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Nós na rede: a multiplicidade da arte e o controle

5.2 A ARTE DENTRO DO ESPAÇO

5.2.5 Nós na rede: a multiplicidade da arte e o controle

Lazzarato (2006) expõe o desdobramento do poder disciplinar para o poder de controle como uma necessidade, frente à forma como as diferenças e a

multiplicidade, que se aceleram e se expandem no século XX, cada vez mais passam a “escapar” das paredes disciplinares que tentam encerrá-las e homogeneizá-las. Assim, em vez de tentar disciplinar essas forças em um espaço fechado, passa-se a tentar apenas modulá-las, para mantê-las sob controle. Apesar de tal técnica de poder já poder ser reconhecida no final do século XIX, com a expansão dos meios de comunicação, ela conhece o apogeu a partir da década de 60, em significativa reação aos movimentos de contracultura, ao pensamento livre, às revoluções de costumes, ao crescimento dos movimentos de minorias e a todo um contexto de mudanças que tomaram força, principalmente, por volta do emblemático ano de 1968. Como já visto, as novas tecnologias que permitem a comunicação à distância – com ênfase na internet, que está nascendo nesse momento – assim como ampliam as mudanças de comportamento a proporções globais, fazem nascer um novo ator social, nascido sob seus auspícios: o público. Essa massa dispersa que não está ligada a um espaço específico, mas, ao contrário, tem seus integrantes influenciando-se uns aos outros à distância, é fruto das tecnologias da velocidade, que fundamentalmente empreenderam as mudanças espaçotemporais no mundo e, no seu rastro, permitiram o surgimento e emergência da cooperação entre cérebros que constitui o funcionamento em rede. Como forma de socialização ignorada pelas sociedades disciplinares, o público é constituído por indivíduos múltiplos que, ao contrário dos que se organizavam em classes, pertencem a mais de um aglomerado identitário, ou seja, cada um pode pertencer a mais de um tipo de público. Esse sujeito é, então, mimético, assumindo, simultaneamente, inúmeras dimensões de expressão, de opinião e de pertencimento.

A multiplicidade, como potência produtora de singularidades, é uma força que atravessou a modernidade, segundo Lazzarato, mas que se amplificou na metade do século XX em diante, o que pode ser observado também na trajetória da arte, das vanguardas modernas ao bifurcamento complexo de caminhos que se abrem na contemporaneidade. Se na modernidade, a força criadora da arte se voltava para a expansão e libertação de limites que a prendiam num espaço sacralizado, de artistas gênios e espectadores submissos a um poder de criação que se encerrava em um universo fechado e enigmático, na era da modernidade líquida o dualismo artista-

público83 vai sendo desmontado gradativamente, abrindo espaço para as múltiplas combinações que possibilitam que artistas e espectadores possam agir, sob diversos graus de cooperação, em conjunto no processo de produção artística. Não só esse dualismo entra em processo de questionamento na contemporaneidade, mas outros como arte-tecnologia, artista-cientista, processo-obra, humano-máquina e inúmeras outras formas de domesticação de forças que no turbilhão da multiplicidade em que a arte se propõe a mergulhar se abrem para infinitas possibilidades de atualização.

A emergência e predomínio da estrutura das redes permeando todos os âmbitos da vida no planeta torna-se a lógica espaçotemporal que prevalece sob o fenômeno da sociedade de controle, sendo, ao mesmo tempo, seu dispositivo de atuação por excelência e o desafio de que perpetuamente tem que dar conta para continuar em expansão. Esse desafio materializa-se na multiplicidade de singularidades sobre a qual essa técnica de poder pretende atuar, modulando-a e controlando-a, e que tem também sua condição de existência na rede de subjetividades, saberes, conhecimentos e informações, que se interpenetram e alimentam o espírito de cooperação e de compartilhamento que embute em si a potência da criação e da inventividade que teima em se expandir a despeito de qualquer controle. É, pois, sob a mesma lógica espacial e temporal que as forças da multiplicidade e das diferenças atuam em confronto com os mecanismos de controle. O processo de interseção mais intensa entre arte e tecnologia, que começa a se desenhar com a irrupção das ciências algorítmicas e com o consequente desenvolvimento da comunicação computacional em rede, por volta da década de 50 em diante, calçando o caminho de expansão das técnicas de controle, coloca a arte no âmago das questões fundamentais que permeiam as novas relações de poder que emergem das máquinas comunicadoras globais. O caminho de confluência quase natural que arte e máquinas passam a seguir – e que detona o fenômeno da arte cibernética, midiática, computacional, tecnológica, telemática ou qualquer das denominações, concepções e práticas que usam as redes e as máquinas de comunicação como matéria de criação e de discussão, principalmente                                                                                                                

