• Nenhum resultado encontrado

6.1. Semântica, Enunciação e Acontecimento

6.1.3. A argumentação e o sentido

No decorrer de nossas análises, apresentaremos algumas questões relativas à forma como o acontecimento movimenta a argumentação que sustenta as ações da UNESCO sobre sua atuação relativa às questões linguísticas na preservação das línguas. No entanto, quando dizemos trabalhar com argumentação, faz-se necessário explicitar como entendemos esta questão. Isso porque esta palavra pode nos levar a diversas designações que marcam lugares teóricos diversos.

As questões argumentativas passaram por uma série de visadas, por autores como Aristóteles, a grande referência para os estudos sobre a retórica; Perelman, que na década de 50 do século XX propõe a sua “Nova Retórica”, que tratará das questões retóricas em sua relação com a produção do conhecimento, teorizando sobre o Auditório Universal e a construção do ethos do orador, produzindo, assim, um deslocamento de sentido de retórica para aproximá-la da dialética; Toulmin para quem a argumentação não pode ser reduzida à lógica sendo que os argumentos são “geralmente” e não “necessariamente” aceitos. Além disso, podemos lembrar autores como Plantin que propôs um modelo dialogal da argumentação ou ainda os estudos do ponto de vista de uma abordagem cognitiva desenvolvidos por Grize e Vignaux. Isto para citar alguns dos muitos autores que se preocuparam com estas questões.

De nossa perspectiva trabalharemos com a argumentação de um lugar que a considera, primeiramente, enquanto uma questão linguística. Desta forma, não trabalhamos com a argumentação enquanto uma verdade, por exemplo, tampouco enquanto uma técnica nas vias da retórica, mas enquanto algo que se constrói pela linguagem. Esta forma de tratamento da argumentação marca um lugar teórico bastante especifico: um diálogo com o que propõe Ascombre e Ducrot e sua Teoria da Argumentação na Língua (ADL105).

Inscritos nos domínios dos estudos enunciativos, Ascombre e Ducrot propõem que a argumentação não é uma questão técnica com finalidades persuasivas, mas que está inscrita

105 A sigla se refere à expressão em francês La argumentation dans la langue, que intitulará um livro

na língua e é apreensível, pelo estudo das formas linguísticas, mais especificamente, por um estudo semântico-lexical, ou seja, segundo esta vertente teórica, são as formas da língua que nos permitem, por seu sentido, o funcionamento da argumentação. Desta forma, postulam que o entendimento do funcionamento argumentativo deve se dar em torno do enunciado que por si só já é argumentativo, sendo que a questão semântica, a significação, seria evidenciada por um trabalho de descrição e análise destes enunciados e de seu valor argumentativo. Seu caráter estruturalista afirma a autonomia da língua, descartando em seu trabalho descritivo e interpretativo qualquer elemento externo ao sistema. Conceituando discurso como um conjunto de enunciados106 dirão que “el valor argumentativo de una palavra es por definición la orientación que esa palavra da al discurso [...], considerando el valor argumentativo como el nível fundamental de la descripción semântica” (DUCROT, 1988:51).

A ADL passa, ao longo do tempo, por algumas reformulações que levam seus postuladores a incluírem novos elementos para explicar as relações argumentativas. Assim, surge a teoria dos topoi, decorrente da percepção de que o modelo binário de argumentação delineado a partir das relações entre os segmentos do discurso (argumentos) e suas continuidades (conclusão), postas pelo funcionamento dos operadores argumentativos, poderiam apontar para conclusões opostas. Segundo Ducrot (1989)

Quando apresentamos a primeira forma da teoria da argumentação na língua, tomamos como evidente, Anscombre e eu, que a força argumentativa de enunciado A deve ser definida como um conjunto, eu quero dizer como o conjunto dos enunciados C1, C2 ... etc. que podem aparecer como conclusões de A. Assim, a força argumentativa de um enunciado “ Pedro trabalhou um pouco” consistiria no conjunto dos enunciados que podem eventualmente lhe ser encadeados em um discurso por um portanto ou um conectivo deste tipo, explícito ou implícito. (DUCROT, 1989:20).

No entanto, Ducrot afirma que “O problema geral é que as possibilidades de argumentação não dependem somente dos enunciados tomados por argumentos e conclusões, mas também dos princípios dos quais se serve para colocá-los em relação” (DUCROT, 1989:21).

