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A explosão espacial da modernidade fluida

5.1 O ESPAÇO DENTRO DA ARTE

5.1.3 A explosão espacial da modernidade fluida

É significativo observar como a arte moderna seguiu um caminho de desmonte de certa organização de poder, ao elucubrar novas relações entre sua

própria existência como campo de saber e o espaço. Em suas novas experimentações espaciais, a arte inicia uma trajetória que, décadas mais tarde, vai “destronar” o artista, nivelando gradativamente seu grau de importância na criação ao do público, até o ponto da participação em conjunto da obra. Ao se prontificar em destruir o naturalismo e sobrepor ao uso da perspectiva outras soluções espaciais que se negam ao ilusionismo tridimensional e, ao mesmo tempo, se encaminham ao desvelamento do fazer do artista – na exploração de um “espaço em obra”, como chama Tassinari (2001) –, parece que a arte intenta derrubar fronteiras entre artista e público, dessacralizar-se e, com isso, confrontar qualquer condição anterior de si mesma como dispositivo de poder. A forma como a arte moderna descontrói a racionalidade dos espaços perspectivos, lançando-se a explorações que tendem a destruir a interioridade espacial da obra, que é trazida para uma exterioridade em que o espaço real passa a constituir o espaço da obra, rompe barreiras entre uma arte fora e acima do mundo comum e o público. Todo o aparato conceitual e técnico herdado de épocas anteriores, que colocavam a arte como uma das engrenagens do mecanismo do poder que disciplina corpos em organizações espaciais normativas, como se verá a seguir, começa a ruir na medida em que a arte destrói seus próprios mecanismos de disciplinamento espacial, tanto do corpo do espectador, quanto do próprio artista. A pintura que explode os limites da moldura, a escultura que se liberta do pedestal são movimentos que parecem se afastar propositalmente de qualquer ordenamento de um espaço que até ali estava claramente dividido entre espaço da arte e espaço “real”.

Pode-se dizer que os caminhos da pintura e da escultura, na verdade, se cruzaram, a partir do modernismo, na busca gradativa do que Oiticica (2006, p.82) chama de “espaço como elemento totalmente ativo”, ou seja, a transformação do fundo num elemento vivo da construção artística. Sua trajetória de transição entre o quadro e o espaço, iniciada, segundo o próprio artista, no ano de 1959, tem como ponto fundamental a espacialização da cor, que ensaia escapar dos limites planos da tela para invadir o espaço tridimensional. Essa fórmula que o artista chama de

estruturas-cor no espaço e no tempo, se orienta em direção a “tridimensionalizar” a

cor, assim como inserir o sentido do tempo nesse processo, intenção que desemboca num rompimento da atitude contemplativa do público, agora instado a participar mais ativamente do ato de recepção da obra. Em 1960 cria os primeiros

Núcleos e Penetráveis, primeiras expressões do artista nessa concepção de

estruturas no espaço e no tempo, constituídas de peças de madeira pintadas em cores quentes e penduradas no teto por fios de nylon, cujo movimento provocado pelo deslocamento do espectador passa a ser considerado integrante da obra enquanto experiência80. O artista ressalta a integração completa entre a estrutura- cor e o espectador, tornando esse último um “descobridor da obra”, na investigação de cada parte que a compõe.

Ao caminhar no sentido de subverter a relação sujeito-objeto, tendendo a superar o diálogo contemplativo, por meio da concepção de estruturas que passam a se desenvolver no espaço e no tempo, Oiticica dá um salto significativo em direção a compreender a obra como experiência compartilhada entre artista e público, ao defender a apreensão da forma no próprio processo de desenvolvimento da obra no espaço e no tempo. Em outras palavras, Oiticica considera que a obra é o acontecimento, a experiência que se desenvolve entre espectador – agora “participador” – e objeto artístico. Suas declarações parecem remeter diretamente ao tipo de percepção próprio da arte hipertextual realizada por meios digitais: “Triângulos, círculos e quadrados não são o ‘fim formal’ dessa escultura, mas elementos que criam a estrutura, que ao se desenvolver no espaço e no tempo se realiza como forma” (OITICICA, 2006, p. 94).

