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5.2 A ARTE DENTRO DO ESPAÇO

5.2.2 As paredes disciplinares

São significativos alguns aspectos da noção espacial que se depreende do fazer artístico dos séculos XVII e XVIII, tanto na dimensão do espaço de exibição e de guarda de obras, quanto na utilização da técnica da perspectiva, na formação de um “vocabulário” que tanto expressa os conceitos de seu tempo, como vai além e transborda conteúdos próprios desse saber, que age sobre os acontecimentos, não só os confirmando, mas amplificando-os. O aparecimento do novo mecanismo de poder que Foucault denominou de disciplinar parece impregnar com sua lógica também a reflexão artística sobre o espaço, embutindo em vários procedimentos e instrumentos o seu modo de concepção e de atuação. Essa nova mecânica que incide sobre os corpos e o modo como devem agir parece se concretizar na rigidez formal da relação das instituições de exibição artística com o público, desde os herméticos espaços das coleções aos aristocráticos museus e sua forma de “domar” o populacho que, muito a contragosto, tinha sua entrada autorizada em seus domínios altamente elitistas. O corpo do espectador era controlado de todas as formas: desde a obrigatoriedade de vestir trajes “compatíveis” com o ambiente refinado das salas de exposição, falar baixo, caminhar devagar, manter o que era considerado pelas classes dominantes como uma postura digna dos espaços a que a selvagem classe popular agora podia adentrar, tudo se dava na ordem e na norma, no rigor vigiado dos passos do público por corredores e salas de construções portentosas. O princípio disciplinar já se manifestava nessas edificações – apesar de sabermos que a sociedade disciplinar ganhou força no século XIX, tornando-se um dos instrumentos fundamentais da implantação do capitalismo (FOUCAULT, 1999b)

– instituindo o poder das classes dominantes por meio de dispositivos de coerção material. Os espaços de exibição de arte, usados como distintivos de poder pela nobreza e pela aristocracia, atuam, nessa lógica, como aparelhos de produção de conceitos de um poder que disciplina corpos para disciplinar mentes.

Foucault (2008) sintetizou a forma como a disciplina se concretiza espacialmente ao afirmar que esse tipo de poder é da ordem do edifício, uma lógica que se traduz no tratamento das multiplicidades de corpos submetidas a multiplicidades artificiais no interior de espaços vazios e fechados, organizando-as de forma hierárquica e funcional, como forma de comunicar indubitavelmente como se dão as relações de poder. Os primeiros museus são, sem dúvida, parte dessa construção, organizando-se como microcosmos de distribuição hierárquica em que artistas e detentores-protetores das obras se situam no topo e o povo na base, sempre “vigiados” para que não ultrapassem os limites impostos a ele, “com o mínimo de dispêndio e o máximo de eficácia” (FOUCAULT, 1976, p.43). O espaço museológico nasce do princípio disciplinar como espaço que foi isolado para centrar ali as forças do poder. Ali, paredes foram erguidas para circunscrever um espaço onde os mecanismos do poder se colocam em pleno e exemplar funcionamento.

Adentrando o século XIX, observa-se que a defesa da razão, da liberdade de pensamento, da educação e do progresso, base do pensamento iluminista, tornam o museu a instituição ideal para a sistematização e domínio do saber. Essa noção enciclopédica do espaço museológico, segundo Basbaum (2011), está na origem da concepção moderna dessa instituição:

(...) uma das vertentes que conduzem à formação da ideia de museu é exatamente o impulso em conceituar com clareza uma ordem das coisas e do mundo, em que uma forma de pensamento conduz à verdade – e a obra de arte é uma das expressões desta procura e deste encontro, articulando de forma singular autonomia plástica e recortes de possibilidade discursiva. (BASBAUM, 2011, p.185)

O que se vê nos espaços de exibição da arte, nesse momento, é que eles expõem também outra coisa: o desejo, advindo da Revolução Francesa, de organizar o saber e o conhecimento, como forma de consolidar o poder recém- adquirido da burguesia. A instituição museológica torna-se um dos instrumentos ideais às necessidades da burguesia em se confirmar como classe dirigente.

