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O discurso da “explosão de litigiosidade” lido à luz do contexto brasileiro.

CAPÍTULO 1 MEIOS CONSENSUAIS, ACESSO À JUSTIÇA E LITIGIOSIDADE

1.6. Situando os discursos que fundamentam a adoção sistemática dos meios consensuais

1.6.4. O discurso da “explosão de litigiosidade” lido à luz do contexto brasileiro.

O texto de Galanter expõe como o discurso da “explosão de litigiosidade” pode ser falacioso, revelar uma percepção não confirmável por dados empíricos, e conduzir a uma restrição do acesso a julgamentos, e legitimar discursos de restrição do acesso à justiça oficial como um todo.

Todavia, é claro que o ambiente do sistema de justiça dos Estados Unidos na década de 80 é substancialmente diferente daquele encontrado no Brasil nos últimos 18 anos, em que esse mesmo discurso passou a legitimar o fomento a práticas consensuais como forma de gerenciar a massa de processos judiciais.

Na literatura nacional, o discurso vem também sob o nome de “crise numérica”, a designar um aumento expressivo do volume de processos que ingressam periodicamente no Judiciário somado àqueles que ainda estão em trâmite, cuja quantidade seria maior do que a capacidade e a estrutura de tal Poder.

Tal descompasso é visto como causa de uma inviabilização da oferta de prestação jurisdicional célere e eficaz.

A questão está fortemente presente na literatura nacional sobre meios consensuais, sendo afirmada uma consequente insatisfação da população com a prestação jurisdicional.

Essas constatações inauguram parte das exposições que visam à legitimação e justificação da necessidade de sua adoção139.

Mas, como já dito, o altíssimo volume de novas demandas judiciais todos os meses, somadas àquelas ainda pendentes perante o Judiciário brasileiro, é fato concreto que não deve ser desprezado por uma outra retórica de ampliação do acesso à justiça da forma mais ampla possível.

O cenário é diferente daquele pintado por Galanter, até porque o Brasil hoje possui quantificação confiável do número de processos – ainda que com inevitáveis distorções – por meio do Relatório “Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça.

No Brasil, a curva ascendente de processos judiciais é inegável. No ano de 2009 o CNJ registrou um total de 60,7 milhões de processos pendentes, uma entrada de 24,6 milhões de casos novos e a baixa de 25,3 milhões; já no ano de 2016, o total de processos pendentes saltou para 79,7 milhões e a quantidade de casos novos chegou a 29,4 milhões, havendo a baixa do mesmo número de processos.140

Diante desses dados numéricos, seriam realmente criticáveis os discursos de “explosão de litigiosidade”? Ignorar o aumento numérico das demandas judiciais é uma atitude intelectualmente honesta?

Na verdade, as perguntas devem ser reposicionadas, sobretudo quando estamos discutindo a utilização de meios consensuais como política de justiça.

Os diagnósticos imaginados para explicar o aumento no número de demandas judiciais são precisos? É possível realmente identificar como causa desse aumento numérico a ausência de oferta ou de conhecimento de outros mecanismos de solução de conflitos? E mais: as causas subjacentes ao aumento numérico de demandas encontram na utilização dos meios consensuais soluções adequadas? Por exemplo, é realmente possível identificar como concausa desse fenômeno um inexorável perfil litigioso do cidadão brasileiro, que pode ser endereçado por uma exortação a uma “cultura de paz”?

Maria Cecília de Araújo Asperti explica que o estudo da litigiosidade pelo processo civil, o aumento do volume dessas demandas e os custos delas decorrentes reproduz discursos que retratam uma “litigiosidade desenfreada” ou uma “explosão de litigiosidade” sem a investigação das causas e características das demandas e recursos que se avolumam no

139 Vide: FALECK, Diego. Desenho de Sistemas de Disputas: Criação de Arranjos Procedimentais Consensuais

Adequados e Contextualizados para Gerenciamento e Resolução de Controvérsias. Tese (Doutorado). São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2017, p. 20.

140 Cf. <https://www.conjur.com.br/2017-set-04/110-milhoes-processos-passaram-judiciario-2016>. Acesso em

Judiciário, tampouco das características, comportamentos e percepções dos litigantes envolvidos nessas disputas141.

Apenas recentemente estariam sendo levantados dados consistentes sobre o perfil dessa litigiosidade, especificamente quem a protagoniza, possibilitando uma análise mais crítica. A autora indaga: “Estaríamos diante de uma maior combatividade por parte dos indivíduos ou das consequências nocivas da ampliação do acesso à justiça ou, essa ‘explosão’ decorreria de outros variados fatores, dentre eles, um uso excessivo do sistema por alguns atores?”142

Complementarmente, Luciana Gross Cunha e Daniela Monteiro Gabbay afirmam que o aumento no número de processos judiciais não deve ser lido no sentido de que a população possua amplo acesso ao Poder Judiciário, pois expressiva parte dos processos é proposta pelo poder público e outros grandes litigantes repetitivos143.

