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Tramas da biopolítica: a rede no novo paradigma do poder

3.2 A REDE: RACIOCÍNIO LÍQUIDO DA CONTEMPORANEIDADE

3.2.3 Tramas da biopolítica: a rede no novo paradigma do poder

Em profundo entrelaçamento com as mudanças de paradigma tecnológico que transcorreram concomitante com a reestruturação do modo de produção capitalista, está a transformação, também, do paradigma do poder. Foucault (2008) já disse que os mecanismos do poder não são fundados em si mesmos, mas, ao contrário, são circularmente a causa e o efeito das relações que compõem uma sociedade, sejam elas de produção, econômicas ou sociais. Assim, torna-se essencial para a análise de transformações globais da sociedade, tentar apreender o que os mecanismos de poder têm de específico em cada momento da história, entendendo os choques, lutas e combates que se desenrolam em determinado contexto histórico, dos quais as táticas de poder fazem parte.

                                                                                                               

46 Deleuze (1992) se refere a “vida como obra de arte”, como a constituição de modos de existência

ou estilos de vida que nos conformam, “a invenção de uma possibilidade de vida”. O autor defende que são esses os nossos processos de subjetivação ou, como disse Nietzsche “a operação artista da vontade de potência” (DELEUZE, 1992, p.123-124).

Assim, para entender de forma mais profunda como se deram as transformações decorrentes da emergência do paradigma tecnológico e da passagem do capitalismo industrial para o informacional, é preciso analisar o fenômeno que Foucault e outros autores após ele definiram como “assunção da vida pelo poder”, ou seja, uma estratégia política que passa a enxergar a espécie humana em suas especificidades biológicas e sobre elas quer exercer seu domínio – o “biopoder”.

Esse fenômeno, que vem se constituindo desde o século XVIII com o declínio do que Foucault denomina de poder da soberania e toma corpo com mais força a partir do século XIX – associado ao aprofundamento de outro paradigma de poder, o disciplinar –, encontra como solo fértil para crescer e se expandir a sociedade de controle que se desenvolve no fim da modernidade, segundo Negri e Hardt (2004), em meados do século XX. Enfim, para tentar compreender o quadro de atuação do biopoder hoje, é preciso averiguar como se processou essa trajetória de passagem histórica do poder soberano ao disciplinar e desse último para a sociedade de controle – e suas esperadas sobreposições de efeitos uns sobre os outros e sobre as relações econômicas e sociais.

Na visão de Foucault, as sociedades disciplinares se estabeleceram nos séculos XVIII e XIX e atingiram seu auge no início do século XX (DELEUZE, 1992), o que coincide com a emergência do modelo fordista de produção. Essa estrutura de poder se sobrepõe à anterior, do poder soberano, que tinha como princípio fundamental a prerrogativa de “fazer morrer e deixar viver”, ou seja, o direito de vida e de morte não era visto como natural, mas sim como constituinte do campo do poder político, produto da vontade do soberano. A esse poder de morte sobre os súditos, junta-se um direito novo a partir do final do século XVII, segundo Foucault, que não apaga o primeiro, mas vai perpassá-lo: o poder de “fazer viver e deixar morrer”. A pré-existência desse poder sobrepondo-se ao primeiro é esclarecida por Foucault ao lembrar que os súditos escolhem um soberano justamente para que suas vidas sejam protegidas. É sobre a lógica desse poder “de vida” que se funda o biopoder “uma forma de poder que rege e regulamenta a vida social no seu interior, seguindo-a, interpretando-a, assimilando-a e reformulando-a” (NEGRI, HARDT, 2004, p.162). O biopoder faz da vida objeto de poder.

A ascensão dessa técnica de poder se deu tendo como pano de fundo um outro arranjo de poder sobre o qual vai se integrar: o poder disciplinar. Com a ascensão do modo capitalista de produção, momento em que o homem ganha novo papel, não mais de súdito do rei, mas de mão de obra da indústria, a vida humana passa a novos níveis de interesse. O poder disciplinar institui-se como um conjunto de procedimentos centrado nos corpos individuais e que tem por finalidade distribuí- los espacialmente, assim como organizar um campo de vigilância em torno deles. Racional, propõe-se a aumentar a força física dos corpos, fazendo-os produzir sob um sistema de hierarquias exercido sob o menor custo possível. Na lógica da disciplinaridade, o corpo está sempre submetido a um espaço fechado de dominação, cada um com suas leis: a família, a escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão. Esses espaços e suas regras rígidas, enquadrados na racionalidade iluminista, tiveram na fábrica fordista homogeneizante, focada na ordenação do trabalho em movimentos rigorosamente calculados, talvez sua melhor tradução. Baseada em presença física, a lógica disciplinar é arquitetural e tem o modelo panóptico como estrutura de vigilância dominante. Submetidos a esses dispositivos de poder e de saber, com seus comportamentos normatizados e vigiados permanentemente, os corpos devem se tornar totalmente dóceis e úteis.

