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Inteligência em rede: o mundo da informação

3.1 A INTELIGÊNCIA FLUIDA DAS REDES

3.1.2 Inteligência em rede: o mundo da informação

Para compreender o surgimento do fenômeno das redes, é fundamental lançar um olhar sobre a emergência do Informacionalismo como nova base material e tecnológica da atividade econômica e da organização social que se iniciou a partir da década de 80, nos passos da reestruturação global do capitalismo, tornando-se sua ferramenta básica. Castells (1999) localiza a revolução tecnológica que veio a constituir esse novo quadro, nos Estados Unidos, mais especificamente na Califórnia dos anos 70. O Vale do Silício, famoso por concentrar centros de pesquisa e desenvolvimento na área da tecnologia de ponta, foi o berço das grandes conquistas que, em conjunto, tornaram-se o ponto de partida da trajetória que culminou na mudança de paradigma tecnológico: o desenvolvimento do circuito integrado, do microprocessador e do microcomputador, entre outras tecnologias importantes. Como resultado dos progressos que vinham sendo alcançados desde a Segunda Guerra, “mãe de todas as tecnologias”, segundo Castells, esses avanços se somam à acelerada evolução da capacidade de formação de redes – em meados da década de 80, os computadores não são mais pensados para atuar isoladamente, mas compartilhando suas atividades em redes cada vez mais amplas – para se tornar base do processo de reestruturação socioeconômica dos anos seguintes, desembocando no nascimento da sociedade informacional em rede. Em síntese, não se pode entender esse processo revolucionário sem levar em conta a interação entre duas tendências: de um lado o boom do desenvolvimento de novas tecnologias da informação e de outro, a intenção da máquina capitalista de utilizar essa como uma tecnologia de poder em seu reaparelhamento.

Entre uma infinidade de faces pelas quais se poderia definir essa como uma revolução só comparável a Revolução Industrial, é a sua penetrabilidade em todas as esferas da atividade humana que assume um papel preponderante no entendimento de como ela contribuiu de forma tão radical na conformação do cenário contemporâneo da sociedade em rede. A tecnologia da informação deriva seus avanços para áreas tão diversas como a medicina, a produção de energia, a

tecnologia dos transportes, as técnicas de produção, a agricultura, os mercados financeiros, as telecomunicações, atingindo não só âmbitos econômicos, mas impactando de forma importante as relações sociais, os padrões de comportamento e os modos de ver o mundo.

André Parente (2004a) enfatiza a forma como as redes passaram a ter papel importante na formação de subjetividades a partir do enfraquecimento do Estado contemporâneo frente aos interesses do capital internacional, em conjunto com o que ele chama de “morte de Deus” e a emergência de dispositivos informacionais cada vez mais dominantes em todas as esferas. Ele faz referência à mudança de conformação da rede “árvore” para a rizomática – em que a hierarquização tende a dar lugar a uma pluralidade de pensamentos em relação de igualdade de importância – como o momento em que a rede torna-se “o paradigma e personagem principal”, do início do domínio das tecnologias da informação e da comunicação na nova ordem mundial.

Esse olhar de Parente leva a, como ele próprio diz, “pensar a comunicação como lugar da inovação e do acontecimento, daquilo que escapa ao pensamento da representação” (PARENTE, 2004a, p.92). Indo além, ele cita Guattari, Deleuze e Foucault, ao defender que cada dia mais a subjetividade depende dos sistemas maquínicos representados pelos dispositivos infocomunicacionais, ideia sustentada por todos eles.

Dessa forma, esse processo de construção de subjetividades estaria passando pelo ambiente e funcionamento das redes – especialmente as eletrônicas –, sendo então modelado por esse novo paradigma que hibridiza homens e máquinas, desterritorializa o espaço e o tempo, muda as referências quanto a presença e ausência, pluraliza pensamentos e, por fim, coloca em convivência harmoniosa subjetividade e objetividade.

Pierre Lévy (2004) defende que a cada período histórico um pensamento dominou a ciência e, por consequência, outros campos da atividade humana: nas culturas pré-modernas foi o modelo narrativo, no período moderno, a lógica e na pós-modernidade, os sistemas de simulação computacional ou, como ele denomina, a ideografia dinâmica. Uma “inteligência pós-moderna” nasce, então, para dominar o novo pensamento científico. Levando em conta, como Levy defende, que a

inteligência congrega tanto as capacidades humanas de perceber, lembrar, aprender, imaginar e raciocinar quanto sua dimensão coletiva, social e técnica ou tecnológica – pois não podemos exercer nossa inteligência sem usar os sistemas semiológicos como a linguagem, a língua, os sistemas de signos e os meios como a fala, a escrita, o livro, a fotografia, as redes telemáticas, assim como os instrumentos formais como as narrativas, a lógica ou as ideografias dinâmicas – então a inteligência pós-moderna, sem dúvida, vai se desenvolver a partir da relação de mistura e conexão criada pela rede.