A confluência de boa parte da arte contemporânea em direção a novas conformações espaciais a partir da segunda metade do século XX é intensa e demonstra as inquietações dos artistas quanto às mudanças radicais de relação espaço-tempo em sua época. Muitas práticas como a arte cinética, a op art, a land

art e a arte minimalista buscaram novos diálogos da obra com o espaço e o tempo.

Oiticica cita o americano Jackson Pollock – que provoca o que ele chamou de “abalo sísmico” no mundo da pintura com sua action painting – para evidenciar o quanto o próprio ato de pintar já se recoloca no espaço, como uma ação que tem valor em si, o que insere a obra de Pollock numa expressão de “arte no espaço”, como diz Oiticica. Michael Fried, em seu artigo “Arte e Objetidade” (2002)81, levanta questões sobre a minimal art, ou arte literalista como ele prefere denominar, no sentido de                                                                                                                

80 Disponível em:

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&c d_verbete=2020, acesso em 20/02/2013.

defini-la como uma arte que busca fugir do ilusionismo do espaço circunscrito a uma moldura e chegar à tridimensionalidade como forma essencial de expressão, mas necessariamente sem se confundir com a escultura. Fried chama a atenção para o aspecto “teatral” da obra minimalista – que perde “interior” e ganha uma exterioridade que a torna um “objeto em uma situação” – por pensar a obra num contexto que leva fundamentalmente em conta um “cenário” do qual faz parte o ambiente e o movimento do espectador à volta do objeto artístico. Nessa teatralidade, a peça comumente é construída em proporções maiores a fim de forçar o espectador a manter certa distância na sua apreciação, caminhando em busca de variações de luz e de sombra e de ângulos diversos de apreensão.

Assim como Oiticica e Fried, Ferreira Gullar (1959) explorou no mesmo período as fronteiras espaciais e, por conseguinte, temporais, porque passava a arte contemporânea, desenvolvendo a “teoria do não objeto”, seguida com muito interesse por Oiticica em seus trabalhos e reflexões. A transição das formas representadas para as formas criadas, do espaço representado para o espaço real, segundo Gullar (2007, p.93), faz convergir pintura e escultura para um ponto comum, em que suas denominações originais já não têm tanta propriedade. “Livre de qualquer significação que não seja a de seu próprio aparecimento”, a arte sente a necessidade desse deslimite e como não objeto passa de representação para “presentação”. Nesse movimento, ela se liberta do confinamento, da incomunicabilidade com o espaço exterior simbolizado pela moldura ou pelo pedestal, tendo como fundo o espaço natural de existência, o próprio espaço real. Interessante fazer um paralelo com a forma como Fried aborda a questão específica da arte minimalista com um olhar similar, mas ligando a obra a uma “objetidade”, ou seja, sua aparência de não arte leva a peça a existir como “objeto” – e nessa nova condição pretende se diferenciar tanto da pintura quanto da escultura. Objeto ou não objeto, arte ou não arte, qualquer que seja o sentido que cada pesquisador, teórico ou artista seguiu, grande parte do esforço empreendido por eles se voltava para realocar a arte no espaço e no tempo, enxergando a arte não só como um sintoma de seu tempo, mas como construtora de novos entendimentos de um mundo em mutação.

Grossmann (1996) coloca como ponto de transição da arte moderna para a contemporânea algumas experimentações emblemáticas, relacionadas ao sentido

