• Nenhum resultado encontrado

5.2 A ARTE DENTRO DO ESPAÇO

5.2.3 O cubo branco disciplinar

A partir da segunda metade do século XIX, as transformações advindas da Revolução Industrial, em maior ou menor grau em todo o Ocidente, exerceram profundo impacto em vários âmbitos da vida em sociedade. As inovações tecnológicas, a mecanização e as novas estratégicas de organização do trabalho, a serialização e padronização da produção, o crescimento da população das cidades em torno das fábricas que iam surgindo, mudaram a face do mundo, seja

econômica, cultural ou socialmente, gerando também transformações drásticas no campo artístico.

Argan (1992) considera inevitável que transformações nas estruturas e na finalidade da arte acontecessem com o nascimento da tecnologia industrial e o declínio das técnicas refinadas e individuais do artesanato.

A passagem da tecnologia do artesanato, que utilizava os materiais e reproduzia os processos da natureza, para a tecnologia industrial, que se funda na ciência e age sobre a natureza, transformando (e frequentemente degradando) o ambiente, é uma das principais causas da crise da arte. (ARGAN, 1992, p.17)

Segundo Cauquelin (2005, p.34), “não é por acaso que se situa o início da arte moderna por volta de 1860”. É nessa época que se inicia a crise da Academia, instituição hegemônica que, de forma inconteste até então, determinava o valor dos artistas e suas obras, concedendo premiações e gerindo suas carreiras. Foi o desenvolvimento industrial um dos fatores determinantes de sua queda, já que o mercado comprador de arte, a burguesia enriquecida, crescia e demandava uma quantidade maior de obras à venda. Os artistas passam a reivindicar um estatuto menos centralizador e autoritário, que conceda mais liberdade e direito à exposição. Cauquelin (2005, p.36) afirma que “a liberação que a arte moderna pretende perseguir diante do sistema de arte acadêmico está ligada ao liberalismo econômico, que é a marca de um regime de produção e de consumo”.

O desenvolvimento da fotografia veio se juntar, de forma decisiva, aos fatores que construíram o cenário de mudanças drásticas que impactaram a própria concepção da arte a partir da segunda metade do século XIX. Trata-se, segundo Compagnon (1996, p.44) do início “da história da purificação da arte, de sua redução ao essencial”.

O pressuposto é um afastamento cada vez mais radical em relação à representação e à referência – denominada mímesis, desde Aristóteles – a fim de reatar com uma base mais autêntica da arte. (COMPAGNON, 1996, p.45)

Da constituição arquitetônica do museu universalizante, atemporal e propositor de verdades estáticas e finais do início do século XIX – Grossmann (2011, p.194) descreve o espaço museológico nessa fase como formado por “pontos de

vista particulares”, cuja reunião se guiava, essencialmente, por uma “consciência histórico-científica” e convenções dedutivas/lineares, próprias do Iluminismo – o museu passa, então, pela consolidação do chamado “cubo branco”, espaço que pretendia atender às demandas de transformacão histórica da arte moderna – segundo Grossmann (2011, p.194) “um museu no qual as obras são expostas no mais apropriado e comunicativo ambiente”. O contexto do espaço da galeria passa a ser considerado na interação entre obra e visitante. A parede, agora participante ativa da arte, adquire conteúdo e torna-se parte integrante da estética da obra nela pendurada.

A pintura predominante de Cézanne à Color Field acompanha a parede, confronta-a com coordenadas verticais e horizontais, mantém o princípio da gravidade e o observador ereto. (O’DOHERTY, 2002, p.32)

É com o Modernismo que, segundo O’Doherty (2002), o recinto da galeria se transformou no “cubo branco”, asséptico, atemporal e isolado do mundo exterior, um ambiente homogêneo que exalta as características arquitetônicas do próprio edifício. O autor compara a idealização rigorosa desse espaço com os preceitos de construção de uma igreja medieval. Janelas lacradas, paredes brancas, luz artificial, pisos de madeira polidos ou acarpetados, tornam, como ele mesmo ironiza, “até um cinzeiro de pé quase um objeto sagrado”. Nesse espaço, o observador é quase um intruso, um herege no Éden sacralizado e resguardado da realidade mundana das ruas, ruídos e cheiros da cidade caótica ao seu redor. Na verdade, ele se torna o Olho, uma entidade despojada do corpo, pois, segundo o autor, para vislumbrar a eternidade artificial do espaço expositivo modernista, é preciso abandonar a individualidade em favor dos interesses do grupo (a “casta” que se ratifica no topo da estrutura de poder pela imutabilidade aparente do cubo branco).

Não é difícil vislumbrar o campo da arte – esse ambiente rigoroso em sua missão de definir o que merece ser chamado de arte e como ela deve ser apreciada – como um dispositivo da sociedade disciplinar foucaultiana. Assim como as universidades centralizam e se apoderam do saber, os espaços expositivos modernistas, nas palavras de Basbaum (2011, p.187) consagram “o museu como máquina de produção e atribuição de valor à obra de arte”. A própria presença do objeto no espaço museológico já o alça à posição de “exemplaridade”, de uma peça representativa que deve ser destacada das demais. Sperling (2011) corrobora essa

ideia, acrescentando que a pretensa neutralidade do cubo branco modernista na verdade enquadra a atitude contemplativa do observador numa normatização rigorosa.

Como instrumento da sociedade burguesa e do capitalismo industrial, o museu modernista se junta a outras instituições – universidades, escolas, bibliotecas – no disciplinamento dos saberes, nesse caso selecionando os objetos, definindo seu valor artístico e homogeneizando a produção artística.

Como nó físico do sistema de circulação e exposição de arte, suga especificidades, lima suas arestas e as “adapta” ao seu espaço, inclusive as obras que tomam como temática o questionamento institucional, político e espacial do museu. (SPERLING, 2011, p.177)