Essa inteligência que nasce nas redes é traduzida por Bruno Latour (PARENTE, 2004a) em uma imagem: uma coleção de pássaros empalhados dispostos em uma prateleira de museu. Os animais são originários de vários ecossistemas pelo mundo, mas nesse momento estão ali, lado a lado com espécies que, no mundo natural, nunca conviveriam entre si. Nesse novo arranjo, a realidade natural própria de cada pássaro se perdeu, mas por outro lado abriu possibilidades, praticamente impossíveis na situação de realidade ambiental dos animais, de análise e de comparação, ampliando o saber proveniente de seu estudo. Essa é, na verdade, uma imagem que exemplifica a teoria da heterotopia de Michel Foucault (1967), o espaço típico da “época do simultâneo, da justaposição, do próximo e do longínquo” (PARENTE, 2004a, p.100). Foucault analisa a trajetória das concepções de espaço desde a Idade Média e chega à ideia da heterotopia como um espaço definido por suas relações de vizinhança, sendo esse o espaço característico das redes. Em conjunto com a “pantopia”, ideia de espaço desenvolvida por Michel Serres, que tem a rede como sua tradução – a reunião de todos os lugares em um lugar só – chega-se a um pensamento híbrido do mundo, em que se misturam processos de generalização e de singularização.

As experiências de simulação e visualização científica por computador, que Lévy chama de ideografia dinâmica, é a hibridização de dois modos tradicionais de pensar da ciência, que Michel Serres (apud PARENTE, 2004a) aponta como a ciência do geral (seu exemplo maior, segundo ele, é a geometria) e a ciência do particular (cujo modelo seria a geografia). A primeira pensa em esquemas, cria por meio de modelos, é virtual. A segunda privilegia a cópia, reproduz o real por meio de imagens. Essa ciência que generaliza não se preocupa com o detalhe, ela desenvolve modelos para ressaltar as semelhanças. A ciência que particulariza, ao

contrário, destaca as singularidades das paisagens. “De um lado, o esquema, a lei, o modelo, o inteligível, a arte da geometria. De outro, a imagem, a reprodução, a cópia, o sensível, a arte da cartografia.” (PARENTE, 2004a, p.101)

A imagem computacional – denominada fractal – gerada por algoritmos matemáticos fica, segundo André Parente, numa “dimensão flutuante” entre o sensível – a reprodução da realidade – e o inteligível – um modelo da realidade. A imagem fractal seria uma nova ciência em que modelo e imagem se unem, transformando as condições práticas e teóricas da experiência. Couchot (2003) ressalta que essa imagem “numérica” – expressão de uma linguagem específica dos programas informáticos construídos por algoritmos e cálculos – não possui mais ligação física com o real, pois ela não se propõe a ser sua representação, mas uma simulação, uma reconstrução do real a partir de linguagem lógico-matemática. Arlindo Machado (2009) lembra que o conceito de objeto fractal faz paralelo com o que Leonardo da Vinci chamava de fantasia essata, uma interseção entre um modelo de conhecimento e um achado da imaginação.

Desse modo, podemos observar que as tecnologias da informação vêm trazendo à tona com mais ênfase a questão de como objetos, máquinas, suportes e técnicas se associam de forma complexa às nossas faculdades e sentidos nos processos de cognição, ao oferecer base para a formação de redes que mixam pensamento humano e dispositivos não humanos. Hoje já se torna obsoleta a ideia de se separar objetividade-máquina e subjetividade-ser humano, se é que algum dia já foi plausível se pensar assim. Se, segundo Guattari (1992), máquinas são investidas de desejo e têm como alimento a subjetividade que é produto de agenciamentos sociais múltiplos, hoje não se pode mais falar em diferenças entre natural e artificial. Nessa era que Ascott (2004) chama de “pós-biológica”, as tecnologias da informação permitem que se misturem na rede o objetivo e o subjetivo, dando espaço para que as capacidades humanas – o saber, a inteligência, a razão, a cognição – não se vinculem mais só ao cérebro, mas a um “corpo físico” que se estende maquinicamente pelas redes sociotécnicas, fazendo de nós uma “rede de redes”.

3.2. A REDE: RACIOCÍNIO LÍQUIDO DA CONTEMPORANEIDADE