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A opção por um modelo predominantemente consensual ou predominantemente

CAPÍTULO 2 CRÍTICA AOS MEIOS CONSENSUAIS SOB A PERSPECTIVA DO

2.2. A opção por um modelo predominantemente consensual ou predominantemente

predominantemente adjudicatório como escolha política motivada.

Antes de adentrar propriamente na discussão sobre a relação entre os meios consensuais e a aplicação da lei estatal, é válido fazer uma digressão para as análises que iluminam os objetivos por trás das escolhas dos meios de solução de conflitos.

Laura Nader, antropóloga do direito, apresenta visão retrospectiva importante sobre o movimento das ADRs, em texto publicado ao final da década de 90211 – época em que o Banco Mundial já havia recomendado as reformas do Judiciário e do processo nos países da América Latina e Caribe e a adoção mais incisiva do consenso.

Naquele contexto, muitos estudos críticos ao movimento de “globalização” eram publicados, e Nader apontava a falta de diálogo dos juristas com essas críticas e a falta de estudos sobre o papel da lei e da resolução de disputas no contexto da globalização212.

211 NADER, Laura. The Globalization of Law, cit. 212 NADER, Laura. The Globalization of Law, cit, p. 304.

A um modelo calcado no consenso, Nader atribui a denominação de “Harmony Law”213. Descrevendo-os, a autora afirma que tais modelos são aqueles que colocam grande valor no consenso, e no compromisso ou acordo, para além de qualquer outro valor de justiça214. Tal valor é, ao menos na retórica, relativizado e individualizado em cada caso, gerando soluções que deveriam refletir a justiça dos participantes.

O modelo de “Harmony Law” é caracterizado por elementos de controle, pela intolerância ao conflito e pela tendência de evitar, não as causas da discórdia, mas sim a sua manifestação adversarial, buscando criar, a todo custo, consenso e homogeneidade215. Dessa forma, sua ideologia pode ser utilizada, inclusive, para suprimir populações e socializá-las em direção à conformidade216.

Para Nader, as tensões entre um modelo adjudicatório de justiça e um modelo conciliatório de resolução de disputas possuem importante papel nas estratégias de globalização, ressaltando que os modelos de solução de disputas podem parecer neutros ou naturais, no entanto, possuem grande carga ideológica e são elementos-chave nas estratégias dos jogos de força internacionais217.

A autora ainda associa os modelos de “Harmony Law” a controle e coerção, que seriam utilizados para silenciar grupos e pessoas que se comunicam ou agem de forma adversarial218. Especificamente sobre a emergência das ADR nas últimas décadas, a autora afirma que, nos anos 70, nos Estados Unidos, tal ideologia começou a ser construída, inspirada por objetivos como eficiência, harmonia, e reforma legal. Isso se deu em reação aos anos 60, que foram marcados por inúmeros movimentos, formados nos Estados Unidos, que veiculavam demandas por direitos civis, dos consumidores, ambientais, das mulheres e das minorias.

O estilo vigente da década de 60 era de confronto, e as Cortes eram utilizadas para se atingir novos objetivos219. Os atores pressionados por tais movimentos, ou seja, aqueles contra quem as novas demandas eram formuladas, viram-se na necessidade de fazer algo a respeito dos casos judiciais estratégicos a fim de removê-los das Cortes. Durante três décadas, os esforços para controlar os movimentos por direitos mudaram o foco das preocupações de justiça

213 NADER, Laura, Harmonia Coerciva, cit.

214 NADER, Laura. The Globalization of Law, cit., p. 308. 215 NADER, Laura. Coercive Harmony, cit., p. 3.

216 NADER, Laura. The Globalization of Law, p. 308. A autora propõe essa conclusão a partir do estudo das

relações e interações entre o povo Zapoteca e os espanhóis.

217 NADER, Laura. The Globalization of Law, p. 304-305. 218 NADER, Laura. The Globalization of Law, p. 308. 219 NADER, Laura. The Globalization of Law, p. 308-309.

e direitos para eficiência e harmonia, e consequentemente mudaram o foco do acesso às cortes para o desenvolvimento das ADRs220.

Adentrando na década de 90, as ADRs foram sucessivamente estandarizadas para se amoldarem às hegemonias globais em uma maneira que apaga as peculiaridades dos diferentes estilos culturais de resolução de disputas221, por exemplo, pela disseminação da arbitragem ou de modelos de negociação baseados em interesses e o apelo a deformalização de procedimentos. Para a autora, inovações legais, muitas vezes tidas como desregulação, são sinais de decadência do significado do Estado, em que este dá lugar a um regime de direito internacional marcado pela hegemonia de conceitos neoliberais. Nesse contexto, emergem como mecanismos centrais de controle, por exemplo, a arbitragem internacional e a especialização da resolução de conflitos222.