83 Segundo Lazzarato, a forma de relação de poder por dualismos – operário/capitalista,

homem/mulher, etc – constitui a organização de forças que neutraliza a multiplicidade, capturando, codificando e regulando todas as variações inventivas e criativas das singularidades (2006, p.66/67)

a partir da década de 70 – colocou no centro das discussões mais prementes as questões relacionadas ao poder biopolítico que estende suas tramas de controle por meio das mesmas máquinas com que a arte se mixa em seus processos criativos.

Assim, vemos acontecer nessas décadas que se seguem ao crescimento exponencial das tecnologias de comunicação em rede, uma ênfase no caminho de desmaterialização da arte que, cada vez mais interfaceada pela tecnologia, se abre como processo, coloca em xeque conceitos espaciais anteriores, passa a agir de forma consonante com a efemeridade de um tempo não mais cronológico e derruba barreiras conceituais entre artistas, público, cientistas, técnicos e curadores. Essa complexidade de relações que abre espaço para combinações inesperadas entre elementos num emaranhado de ligações permite possibilidades infinitas de criações que fogem à reprodução de dualismos regulatórios por meio dos quais o poder do controle tenta capturar e domesticar as diferenças. Assim, a arte que funciona sob a estrutura inventiva da rede usa essa que é a própria metamáquina de dominação da sociedade de controle para libertar o virtual, a dimensão em que as possibilidades podem se atualizar nas múltiplas e infinitas formas do devir, fugindo de dualismos e de predefinições moduladoras da potência de transformação que emana da arte.

Essa arte que existe mais no tempo que no espaço – uma arte que, por sua própria natureza, significa no processo de atualização, ou seja, sua existência transcende a fisicalidade de um produto final, somente se concretizando no momento da interlocução com o público – exige agora espaços de apresentação e de conservação que entendam a lógica de objetos que têm duração no tempo. A efemeridade dos trabalhos de arte que usam a tecnologia digital e as redes, cuja propriedade processual difere sobremaneira das formas anteriores de arte também processuais e desmaterializadas, conforme defende Christiane Paul, curadora do

New Media Arts do Whitney Museum of American Art, levanta hoje questões

conceituais, filosóficas e práticas sobre como se dará a relação com os espaços institucionais de exibição e de guarda. A curadora vê hoje um cenário em que museus e galerias necessitam se transformar em espaços “vivos” de informações, aberto para trocas, criação colaborativa e apresentação transparente e flexível, levando em conta a interpenetração dos papéis de curador, produtor, artista e público participante (2009, p.345). Os tradicionais cubos brancos modernistas entram em choque direto com as novas formas de manifestação artísticas que têm

como denominador comum a computabilidade, o aspecto processual, a condição de

existência no tempo (quase sempre tempo real), a forma

participativa/colaborativa/performática da criação, a qualidade variável, gerativa e customizável dos trabalhos, apresentando todas essas características acontecendo em combinações e níveis variados. Todo esse novo contexto artístico já derruba, de cara, o conceito “favor não tocar” do “cubo branco”, pois interação e participação são inerentes às artes de rede. Mas muitos outros pontos problemáticos de acomodação entre essas novas manifestações artísticas e os contextos de exposição, preservação e documentação se abrem, segundo Paul.