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A ARTE ATRAVESSADA PELA TECNOLOGIA: ENTRE A INTEGRAÇÃO

Não há como negar que paira, ainda hoje, sobre quase toda discussão que se instaure no campo artístico, uma névoa de conceitos paradigmáticos de que arte e máquina são seres inerentemente diversos. A arte, subjetividade por excelência, diz respeito às coisas do espírito, à riqueza da vida interior, ao olhar humano sobre o mundo. A máquina é técnica concretizada, é objetiva, inumana em sua mecânica e se faz reflexo do poder (as metáforas sobre mecanismos e engrenagens associados ao poder são, por isso, bem comuns). Machado (2009) lembra que esse pensamento romântico fez com que a arte passasse a caminhar de forma autônoma e institucionalizada a partir do século XVIII, dentro do projeto do Iluminismo, que também deu ao artista um papel distinto no estatuto social, na lógica de separação de esferas de especialidades. A arte, assim, não só se opõe à máquina, mas se impõe como superior, exaltando o reinado do espírito.

Se o cenário contemporâneo de convergência das artes com as tecnologias parece se constituir numa ruptura com esse passado recente, podemos encontrar raízes de uma convivência harmoniosa em tempos mais distantes. Machado toma como exemplo a palavra grega téchne, da qual deriva tecnologia, para fazer referência à indistinção entre arte e técnica, desde os tempos mais remotos da civilização ocidental. Até pelo menos o Renascimento, homens como Leonardo da Vinci incluíam a pintura de uma tela, o estudo da anatomia humana ou da geometria euclidiana e um projeto de construção de uma máquina dentro da mesma categoria de atividade intelectual. Machado cita mais exemplos de artistas que se celebrizaram associando suas atividades artísticas com sua face de cientista, como Dürer e Piero della Francesca e seus tratados de Geometria e Leon Battista Alberti e seus estudos de Matemática. Francis Bacon e seus contemporâneos trataram a nascente “arte mecânica” – como a construção de bússolas e a vidraçaria – sobrepondo-a “a retórica de filósofos humanistas e ao caráter místico das artes oficiais da Idade Média” (MACHADO, 2009, p.183).

                                                                                                               

56O título faz menção a termos usados por Arlindo Machado no artigo Máquina e Imaginário, inserido em Arte, Ciência e Tecnologia: Passado, Presente e Desafios, organização de Diana Domingues (Unesp, São Paulo, 2009)  

Por outro lado, pode-se perceber que a arte caminha quase sempre em paralelo com a ciência e com a tecnologia, buscando refletir a emergência das novas técnicas e avanços científicos de cada contexto histórico. A reformulação pictórica impressionista, por exemplo, fundada, entre outros fatores, no surgimento da fotografia, propunha uma arte própria de sua época, cuja percepção do mundo deveria se basear nos princípios científicos. Sua técnica rigorosa, similar à técnica industrial, propunha-se a ter na ciência sua base. Na segunda metade do século XIX, o neo-impressionismo dá mais um passo rumo à precisão científica em suas técnicas constitutivas. Com base nos avanços dos estudos da fisiologia e da percepção, artistas como Seurat começam a elaborar suas pinturas baseando-se na ótica das cores (WERTHEIM, 2001). O resultado se direciona para a representação de espaços planos e composições geométricas, seguindo a racionalidade de uma luz que é recomposta a partir de uma fórmula científica. Essa é a imagem, segundo Argan (1997, p.85), de “um ambiente moldado pela mentalidade científico- tecnológica do homem moderno”.

O caminho inverso de inter-relação entre arte e ciência também pode ser observado no passado, ou seja, o pensamento artístico contribuindo para direcionar as rotas da ciência. No período final da Idade Média, a mudança gradual na representação espacial artística, que veio a gerar uma nova maneira de pensar, culminou na concepção científica moderna do espaço físico. A perspectiva, técnica renascentista que modificou a forma de representação do espaço na pintura, prenunciou um novo interesse empírico pelo funcionamento do mundo físico.

É interessante notar como esse caminho de mão dupla tomou corpo a partir do final do século XX. Machado (2009) ressalta como o conhecimento científico vem se libertando da “realidade objetiva” absoluta e determinista, aceitando de forma mais confortável ações baseadas no caos e no acaso, como acontece no universo do artista. Na verdade, esse caminho tem sido crucial para o desenvolvimento competitivo das instituições ligadas a tecnologias de ponta. Seja entre gigantes da economia global, preocupados em expandir o uso das inovações tecnológicas de forma a tornar o grande público receptivo a uma presença intensa da mídia na paisagem urbana, seja entre centros voltados para a pesquisa tecnológica e bélica, os artistas têm sido cooptados para gerar conteúdos criativos a partir de linguagens inovadoras e reinvenção de formatos, para utilizar de forma desviante e extensiva

novas descobertas – como a holografia que a artista Harriet Casdin-Silver ajudou a tirar do modelo excessivamente científico em sua colaboração junto ao American

Optical Research Laboratories ligado ao Massachusetts Institute of Technology

(MIT) – e outras contribuições que se baseiam no olhar sensível e imaginativo da arte (MACHADO, 2009).