A partir de 1792, criam-se na França quatro museus com objetivos explicitamente políticos: o Museu do Louvre, o Museu dos Monumentos, o Museu de História Natural e o Museu de Artes e Ofícios. É emblemática a preferência desses espaços pelos valores clássicos da Grécia e Roma antigas, em detrimento da arte medieval, numa clara ruptura com o poder da nobreza e da aristocracia pré- revolucionárias e reafirmação dos novos tempos de ascensão da burguesia (ARGAN, 1992).

Entre fins do século XVIII e a metade do século XIX, surgem outros museus europeus, como o Museu Britânico em Londres (1753), Museu do Prado, em Madri (1819), o Belvedere de Viena (1783) e o Museu Real em Amsterdan (1808). Argan (1992) ressalta que é nessa época que se forma a nova ciência das cidades, a urbanística, com a proposta de que a cidade apresente uma unidade estilística correspondente à ordem social. Assim, seus edifícios, em que predomina a arquitetura neoclássica, primam pela função se sobrepondo à forma, e a uma espacialidade racionalmente calculada. As cidades não são mais patrimônio do clero e das grandes famílias, segundo o autor, mas “instrumento pelo qual uma sociedade realiza e expressa seu ideal de progresso”. Os chamados “arquitetos da revolução” colocam em prática o sonho napoleônico dos grandes espaços – grandes praças, ruas largas, grandes edifícios neoclássicos – quase sempre destinados a funções públicas. Segundo o autor, quase todas as cidades europeias passaram por uma fase neoclássica, reflexo da “vontade de reforma e adequação racional às exigências de uma sociedade em transformação” (ARGAN, 1992, p.23).

O autor reconhece nesse que é denominado de período neoclássico (coincidindo, grosso modo, com a Revolução Francesa e o império napoleônico) características como o equilíbrio e proporção dos volumes e a sobriedade dos ornamentos. Referindo-se especificamente à arquitetura, ele afirma que

não deve mais refletir as ambiciosas fantasias dos soberanos, e sim responder a necessidades sociais e, portanto, também econômicas: o hospital, o manicômio, o cárcere, etc. (ARGAN, 1992, p.21).

Segundo ele, a técnica é, agora, instrumento racional que deve servir à sociedade. A mecânica do poder disciplinar, não mais ligada ao território, como o poder soberano, mas à organização funcional e eficaz dos espaços, empreende no século XIX uma atuação amplificada na imposição de coerções disciplinares que

garantissem a coesão do corpo social. Como se verá, a fábrica fordista no início do século XX se transformará no ápice da gradativa expansão e fortalecimento do poder disciplinar a partir daí, assim como a instituição museológica continuará como um dos dispositivos de consecução da norma disciplinar.

Huhtamo (2009) chama a atenção para um aspecto peculiar do espaço museológico do século XIX, que contribui para a compreensão da relação distante e respeitosa do público quanto às obras ali expostas. Nesse período, a condição de “valor de culto” da arte – como “templo do belo e do sublime”, os museus incentivavam o tratamento quase religioso direcionado às obras de arte – era substituída gradualmente pela de “valor de troca”, assumindo seu papel de “propriedade privada”. Como produtos comerciais, colecionáveis e produtores de

status para a burguesia, negavam-se ao “toque” vulgar e invasivo dos visitantes.

Assim, a manutenção da distância física em relação às obras era determinada por um mecanismo ideológico da época. Por essa mesma lógica ideológica, os museus passaram a propor, a partir da metade do século XIX, uma democratização de seus espaços, no sentido de se abrir para a era das massas. Mesmo com as obras trancadas atrás de vitrines lacradas e cordas, o museu é comparado por Huhtamo às lojas de departamentos que começaram a se proliferar nessa mesma época, com suas mercadorias expostas também em vitrines aos olhos cobiçosos dos visitantes/consumidores. O autor defende que o museu, a igreja e a loja de departamentos constituíam-se em mecanismos de regulação de comportamentos, visão que coaduna com a teoria de poder disciplinar de Foucault. “O museu pode ser visto como um maquinário ideológico cujo objetivo era atenuar e amenizar tensões sociais crescentes” (HUHTAMO, 2009, p.117).