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Espaço de Enunciação: em torno do conceito de político

O conceito de espaço de enunciação, tema central deste capítulo, nos permite um tratamento bastante refinado daquilo que vem sendo chamado de político já que, segundo Guimarães, ele é o constitutivo do espaço de enunciação. Este conceito será mobilizado em nossas análises e é por esta razão que julgamos pertinente uma exposição mais detalhada sobre a forma como o tomaremos.

É a partir de um diálogo bastante estreito com Orlandi (1990)19, pela noção que a autora apresenta de conflito e tomando em Rancière (1995)20 a noção de dissenso, que

Guimarães (2002) desenvolve este conceito para pensar no acontecimento enunciativo, tal como expusemos, e na compreensão da forma como os sentidos são produzidos. O conceito de político será, portanto, fundamental para a forma como trabalharemos a interpretação de nossas descrições, já que o consideraremos como algo próprio da linguagem; como algo “incontornável porque o homem fala” (GUIMARÃES, 2002:16) ou ainda porque “falar é uma prática política no sentido amplo, quando se consideram as relações históricas e sociais do poder sempre inscritas na linguagem” (ORLANDI, 2002:106).

18AUROUX, (1992).

19 ORLANDI, Eni. (1990) Terra à vista. São Paulo, Cortez/Editora da Unicamp, cf. Guimarães (2002). 20 RENCIÈRE, J. (1992). Os nomes da História. Campinas, Pontes, 1994 cf. Guimarães (2002).

Para Oliveira (2014) seria de fundamental importância uma articulação entre este conceito tomado a partir da Análise do Discurso, mais especificamente nos trabalhos de Orlandi, e a forma como o conceito vem sendo proposto pela Semântica do Acontecimento, notadamente nos trabalhos de Guimarães. Segundo a autora, esta articulação daria “visibilidade à distinção entre eles” ao mesmo tempo em que ressaltaria a “produtividade da sua articulação” (OLIVEIRA, 2014:41).

De acordo com Orlandi (1998, 2002) a compreensão do político implica em considerar que “o sentido é sempre dividido, sendo que esta divisão tem uma direção que não é indiferente às injunções das relações de força que derivam da forma da sociedade na história” (ORLANDI, 1998: 74), sendo que a sociedade está imersa em “um mundo significado e significante, em que as relações de poder são simbolizadas” (ORLANDI, 2001:90). Segundo a autora a questão do político é apreendida por sua textualização a partir da materialidade textual (ORLANDI, 1998) na injunção à interpretação sendo, portanto, a própria leitura uma prática política (ORLANDI, 1998:74). O político é assim da ordem da interpretação e como nos aponta Oliveira (2014), é entendido por esta perspectiva discursiva como sendo relativo às divisões do interdiscurso (OLIVEIRA, 2014:41). Considerando o caráter materialista das duas teorias, o político é constitutivo das relações de poder que estão materializadas na linguagem em sua textualização.

Tomando este conceito em Guimarães (2002), temos uma conhecida citação:

O político, ou a política, é para mim caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo o político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. Mais importante ainda para mim é que, deste ponto de vista, o político é incontornável porque o homem fala. O homem está sempre a assumir a palavra, por mais que esta lhe seja negada. (GUIMARÃES, 2002:16)

Partindo do trecho citado, o político está no lugar de assunção da palavra pelo locutor diante de uma normatividade imposta e que divide, desigualmente, os lugares de acesso à palavra. Esta forma de pensar o caráter político na linguagem nos faz operar, necessariamente, com a contradição constitutiva do sentido. O caráter político da linguagem, no entanto, não está relacionado à normatividade que divide e distribui democraticamente, mas “se constitui pela contradição entre a normatividade das instituições sociais que

organizam desigualmente o real e a afirmação de pertencimento dos não incluídos” (GUIMARÃES, 2002:17). Segundo o autor:

O Político está assim sempre dividido pela desmontagem da contradição que o constitui. De tal modo que o estabelecimento da desigualdade se apresenta como necessária à vida social e a afirmação de pertencimento, e de igualdade, é significada como abuso, impropriedade. (GUIMARÃES, 2002:16)

Realizando, então a articulação que propõe, Oliveira enfatiza que esta possibilidade só existe por conta do caráter material das duas teorias e que:

