode-se cogitar a ideia de um devido processo mínimo, que parte dos princípios constitucionais, mesmo que não desça a detalhes procedimentais mais específicos.

465 TARTUCE, Fernanda. Mediação extrajudicial e indenização por acidente aéreo, cit., p. 40 e ss. 466 TARTUCE, Fernanda. Mediação extrajudicial e indenização por acidente aéreo, cit., p. 43. 467 TARTUCE, Fernanda. Mediação extrajudicial e indenização por acidente aéreo, cit., p. 43. 468 TARTUCE, Fernanda. Mediação extrajudicial e indenização por acidente aéreo, cit., p. 43. 469 TARTUCE, Fernanda. Mediação extrajudicial e indenização por acidente aéreo, cit., p. 37.

O devido processo legal mínimo é um primeiro aporte teórico que pode ser utilizado para a superar as desigualdades entre as partes no processo.

Contudo, mesmo nesse exemplo narrado, é possível problematizar o fato de que a decisão, ao final, caberia à empresa aérea, sendo essa uma posição de vantagem que lhe permite influir de forma mais intensa na definição dos parâmetros para indenização. Fernanda Tartuce relata que a experiência contou com a participação do Ministério da Justiça, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da associação de familiares das vítimas do acidente aéreo, o que levanta uma hipótese de que a presença desses entes, que não estão na mesma posição de desvantagem dos familiares, pode ter assegurado uma participação maior do ponto de vista dos lesados na definição dos critérios. No entanto, cumpre reconhecer que não há dados específicos sobre isso.

Assim, parece-nos que, em casos como este, em que uma grande quantidade de pessoas é abrangida pelo programa, a oferta de um devido processo legal mínimo a cada mediando individualmente pode não ser suficiente para superar desníveis entre os familiares das vítimas – na posição de consumidores – e a companhia aérea.

Assim, é importante refletir se o atual estado da arte da mediação é suficiente para assegurar paridade de armas e garantir efetiva participação da parte mais fraca na tomada de decisões.

De toda forma, é preciso analisar o ferramental do qual os meios consensuais já dispõem para lidar com o problema da desigualdade, e entender se ele é suficiente para lidar com os problemas até agora levantados.