da representação na arte. Ele cita a obra A traição das imagens (1926), de Magritte, como um momento autocrítico da arte moderna, em que o uso da metalinguagem promove um deslocamento das verdades a princípio usadas pelo observador na contemplação do quadro (ele cita o ensaio de Michel Foucault, que analisa a obra, como fonte desse comentário). Magritte desconstrói as premissas do meio, revela a existência da própria tela, expondo o que antes era dissimulado na arte. Assim como as experiências do espaço “em obra”, como o chama Tassinari, que desvelam o fazer do artista, a metalinguagem usada por Magritte também desmistifica a figura do artista “gênio”. Por conseguinte, com a “morte” do autor, como declarou Barthes (apud GROSSMANN, 1996), começa a ficar em evidência o espectador, cada vez menos um observador passivo e mais um ator consciente e crítico que faz parte da condição de existência da obra. Os ready-mades de Marcel Duchamp vão na mesma direção, ao questionar o papel legitimador do espaço expositivo, colocando o espectador – incentivado a assumir uma posição crítica frente à obra – na mesma posição hierárquica do artista. O contexto de existência da obra desloca-se claramente de suportes ou da noção de representação da arte, para a dimensão relacional do encontro entre artista, obra e espectador, agora participante. É a dimensionalização desse espaço relacional entre público, obra e ambiente, uns atuando sobre os outros, que se propõe a constituição de uma nova forma de experiência do artístico. Essa que vai se tornando uma “rede” de interligação que ainda vai ser ampliada pela entrada de mais “nós” como produtores, curadores, técnicos, máquinas, cientistas e outros, numa inter-relação criativa consciente, crítica e colaborativa irá, nos próximos anos, se configurar na concepção espacial das inúmeras variantes da arte computacional em meios digitais que, por esse princípio conceitual, está sendo chamada, neste trabalho, de “rede-arte”. O pensamento de Bourriaud (2009b) sobre os caminhos da arte contemporânea, principalmente a partir dos anos 90, segue esse mesmo princípio, ao propor que

cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito. (BOURRIAUD, 2009b, p. 31)

Interessante como Grossmann usa o termo net-art para designar essa arte que nasce do momento de inter-relação entre a proposta do artista – propositalmente não mais denominada como “obra”, por Grossmann, pois estamos

diante, agora, de uma estrutura inicial que só acontece como trabalho artístico no momento da interação com o espectador/participador – a disposição dos elementos que darão forma ao “momento-arte” – ambiente, objetos, máquinas e todo tipo de aparato necessário para proporcionar a ação – e o usuário, agora consciente e crítico. Grossmann, assim, usa o termo que irá denominar a arte feita nos domínios da internet para definir amplamente a arte que se processa na dimensionalidade82 – e que acaba abarcando também a net art no conceito de arte de internet, o que reforça a ideia da estrutura de pensamento em rede como a lógica predominante da arte contemporânea.

Seguindo o modelo de rede, a arte passa a se formar no “entre” – entre artista e público, entre participante e proposta artística, entre essa e seu momento de consecução – e só nesse instante fugidio ela existe. Sem a interação ou sem alguma dessas instâncias, que sozinhas são incompletas e sem sentido, não existe “obra”. Como formação de rede, a arte hoje transcende ordenações temporais lineares, fornecendo a sua própria localização espacial e temporal, pois existe a partir de interfaces relativas e temporárias que tornam a experiência um “acontecimento” em si, num modelo de evento que é formador da contemporaneidade. Nesse sentido, a arte da dimensionalidade funciona na lógica sincrônica – como teorizada por estudiosos de uma condição pós-moderna na qual viveríamos hoje – de fusão de passado-presente-futuro num instante efêmero. Ao detonar a experiência artística, o participante põe em processo um momento que vence a linearidade do tempo, criando o que Oiticica chamou de “totalidade ambiental” (apud GROSSMANN, 1996), operacionalizada por um sujeito atuante no espaço e no tempo. Portanto, por mais que tentemos buscar no passado uma trajetória histórica que venha a desembocar nessa arte da relação e enxergar no futuro sua continuidade na arte das novas mídias tecnológicas – numa lógica diacrônica que não necessariamente está descartada nesse momento dito pós-moderno –, quando nos colocamos a partir do foco do usuário, todos os tempos se fundem e se confundem na efemeridade eterna do momento da experiência.

                                                                                                               

82 Segundo Grossmann, a dimensionalidade toma o lugar da visualização, como uma experiência

5.2 A ARTE DENTRO DO ESPAÇO