Pensar o político não é conceber o que lhe é próprio como deletério, e sim toma-lo como fundamento das relações sociais. Fundado no conflito, o político é o que produz estabilidade, reforça discrepâncias e exclusões, mas também é o que permite o movimento, a inclusão e a produção de condições de igualdade, segundo o modo como se dá o embate das forças em jogo. (OLIVEIRA, 2014:45)

Neste trabalho o político será apreendido em dois movimentos bem marcados em nossas análises. Primeiramente, corroborando toda nossa exposição do conceito, feita anteriormente, observaremos o político pelos sentidos produzidos no acontecimento; pelo que é enunciado de determinado lugar. Veremos, por exemplo, no capítulo 2 estas questões presentes na análise que apresentamos, assim como pela leitura que fizemos da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Outro lugar de observação do funcionamento político da linguagem estará na relação com o que se enuncia enquanto algo concernente a uma democracia linguística e a própria circulação das línguas no site da UNESCO. Esta questão é trabalhada com bastante cuidado no capítulo 4, Política e a Democratização Linguística: a

questão da tradução.

Vejamos, então, como esta questão aparece no próximo capítulo pelas análises propostas e também em toda tese, especificamente em nossas análises.

CAPÍTULO 2

A UNESCO

“CONSTRUINDO A PAZ NA MENTE DE

HOMENS E MULHERES”

Ahora pasa que las tortugas son grandes admiradoras de la velocidad, como es natural. Las esperanzas lo saben, y no se preocupan. Los famas lo saben, y se burlan. Los cronopios lo saben, y cada vez que encuentran una tortuga, sacan la caja de tizas de colores y sobre la redonda pizarra de la tortuga dibujan una golondrina.

Júlio Cortazar Frases de Cronopios

A questão da significação, dentro de nossa perspectiva teórica, considera que o sentido de uma palavra, de um enunciado, deve ser compreendido além da materialidade textual e linguística, já que consideramos que a questão semântica não está circunscrita somente a estas relações. O estudo do sentido de uma palavra, de acordo com a forma como pensamos a produção do sentido, deve incluir seu caráter histórico; a exterioridade. Pensar não somente nas relações internas ao sistema linguístico, considerando as relações entre o acontecimento enunciativo e o lugar social de onde se enunciam determinados saberes pode ser um caminho interessante para desenvolvermos este trabalho. Em diálogo com o que vem desenvolvendo o grupo “História das Ideias Linguísticas” 21, (HIL) buscaremos refletir, neste

capítulo, sobre a relação entre o lugar institucional do qual se enuncia o texto que nos

21 De acordo com o site http://www.unicamp.br/iel/hil/apresenta.html “o Programa de História das Ideias

Linguísticas reúne pesquisadores interessados no estudo da história dos estudos da linguagem em torno de projetos coletivos de pesquisa aos quais se relacionam, igualmente, projetos específicos dos seus diversos pesquisadores. Deste programa fazem parte pesquisadores de um grande número de universidades brasileiras, de diversas regiões do Brasil”. (por Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi). Acesso em: 20 de mar de 2011.

propomos analisar e a forma como os enunciados significam nesta relação. Assim, faremos um breve percurso para apresentar a UNESCO já que os textos que escolhemos para compor nosso corpus estão vinculados a esta instituição. Outra questão importante sobre a UNESCO é que suas propostas estão diretamente relacionadas à produção do que Auroux (1992) denomina instrumentos linguísticos partindo da forma como este autor entende o processo de gramatização e da elaboração de políticas linguísticas. De acordo com este autor, a gramatização é “o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (AUROUX, 1992:65).

Nos textos que analisamos, estes objetos sócio-históricos, formulados a partir das propostas de políticas linguísticas que, como veremos, estão na base de todo o trabalho da Instituição, serão importantes para pensarmos a relação entre o Estado e suas Instituições, a produção de conhecimento e os acontecimentos. É importante dizer que estas relações serão apreendidas no decorrer das análises já que as consideramos concomitantes e não dissociadas; não há como considerar uma sem que esteja em concomitância com a outra.

A fim de adentrarmos estas questões, apresentaremos uma análise do texto que aparece encabeçando as páginas de apresentação da Instituição no website, cujo slogan é:

Building Peace in the mind of men and women22.