A autora questiona a forma pela qual essas mudanças legais ajudam a fortalecer as demandas de grandes corporações multinacionais e, consequentemente, enfraquecem a posição de Estados e de pequenos agentes223.

220 NADER, Laura. The Globalization of Law, p. 309. 221 NADER, Laura. The Globalization of Law, p. 305.

222 NADER, Laura. The Globalization of Law, p. 305-306. Laura Nader cita ainda o GATT – General Agreement

on Tariffs and Trade (em português: Acordo Geral de Tarifas e Comércio), que, na seara do direito internacional, visou a eliminação de barreiras tarirfárias. Nader usa o GATT para exemplificar como o modelo de solução de conflitos pode mudar conforme melhor atenda aos interesses da parte mais forte. O documento original do GATT era essencialmente uma carta de regras legalistas que poderiam ser implementadas pela International Trade Organization – ITO, sendo que tanto a ITO quanto o GATT foram concebidos em um momento em que a ajdudicação estatal, informada pelo estado de direito, era considerada a forma mais evoluída e civilizada de resolver disputas. A Carta da ITO parece ter sido escrita no espírito do legalismo, pois pedia um procedimento vigoroso de resolução de disputas que contemplasse o uso efetivo da arbitragem e até apelação para a World Court em alguns casos. Contudo, por volta de 1955, houve uma mudança em favor do pragmatismo, pela qual as disputas seriam referidas a um painel de três para cinco experts independentes e as partes entrariam em consenso prévio sobre aceitar a recomendação do painel. Segundo a autora, a mudança procedimental marcou um movimento de distanciamento dos clamores iniciais por procedimentos legais democráticos (NADER, Laura. The Globalization

of Law, p. 306-307.).

223 NADER, Laura. The Globalization of Law, p. 305-306. Laura Nader cita ainda o GATT – General Agreement

on Tariffs and Trade (em português: Acordo Geral de Tarifas e Comércio), que, na seara do direito internacional, visou a eliminação de barreiras tarirfárias. Nader usa o GATT para exemplificar como o modelo de solução de conflitos pode mudar conforme melhor atenda aos interesses da parte mais forte. O documento original do GATT era essencialmente uma carta de regras legalistas que poderiam ser implementadas pela International Trade Organization – ITO, sendo que tanto a ITO quanto a GATT foram concebidos em um momento em que o estado de direito, pela operação adjudicatória das normas, era considerada a forma mais evoluída e civilizada de resolver disputas. A Carta da ITO parece ter sido escrita no espírito do legalismo, pois pedia um procedimento vigoroso de resolução de disputas que contemplasse o uso efetivo da arbitragem e até apelação para a World Court em alguns casos. Contudo, por volta de 1955, houve uma mudança em favor do pragmatismo, segundo a qual as disputas seriam referidas a um painel de três para cinco experts independentes e as partes entrariam em consenso prévio sobre aceitar a recomendação do painel. Segundo a autora, a mudança procedimental marcou um movimento de distanciamento dos clamores iniciais por procedimentos legais democráticos (NADER, Laura. The Globalization

Qualquer um dos modelos é carregado de valores relacionados aos resultados desejados. No modelo consensual, é dada menos atenção e seus impactos mais críticos são subestimados, pois, em regra, são vistos como normais ou simplesmente benéficos224.

Todavia, as mudanças de um meio de solução de conflitos para outro não são “evolucionistas”, no sentido de que a passagem de um modelo adjudicatório para um consensual represente uma evolução na sociedade. Na verdade, elas apenas indicam que os modelos de solução de disputas possuem uma elasticidade que pode ser utilizada para fortalecer as vantagens de determinadas partes em termos de barganha225. Assim, as modificações nas preferências pelos meios de solução de disputas são, em verdade, exercícios de poder226.

Por um lado, as ADRs se apresentam como forma de gerar soluções ganha-ganha, substituir o confronto com harmonia e consenso, e presumidamente aliviar a pressão sobre o sistema judicial. Por outro lado, seu uso muitas vezes é obrigatório e vinculado, seu procedimento e seus resultados são sigilosos e distantes do escrutínio público, e suas decisões desautorizam qualquer recurso judicial mesmo em casos que envolvem assimetria de poder, como relações de trabalho, de consumo, de serviços de saúde, entre outros227.

O reconhecimento de que a escolha de um modelo de solução de conflitos a ser priorizado em um sistema é uma decisão politicamente motivada, e que as ADRs, em geral, e os meios consensuais, em específico, não são técnicas neutras nem visam exclusivamente a uma satisfação mútua das partes, mas também possuem finalidades de controle de determinadas demandas, são pontos de partida importantes para grande parte das críticas construídas sobre os meios consensuais, como veremos na sequência.