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7.2. Seção cultura: o funcionamento da argumentação para a preservação das línguas

7.2.1. Sobre a caracterização

No decorrer deste capítulo realizaremos, como dito anteriormente, nossas análises em torno do sentido da palavra língua a partir da forma como ela é significada como enumeração de aspectos da cultura. No entanto, gostaríamos de antecipar um funcionamento linguístico que se apresentou de forma bastante sobressaliente em nosso material. Na busca pelas determinações da palavra língua, deparamo-nos com um número bastante expressivo de caracterizações da palavra estudada em relação ao número de ocorrências dela sozinha ou acompanhada de artigos. Obviamente, não haveria, a priori, um interesse quantitativo com relação a reescrituração por substituição, mas acreditamos que esta discrepância e a regularidade das caracterizações deva ser motivo de reflexão.

De acordo com Guimarães (2009a) há uma importante diferença entre “determinar” e “caracterizar”. Esta diferença, segundo o autor, deve ser tratada com cuidado pelo analista em seu trabalho. A produção do sentido, no acontecimento de enunciação, está diretamente relacionada às relações de determinação semântica. Já a caracterização estaria em um nível sintagmático, circunscrito à relação nome/adjetivo. No entanto, pela forma como foi recorrente a caracterização em nossos recortes, gostaríamos de pensar em como isso trará consequências para o estudo da designação da palavra. Nos recortes que serão apresentados no decorrer do capítulo, deixaremos em destaque todas as reescritas por repetição da palavra

língua e os adjetivos que a caracterizam. Entretanto, anteciparemos esta discussão antes de

analisar mais apuradamente os recortes. Na sequência destacamos os sintagmas nominais que fomos localizando no decorrer no nosso corpus.

línguas a) em perigo b) revividas/revitalizadas c) minoritárias d) não escritas e) não documentadas f) indígenas g) maternas h) ameaçadas i) predominante j) desaparecidas

Chamamos atenção para estas expressões, pois há em nossos recortes de análise um número consideravelmente maior de expressões como estas se comparadas às repetições da palavra língua “sozinha”, ou seja, sem uma caracterização. Logo lançamos uma pergunta:

por que não se diz, por exemplo, a língua deve ser preservada, mas a língua

indígena/materna/minoritária deve ser preservada? É como se dizer língua fosse algo vazio,

que sempre requer uma caracterização que não determina o sentido de “língua”, mas que atribui a esta palavra certo aspecto. Por esta razão pareceu-nos importante olhar para estas regularidades sintáticas. Buscamos embasamento nos trabalhos de Luiz Francisco Dias (2012) no artigo O adjetivo na formação nominal: uma abordagem enunciativa em que trabalha justamente o funcionamento do adjetivo em formações nominais (FN). Através da análise do foco temático da FN, consegue verificar se o adjetivo incide sobre o núcleo da FN, caracterizando uma articulação de dependência, ou se incide sobre o enunciado, caracterizando uma articulação por incidência.128 Para realizar esta verificação, propõe duas manipulações linguísticas. Tomando x como núcleo da FN e y o adjetivo, propõe dois enunciados:

a. Fulano falou sobre yx, dizendo que é ... b. Fulano falou sobre x, dizendo que é y

Quando as duas paráfrases funcionam, temos uma relação de dependência, já que o adjetivo é tomado por uma centralidade nuclear da FN. Quando temos um estranhamento na paráfrase b, a caracterização vem de outra enunciação, o que nos leva a considerar uma articulação por incidência. Segundo Dias L. (2012) “a tensão entre o estrutural e o enunciativo se apresenta pela interposição do locutor na perspectivação” o que evidencia a enunciação como acontecimento já que “ela contrai pertinência no enlace de uma memória com uma atualidade”. Tanto a relação de dependência quanto a relação de incidência são articulações que promovem a relação integrativa do enunciado ao texto.

Poderíamos dizer que esta “necessidade” de caracterizar a língua tem a ver com a relação que se estabelece entre língua e cultura, já que podemos perceber que os adjetivos vão justamente deslocando a língua para uma determinada questão cultural (minoritária, indígena, predominante): é o linguístico submetido ao cultural. Poderíamos, inclusive, refletir em como o biológico (revivida/revitaizada, materna, ameaçada, catalogada129), enquanto memorável, atua na produção do sentido de língua; dizer que o memorável do perigo é um elo na questão da língua/cultura pelo sentido ecológico da proteção da natureza. Transpõe-se para o

128 A questão das articulações por dependência e incidência (cf. Guimarães) podem ser retomadas neste trabalho,

no capítulo 6.

linguístico o sentido da preservação natural, reduz-se o linguístico e o cultural à sua origem, apagando a história. É neste sentido que consideraremos a incidência: o “perigo da extinção das línguas” que se enuncia na FN língua em perigo relativamente ao que a UNESCO enuncia sobre a preservação. Como exemplo, poderíamos dizer que a FN línguas agradáveis é dita pelo locutor como presente do acontecimento e em língua em perigo é mobilizado um memorável que vai permeando os textos do nosso corpus (preservação, biológico, etc). Assim, o funcionamento da incidência significa este memorável específico que o texto recorta pelo funcionamento enunciativo.

Estas são algumas questões que lançamos neste momento e que serão confirmadas e/ou refutadas pelas análises que seguirão. Por último, pensamos que não se diz a(s) língua(s) por conta, justamente, desta necessidade de enunciar a preservação, o salvamento, a circulação e não, por exemplo, a língua na Ciência. A argumentação do texto em questão, como veremos, é o da preservação, não é um argumento científico sobre o que é língua, mas é um argumento institucional da preservação: ou seja, a natureza mesma da instituição UNESCO está sendo significada no modo de falar das línguas, na contradição de seu lugar de “divulgação científica”.