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Acesso à Justiça: garantia e direito social

CAPÍTULO 1 MEIOS CONSENSUAIS, ACESSO À JUSTIÇA E LITIGIOSIDADE

1.3. Acesso à Justiça: garantia e direito social

acepção: são meios de solução de conflitos que, em tese, propiciam soluções com maior agilidade, menores custos e de forma mais adequada – um mote repetido com bastante frequência na literatura sobre o tema37.

Em realidade, desde que desembarcou no Brasil a obra “Accesso à Justiça”, de Mauro Cappelletti e Bryan Garth, na qual se preconizava uma “terceira onda” de acesso à justiça, com enfoque na pluralidade de instituições e procedimentos, dentre os quais o emprego de meios consensuais e de procedimentos informais38, que os termos “acesso à justiça” e “meios consensuais” passaram a ser relacionados nos mais diferentes contextos.

Todavia, cumpre buscar algumas delimitações importantes para os termos: de que acesso à justiça se falava então, e de que acesso à justiça se fala agora? Como os meios consensuais se relacionam com as diferentes concepções de acesso à justiça? Nesse sentido, precisamos entender os contextos em que ambos os termos foram e são hoje empregados.

A depender da acepção que se adote do que é “acesso à justiça”, os meios consensuais estão sendo empregados para ampliação ou para redução desse acesso?

A pergunta que se sucede a essa primeira é: que tipo de justiça os meios consensuais se propõem a entregar?

Uma justiça procedimental, rápida, eficiente, dotado de garantias processuais suficientes para prevenir o viés do agente intermediador envolvido? Uma justiça individualizada, de soluções construídas com respeito aos desejos e interesses individuais das partes envolvidas, que resulte em soluções únicas e não replicáveis para outros casos? Ou a entrega de resultados isonômicos, que produzam decisões públicas e replicáveis, que auxiliem na tutela de outros casos semelhantes, e reflitam as normas de direito positivo?

Antes de responder a tais perguntas, faz-se importante, em um primeiro momento, atualizar a concepção de acesso à justiça. Em seguida, analisar quais os discursos subjacentes à associação entre meios consensuais e acesso à justiça. Estas definições serão relevantes para orientar as discussões sobre as críticas dirigidas aos meios consensuais.

1.3. Acesso à Justiça: garantia e direito social.

37 Kazuo Watanabe coloca os meios consensuais em uma perspectiva de “acesso à ordem jurídica justa” de forma

efetividade, tempestiva e adequada (WATANABE, Kazuo. Política pública do Poder Judiciário nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Revista de Processo, n. 195, p. 381-389, maio/2011, p. 385).

38 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça (trad. Ellen Gracie Northfleet). Porto Alegre: SAFe,

A presente tese analisa o tema dos meios consensuais sob a perspectiva do acesso à justiça, Todavia, é necessário se perguntar o que significa falar em acesso à justiça no Brasil de hoje, uma vez que o termo é identificado de forma bastante difusa na literatura, é empregado com significados variados nas últimas décadas, e, inclusive, tem sido utilizado para embasar discursos contraditórios.

É adequado situar a presente tese nos estudos voltados ao potencial transformativo do Direito, cujos estudos analisam as leis em si, a sua aplicação na prática, os meios de solução de conflito, e os mecanismos de solução de disputas a partir de sua capacidade de promover mudanças sociais redistributivas e promotoras de igualdade social ou de diminuição das desigualdades39.

Nesse passo, é mais preciso afirmar que a tese se insere em uma pauta de resgate do acesso do acesso à justiça como preocupação central das políticas públicas e do interesse acadêmico, no sentido de inserção da população desprovida de acesso ao sistema de justiça, de melhoria desse acesso, e de redistribuição deste mesmo acesso entre os diversos atores da sociedade.

Assim, ancoramos a presente tese nas ideias de Marc Galanter sobre as possibilidades de redistribuição do processo civil e a disparidade de poder entre as partes40.