No debate do acesso à justiça, essa percepção interferiu na pauta de pesquisa e nas reformas processuais: as principais preocupações das reformas mais recentes focam o gerenciamento da litigiosidade repetitiva, dispostos com a finalidade de garantir maior segurança jurídica e eficiência a atores do mercado que litigam em juízo para assegurar o cumprimento de contratos e a cobrança de dívidas, em detrimento de uma pauta de ampliação da tutela de direitos excluídos e usuários marginalizados. Assim, o acesso à justiça passa a ser associado com a litigiosidade, especialmente a litigiosidade de massa, e passa a ser visto como um problema a ser enfrentado, como se houvesse acesso demais144.

De outro lado, ampla pesquisa empírica, conduzida por Luciana Gross Cunha e Daniela Monteiro Gabbay, identifica que a litigiosidade possui causas internas e externas ao Judiciário, e que muitas medidas que supostamente serviriam para lidar com o contingente processual acabam na verdade estimulando a litigiosidade145.

Entre essas causas, estão fatores externos, como a massificação do consumo aliado à incapacidade da gestão empresarial da qualidade de bens e serviços, cada vez mais sofisticados

141 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Acesso à Justiça e técnicas de julgamento de casos repetitivos, cit., p.

54-55.

142 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Acesso à Justiça e técnicas de julgamento de casos repetitivos, cit., p.

54-55.

143 GABBAY, Daniela Monteiro; CUNHA, Luciana Gross. Litigiosidade, morosidade e litigância repetitiva no

Judiciário: uma análise empírica. Série Direito e Desenvolvimento (DIREITO GV). Saraiva: São Paulo, 2013, p.

24.

144 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Acesso à Justiça e técnicas de julgamento de casos repetitivos, cit., p.

47-49.

145 GABBAY, Daniela Monteiro; CUNHA, Luciana Gross. Litigiosidade, morosidade e litigância repetitiva no

e diversificados. A difusão massificada de informações à população por advogados e pela mídia contribui para o surgimento de novas demandas judiciais146.

Outro fator externo ao Judiciário é a criação de zonas cinzentas de regulação pelos órgãos administrativos e pela lei, o que abre oportunidades para discussões via Poder Judiciário. Ademais, as autoras apontam a falta de um arranjo institucional entre resolução administrativa e resolução judicial de conflitos, o que impede que as instâncias administrativas sejam eficazes na resolução de disputas e na eventual filtragem dos casos antes que se tornem ações judiciais147.

Todavia, as reformas institucionais e processuais no Brasil, as quais visam celeridade e standarização dos julgamentos judiciais, incluído o uso sistemático e acrítico de meios consensuais, não buscam entender as suas verdadeiras causas, suas implicações e seus impactos sociais148, vão na contramão da constatação de que a litigiosidade tem causas internas e externas ao Judiciário, incluindo regulação administrativa e legislativa149.

Assim, a questão do aumento expressivo do contingente judicial não se resolve pela afirmação de uma natural litigiosidade do cidadão brasileiro, nem por simples a promoção de campanhas de consenso.

Ademais, a investigação das causas da litigiosidade demonstra que alguns de seus fatores externos são indicadores positivos sob a óptica de acesso à justiça, pois refletem o aumento do nível de informação e uma maior conscientização das pessoas sobre seus direitos.150 De outro lado, outros fatores apontam para uma disfuncionalidade de instâncias regulatórias e da resolução administrativa de disputas, e dos próprios fornecedores de bens e serviços, públicos e privados.

Um discurso de “explosão de litigiosidade” e de “excesso de acesso” não endereça adequadamente essas questões. Uma análise do perfil da litigiosidade brasileira nos indica os caminhos que podem ser tomados ou, ao menos, aqueles que devem ser evitados, além de distinguir qual tipo de crescimento no volume deveria ser controlado.

146 GABBAY, Daniela Monteiro; CUNHA, Luciana Gross. Litigiosidade, morosidade e litigância repetitiva no

Judiciário, cit., p. 37-38, p. 151.

147 GABBAY, Daniela Monteiro; CUNHA, Luciana Gross. Litigiosidade, morosidade e litigância repetitiva no

Judiciário, cit., p. 37-38, p. 151.

148 GABBAY, Daniela Monteiro et al. Why the “Haves” Come Out Ahead in Brazil? Cit., p. 12.

149 GABBAY, Daniela Monteiro; CUNHA, Luciana Gross. Litigiosidade, morosidade e litigância repetitiva no

Judiciário, cit., p. 37-38, p. 151.

150 GABBAY, Daniela Monteiro; CUNHA, Luciana Gross. Litigiosidade, morosidade e litigância repetitiva no