Obviamente, essas parcerias acabam gerando discussões quanto a uma possível submissão da arte à tecnocracia, visão que é rebatida por Machado, ao ressaltar que a arte sempre esteve ligada a algum tipo de mecenato como o da Igreja, da nobreza ou de colecionadores. No contexto atual, a arte tecnológica depende imensamente do patrocínio de empresas e instituições – vide os grandes festivais brasileiros de arte eletrônica, tecnológica ou ligada a mídias móveis realizados por grandes marcas de bancos e de empresas de telefonia móvel – pois são elas as detentoras dos meios de produção. Contudo, é importante lembrar que, sem a intervenção dos artistas, os sistemas, processos e dispositivos gerados pela indústria tecnológica cairiam no cotidiano da população, com seus discursos tecnocratas embutidos de forma ainda mais enrustida, pois é a atividade artística que traz à tona as finalidades de dominação, inclusive biopolítica, que estão nas entrelinhas de seu uso. Machado, então, apresenta o paradoxo que a arte envolta pela tecnologia enfrenta: revolucionar os seus próprios conceitos, pelo uso dos processos tecnológicos em sua concepção, sem esquecer seu papel ativista em explicitar a mecânica discursiva da máquina. Aqui, mais uma vez, caem fronteiras e coexistem, em cada obra da arte tecnológica, a força de legitimação da sociedade industrial e a sua própria desconstrução.

Quando a arte se processa por intermediação de máquinas, várias outras questões saltam de suas engrenagens. Junto com o surgimento da fotografia e sua pretensão em se tornar arte, fizeram-se ouvir as primeiras vozes críticas quanto ao real valor artístico de seus produtos, afinal parecia que apertar um botão era a que se limitava o “artista” que se postava por trás da câmera, essa a verdadeira “autora” das obras. Com a evolução das máquinas fotográficas, essa questão se mantém e fica ainda mais dúbia, pois todo tipo de controle de entrada e variações de luz pode ser feito pela câmera – agora associado aos retoques feitos por softwares de tratamento de imagem –, o que parece economizar ainda mais o trabalho do fotógrafo em aplicar seu talento imaginativo. A “exposição” diária de fotos com

qualidade estética esmerada nas redes sociais pode ser um grande exemplo do fenômeno de ascensão do “apertador de botões” ao papel – nem que seja efêmero – de “artista”.

Para se colocar essa questão em discussão, é preciso antes passar por algumas reflexões essenciais. A primeira diz respeito ao fato de que a máquina não é neutra na construção dos significados da mensagem, ela expressa códigos específicos, que têm muito a ver com o seu tempo e com o pensamento vigente, e são independentes dos conteúdos pessoais que o artista possa ter como intuito construir. A “inteligência” inscrita na máquina, como diz Machado, pode até se sobrepor, ser mais relevante em termos de significações, do que os que o usuário pretende impor às suas produções. A máquina expressa ideologias, modos de ver o mundo, representações simbólicas do contexto histórico, político, social e cultural de seu tempo. Ou seja, o simples ato de apertar um botão significa colocar em movimento potenciais discussões que vão muito além da técnica.

Outra reflexão importante é a que se refere ao campo experimental que surge em torno de todo desenvolvimento tecnológico, uma dimensão inventiva e até anárquica que é fruto da ação de visionários ou apenas de pessoas cheias de imaginação que trabalham com desvios, reconfigurações, deturpações, reformatações que vão além do que se idealizou na origem da criação daquele artefato. Apesar das aventuras dos usuários mais inventivos, Machado lembra que há uma tendência muito forte à estereotipia no uso das máquinas, ou seja, seu uso dentro das normas rígidas de seu mecanismo, inerentemente baseado na repetição. A cada vez que surge alguma inovadora utilização de uma máquina, vem atrás uma multidão de repetidores dessa inovação, levando à exaustão cada micrograma de criatividade que poderia haver no ousado ato original. A reinvenção constante da tecnologia que envolve essas máquinas, inclusive derivando para o campo do desenvolvimento da inteligência artificial – uma forma das máquinas “aprenderem” novos processos por conta própria –, é um caminho necessário para enfrentar os desafios de se trabalhar criativamente com elas.

Sem dúvida, há que se pesar todas essas reflexões quando se pensa nas consequências de se “apertar botões” na criação artística. O criticado determinismo tecnológico que poderia estar impresso nesse ato é rebatido por Machado, quando

ele lembra que qualquer técnica, mesmo as mais artesanais, tem em si guardadas as possibilidades e limitações de sua utilização. Ainda assim, é uma temeridade para qualquer um tentar definir onde estão esses limites, tomando como exemplo a própria fotografia, que tem mais de um século de existência e ainda hoje é explorada de formas inovadoras. O que nos leva a pensar sobre como o artista pode levantar as questões da criatividade e da liberdade exatamente nesse contexto de domínio das máquinas, principalmente as relacionadas às redes de comunicações globais, como forma de colocar em pauta essa discussão.