Embora Marc Galanter, um dos próprios precursores dessa linha de estudos, hoje se mostre mais céticos sobre a capacidade do Direito em promover mudança social41, estudos no Brasil têm se afiliado a esta linha. Tais estudos demandam atenção, alertando e demonstrado que o acesso à justiça, sob a perspectiva distributiva, vinha gradativamente se tornando um “non-issue”, mantido em segundo plano na pauta política e acadêmica, a qual dominada por uma concepção economicista da justiça, pautada por representantes do Judiciário enquanto

39 Marc Galanter expressamente situa o estudo “Why the haves come out ahead?”, importante referencial teórico

desta tese, como um ensaio especulativo sobre o potencial do sistema jurídico ser utilizado como meio de transformação redistributiva, isto é, equalizadora (GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 43).

40 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 43

41 Ver: GALANTER, Marc et al. Talking about the limits of legal change: an interview with Marc Galanter.

Revista de Estudos Empíricos em Direito, São Paulo, v. 1, n. 2, jul. 2014, p. 200-211, p. 205. Em introdução ao

artigo “Why ‘The Haves’ Come Out Ahead?” publicada em 2014, 40 anos após a publicação do artigo original, Galanter apresenta sua visão atual das coisas, entre o ceticismo sobre os limites da mudança legal a necessidade de se continuar buscando caminhos para tanto, ao afirmar: “O domínio jurídico proporciona um solo excepcionalmente fértil para a ilusão, então, não é de se surpreender que nosso entendimento sobre o funcionamento do direito seja constantemente desviado por pensamentos esperançosos. Não obstante meu ceticismo, sou recorrentemente seduzido pela ideia de que o direito pode não apenas regrar nossas obrigações, mas também ajudar a transformá-las em mais próximas de nossos sonhos de justiça. Então eu continuo adepto da máxima “seja um pessimista do intelecto, mas um otimista na vontade (..)” (GALANTER, Marc. Por que “quem

corporação e por representantes da academia e da advocacia ligados a uma visão do sistema de justiça das camadas mais altas42.

Maria Cecília de Araújo Asperti chega a questionar se os estudos relativos a acesso à justiça e sua relação com técnicas processuais seriam descontextualizados ou ultrapassados, em razão do grande volume de demandas em trâmite perante o Poder Judiciário, em que se observa processos demais. Mas, conclui que a pauta está longe de estar superada, pois o excesso de processos não reflete necessariamente mais acesso à justiça ou participação efetiva de diferentes grupos e indivíduos no sistema de justiça. Indica, isto sim, a necessidade de investigação sobre o perfil dessa litigiosidade, especialmente do ponto de vista de quem está utilizando o sistema de justiça43.

Daniela Monteiro Gabbay, Maria Cecília Asperti e Susana Henriques da Costa, abordam a questão da pauta de pesquisa em Direito a partir da concepção de que acesso à justiça deve ser visto como um direito social, mas com o reconhecimento de que, como todo direito desse tipo, está sujeito à escassez dos recursos para promovê-lo, e, como consequência, também sujeito a decisões distributivas44.

Essa visão já era vislumbrada por alguns processualistas quando da promulgação da Constituição de 198845 e deve ser resgatada exatamente porque se verifica hoje uma distribuição desigual do acesso.

É o que adverte também Marc Galanter, ao afirmar que embora o acesso à justiça tenha se iniciado com um viés de ampliação do reconhecimento de direitos para aqueles que não possuíam acesso, as escolhas sobre quais direitos serão perseguidos e sobre a alocação de recursos para tanto são, de fato, decisão distributiva “política” 46.

42 GABBAY, Daniela Monteiro; ASPERTI, Maria Cecília; COSTA, Susana Henriques da. Are the Haves getting

even more ahead than ever? Reflections on the political choices concerning access to justice in Brazil in the

search of a new agenda. FGV Direito SP Research Paper Series n. 158. 2017. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2998779>, acesso em 05.03.2019.

43 ASPERTI, Maria Cecilia de Araújo. Acesso à justiça e técnicas de julgamento de casos repetitivos. Tese

(doutorado). São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2018, p. 287.

44 GABBAY, Daniela Monteiro; ASPERTI, Maria Cecília; COSTA, Susana Henriques da. Are the Haves Getting

Even More Ahead Than Ever?, cit., p. 5. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2998779>. Acesso em 08.11.2018..