106 Estes autores consideram que o enunciado é uma parte do discurso, aquilo que de fato é realizável

enunciativamente, “a realidade empírica”, sendo, portanto, irrepetível. O enunciado, seria, desta forma, a realização da frase.Já a frase é de caráter abstrato, sendo uma estrutura da qual nos valemos enquanto uma construção linguística para explicar os enunciados. Assim consideram que a significação é da ordem da frase e que o sentido da ordem do enunciado (Cf. Ducrot 1988, 1989). A língua é um conjunto de frases.

A proposta de um funcionamento argumentativo triádico (argumentos, conclusão, topos) coloca em cena um terceiro elemento, não explicitado, mas que direciona a conclusão, sustentando a argumentação. Assim, a partir de seu caráter universal (na medida em que é compartilhado pela comunidade linguística e/ou pelo menos pelo locutor e alocutário), geral (aplicável a situações semelhantes) e gradual (na relação com as escalas argumentativas), o

topos será tomado como princípio argumentativo.

Nos trabalhos mais recentes, mais especificamente nos que vêm produzindo Oswald Ducrot e Marion Carel desde 1992, ano em que Carel defende sua tese (Ducrot 2002), delineia-se o que vem sendo chamada de “a 3ª fase da teoria” em que a ideia dos topoi dá lugar à noção de blocos semânticos. É mais um ajuste teórico que abandona a ideia dos predicados com escalas diferentes, postos em relação pelo topos. A argumentação entendida como um encadeamento argumentativo, que seriam “sequências de duas proposições (no sentido sintático do termo) ligadas por um conector.” (DUCROT, 2002:08-09) e o bloco semântico enquanto um objeto único coloca a relação de dependência entre os segmentos, ou seja, o sentido está no encadeamento dos segmentos e não em cada segmento; o sentido está neste bloco formado pelo argumento e pela conclusão . Desta forma,

[...] o sentido de uma entidade linguística é ou de evocar um conjunto de discursos ou, se ela tem função puramente combinatória, de modificar os conjuntos de discursos associados a outras entidades. Só o discurso é, portanto, doador de sentido (DUCROT,2002:07)

Dialogaremos com os postulados de Ascombre e Ducrot no que se refere ao fato de que a argumentação é linguística, questão que se mantém, apesar das diversas reformulações teóricas e, mais especificamente, tomaremos como base o quadro teórico relativo ao primeiro momento da teoria. No entanto, produziremos um distanciamento no sentido de deslocar o caráter estritamente estruturalista com a inserção do elemento externo, tão enfaticamente refutado pelos autores. A argumentação, desta forma, estará relacionada, dentro do nosso quadro teórico, ao acontecimento enunciativo, que pela sua temporalidade, recorta memoráveis que sustentam a direção do argumento e instauram uma futuridade que consideraremos como o movimento argumentativo que orienta para determinadas conclusões.

O nosso ponto de vista, como se viu, é o de tratar a argumentação na via aberta por Ducrot e Anscobre, como uma relação de linguagem, uma relação de significação. Ou seja, um argumento não é algo que indica um fato que seja capaz de levar a uma conclusão. Um argumento é um enunciado que ao ser dito, por sua significação, leva a uma conclusão (uma outra significação). Mais especificamente, argumentar é dar uma diretividade ao dizer. (GUIMARÃES, 2010:78)

Inserimo-nos, desta forma, dentro dos estudos semânticos argumentativos, mas, diferentemente de Ducrot e Ascombre, nossos esforços estão justamente em compreender de que forma o que é externo à língua é agenciado pelo acontecimento enunciativo na produção de sentido. Ou seja, não nos colocamos em uma posição estruturalista que tem seus esforços em não tratar desta exterioridade, delimitando seu trabalho ao que é estritamente da ordem da língua. Interessa-nos pensar como o externo à linguagem, à história, funciona na constituição dos sentidos. De acordo com Guimarães:

[...] diferentemente da posição de Ducrot e Anscombre, por exemplo, não se trata para mim da utilização do conceito de topos. Dado meu modo de tratar o acontecimento, vejo o fora da língua, que sustenta a argumentatividade, como algo próprio da temporalidade do acontecimento. O memorável (um passado) sustenta uma relação de orientação argumentativa e assim projeta como interpretar o futuro do texto. (GUIMARÃES, 2007a: 2011)

É nesta linha teórica, portanto, que desenvolveremos nossas análises, objetivando compreender o funcionamento argumentativo que sustenta os dizeres sobre a linguagem e a questão da preservação da língua no site da UNESCO.