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3.1. A Língua e a Ciência: algumas considerações sobre sua formulação na Linguística

3.1.1. A língua saussuriana

Ferdinand de Saussure, em “seu”37 célebre Curso de Linguística Geral (CLG) define o que é língua, sendo que esta conceituação se apresentou como decisiva para que a Linguística se firmasse enquanto uma Ciência, já que a forma como língua é designada nesta obra a significa como o objeto da Linguística, uma parte da linguagem que, diferentemente da fala, poderia ser vista como um sistema e assim ser estudada cientificamente. A regularidade da língua permitiria, portanto, estabelecer este objeto do qual se ocuparia a Ciência da Linguagem ou o que mais adiante na sua obra dirá ser objeto da Linguística da Língua, já que assume que deveria haver também a Linguística da Fala. Para estudarmos a forma como este autor designa língua, ocupar-nos-emos mais especificamente do estudo das designações presentes no capítulo II – Objeto da Linguística. Nesse capítulo fica posta a clássica divisão entre língua e fala, imprescindível para que a Linguística pudesse se apresentar diante do quadro das Ciências, na medida em que tomava enquanto seu objeto a língua:

37 As aspas servem para lembrar-nos de que esta obra, tão fundamental para a Linguística foi publicada

postumamente por Bally e Séchehaye, partir de anotações de aula feitas por alunos dos cursos que Saussure

[...] ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos [...] (SAUSSURE, 2002:17).

Desta forma, destacamos de seu texto alguns trechos que nos permitirão uma reflexão em torno deste conceito:

Recapitulemos os caracteres da língua.

1º – Ela é um objeto bem definido no conjunto heteróclito dos fatos da linguagem. [...]. Ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modi-ficá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. [...]

2º – A língua, distinta da fala, é um objeto que se pode estudar separadamente. Não falamos mais as línguas mortas, mas podemos muito bem assimilar-lhes o organismo linguístico. Não só pode a ciência da língua prescindir de outros elementos da linguagem como só se torna possível quando tais elementos não estão misturados.

3º – Enquanto a linguagem é heterogênea, a língua assim delimitada é de natureza homogênea: constitui-se num sistema de signos em que, de essencial, só existe a união do sentido e da imagem acústica, e em que as duas partes do signo são igualmente psíquicas.

[...]

4º – A língua, não menos que a fala, é um objeto de natureza concreta, o que oferece grande vantagem para o seu estudo. [...]. É essa possibilidade de fixar as coisas relativas à língua que faz com que um dicionário e uma gramática possam representá-la fielmente, sendo ela o depósito das imagens acústicas e a escrita a forma tangível dessas imagens. (SAUSSURE, 2002: 22-23)38

Vasculhando nesta parte que é apresentada como um resumo do que se encontra no capítulo II, poderíamos arrolar as seguintes predicações:

(1) A língua é parte [social] da linguagem; (2) A língua é exterior ao indivíduo;

(3) A língua é contrato entre os membros de uma comunidade; (4) A língua é de natureza homogênea;

(5) A língua é um elemento que pode ser visto separado dos outros elementos da linguagem;

(6) A língua é um sistema de signos;

(7) A língua é um objeto de natureza concreta; (8) A língua é um depósito das imagens acústicas;

Os trechos que destacamos do CLG permitem traçar a forma como a língua é entendida por Saussure. Esta forma de conceituar língua é extremamente importante e permeará uma série de vertentes teóricas do século XX, já que outorga aos estudos sobre a linguagem o rigor científico, pelo corte epistemológico que produz com relação aos estudos comparados39. O que devemos, assim, reter é que para Saussure a língua é, antes de tudo, a possibilidade de eliminação das heterogeneidades da linguagem que ele delegará à fala; é pela língua que podemos apreender o que garante a unidade à linguagem: a língua é um sistema convencional, que permite uma classificação dos signos depositados no cérebro de indivíduos que compartilham socialmente suas convenções. É a língua que apresenta a homogeneidade necessária para que se possa estudar a linguagem e também para que ela possa ser aprendida. O que Saussure faz, portanto é excluir da designação de língua a história, o sujeito e os outros fatos de linguagem, já que são considerados elementos que evidenciam a heterogeneidade da linguagem, o que impossibilitaria, portanto, um estudo científico nos moldes empíricos e positivistas da época. Na verdade, esta exclusão se produz não em uma postura que refute estes elementos, já que são eles que conferem a ligação da língua com aquilo que lhe é externo. Separar a língua destes elementos heterogêneos tem como finalidade torná-la um objeto científico, descritível. Assim dirá que:

Nossa definição de língua supõe que eliminemos dela tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema, numa palavra: tudo que se designa pelo termo “Linguística externa”. Essa Linguística se ocupa, todavia, de coisas importantes, e é sobretudo nelas que se pensa quando se aborda o estudo da linguagem (SAUSSURE, 2002:29)

Esta exclusão das heterogeneidades linguísticas, que não se faz pela negação de sua existência, será retomada pela Linguística em vários aspectos, em disciplinas como a Enunciação, a Pragmática, a Análise do Discurso, etc. No entanto, as definições saussurianas

39 A linguística comparada que também pode ser chamada de gramática comparada ou comparativismo pauta

seus estudos na busca por um parentesco entre as línguas, que teriam uma origem em uma língua-mãe, a língua indo-europeia que, apesar de não ter registros, poderia ser reconstruída por métodos que vão descrevendo as semelhanças e divergências das línguas ao longo dos séculos, buscando justamente este lugar comum de origem.

permearão, seja pela filiação, seja pelo afastamento da teoria, a Linguística nos séculos subsequentes à publicação do CLG. O que gostaríamos de ressaltar da designação de língua proposta no CLG é, especificamente, seu caráter homogêneo, social e coletivo. Vejamos como as vertentes estruturalistas40 vão (re)desenhando o conceito.

3.1.2. Observatório: algumas vertentes estruturalistas e a designação da