45 Calmon de Passos afirmou, em artigo da época da assimilação do Projeto Florença, acreditar que estivéssemos

nos encaminhando para o processo como instrumento político de participação, em razão da ampliação dos meios de acesso ao cidadão comum. Todavia entendeu necessário reconhecer que “se há insuficiência, sendo impossível o atendimento de toda as necessidades de todos os indivíduos, há que se definir quem ficará com o que na partilha do que é produzido e do que está disponível. Por outro lado, se existe interdependência, impõe-se, igualmente, organizá-la, evitando-se a irracionalidade do esponteísmo. E então uma coisa como outra conduz ao tratamento desigual dos integrantes do mesmo grupo, o que só se faz possível mediante disciplina coercitiva da convivência social” (PASSOS, José Joaquim Calmon de. Democracia, participação e processo. GRINOVER, Ada Pellegrini

et. al. (org.). Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988, p. 85, 95).

46 GALANTER, Marc. Acesso à justiça em um mundo de capacidade em expansão. Revista Brasileira de

Analisar e priorizar iniciativas distributivas implica reconhecer que, nos programas e medidas de acesso à justiça, há agendas diversas e conflitantes47.

Essa visão diverge da ideia de universalização trazida pelo “Projeto Florença”, projeto de pesquisa de Mauro Cappelletti e Bryan Garth desenvolvido nos anos 70 e assimilado no Brasil no início dos anos 90, em um contexto político, social e econômico bastante diverso daquele encontrado pelos autores na época de seu desenvolvimento. Segundo as autoras, a assimilação acrítica de tal estudo propiciou leituras diversas e orientações antagônicas a respeito do acesso à justiça48, que sustentam até mesmo medidas de diminuição do acesso para menos favorecidos ou deterioração dos instrumentos à sua disposição.

As ondas renovatórias de acesso à justiça passaram a ser estudadas com intensidade após a tradução do relatório final “Access to Justice”, por Ellen Gracie Northfleet, no ano de 1988, em meio à promulgação da Constituição Federal “cidadã”, quando o Brasil se tornava um Estado Democrático de Direito e a defesa de direitos estava no centro da pauta. Este contexto favoreceu a recepção da pesquisa como marco teórico para a facilitação do acesso à justiça e a defesa de direitos49.

Todavia, o Brasil não era – e não é – um estado de bem estar social (“welfare state”) consolidado.

À época, não se compreendeu de forma adequada que, em verdade, a pesquisa de Cappelletti e Garth era um levantamento empírico de mais de oito anos, em que estudiosos narravam as soluções que diversos e muito distintos ordenamentos davam como resposta à ampliação do acesso, consolidando o seu “welfare state”50.

Logo, não se trata de uma leitura dogmática ou prescritiva do acesso à justiça, como se a pesquisa indicasse os três caminhos que os sistemas jurídicos devem seguir.

Isso é narrado para concluir que, apesar da importância do Projeto Florença, cada solução pesquisada possuía seu tempo e contexto próprios, não sendo possível olhar para os problemas do nosso país com as mesmas lentes daqueles pesquisadores, pois eles não serão os mesmos.

47 GALANTER, Marc. Acesso à justiça em um mundo de capacidade em expansão, p. 46.

48 GABBAY, Daniela Monteiro; ASPERTI, Maria Cecília; COSTA, Susana Henriques da. Are the Haves Getting

Even More Ahead Than Ever?, cit., p. 4.

49 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo; SOUZA, Michel Roberto Oliveira de. Desmistificando a “Cultura do

Acordo”. FREITAS JR., Antonio Rodrigues; ALMEIDA, Guilherme Assis de (coor.); SOUZA, Michel Roberto Oliveira de (org.). Mediação e Novo Código de Processo Civil. Curitiba: Juruá, 2018, p. 17-50, p. 19-20.

50 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo; SOUZA, Michel Roberto Oliveira de. Desmistificando a “Cultura do

E, na verdade, essa assimilação acrítica levou não apenas a uma expectativa de um pleno “welfare state”, nunca atingido, como também obscurece as diferentes orientações que pautaram os debates de acesso à justiça nos anos seguintes, não baseados na universalização mas sim em outros valores, o que também ocorreu com a assimilação dos meios consensuais.