Se o biopoder nasceu em berço disciplinar, Antônio Negri e Michael Hardt consideram que ele se torna mais bem acomodado no habitat favorável da sociedade de controle, a adaptação deleuziana da sociedade disciplinar ao contexto da pós-modernidade. Os efeitos das tecnologias biopolíticas não se fazem sentir em sua plenitude nos espaços disciplinares, pois as normas da disciplinaridade não ultrapassam os muros das instituições, não sendo capazes de “consumir” o indivíduo na totalidade de sua vida. Nessa relação estática, limitada a espaços fechados, as fronteiras entre poder e resistência eram claras. Na sociedade de controle, por sua vez, a disciplinaridade não se limita mais a espaços demarcados, ele superou a dicotomia privado e público. Agora, o poder, invisível e imaterial, se expande e perpassa a vida das pessoas como um todo, não se limitando a discipliná-las apenas em seus momentos privados, na família, na escola ou no trabalho. O domínio se efetiva na vida inteira da população, com um caráter tão vital que as pessoas o adotam e reativam espontaneamente, numa relação aberta e afetiva, deixando que o controle invada o mais profundo de suas consciências. Deleuze diz

que, enquanto os confinamentos disciplinares eram “moldes” (definindo lugares “dentro” ou “fora” da sociedade), os dispositivos de controle são “modulações”, pois se autodeformam constantemente mantendo as pessoas envoltas em suas malhas sem que elas se sintam presas. Na lógica da modulação não existem interrupções entre cada fase de controle: família, escola, exército, empresa se integram num mesmo sistema de dominação contínua, “deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes” (DELEUZE, 1992, p.224). O grande exemplo, segundo ele, é a empresa, a instituição sucessora da fábrica, uma névoa sem corpo que institui salários por mérito, provocando concorrência entre colegas que antes, nos tempos da fábrica, formavam um só corpo. Agora eles estão individualizados, correndo atrás de metas, usando todo o tempo de sua vida para vencer desafios em sistemas de prêmios por desempenho.

Os mecanismos de controle são etéreos, como o poder do novo capitalismo informacional, não mais dirigido para a produção, mas para a criação colaborativa do produto, a que deve ser acoplada uma “alma”, elaborada cuidadosamente pelo marketing, o instrumento de controle social atual. O poder do controle é contínuo mas de rotação rápida, como os saldos devedores dos cartões de crédito do indivíduo pós-moderno, acorrentado agora não mais a espaços de confinamento, mas a suas dívidas, que se sobrepõem umas às outras.

O biopoder é uma técnica de poder que extrapola o homem-corpo, intentando reger o homem-espécie. Assim, descobre um novo protagonista a quem controlar, a população, um corpo múltiplo e numerável. Medições estatísticas quanto à natalidade ou à longevidade, assim como políticas intervencionistas nesses fenômenos, introdução de uma medicina preventiva e educativa que visa à higiene pública e ao controle de epidemias, criação de sistemas de assistência à velhice ou a situações de acidentes que tiram o trabalhador do circuito do trabalho, a preocupação com a qualidade de vida nas cidades são, entre outros, instrumentos sutis de controle da biopolítica, focados na redução de baixas de energia, na racionalização de custos econômicos, na preservação do tempo dedicado ao trabalho e à produção. O controle deve ser feito sobre os fenômenos coletivos, ou seja, só válidos e relevantes no nível da massa, sem perder de vista os mesmos objetivos da sociedade disciplinar: maximizar forças e extraí-las, atingindo, agora, um nível de regularidade e equilíbrio globais. Por isso, se instala mais comodamente

na sociedade de controle, na medida em que quer atingir a massa global, nos processos próprios da vida, como nascimento e morte.

Como precisa fluir, ondular como uma serpente (na comparação de Deleuze) por entre todos os níveis das relações humanas, o biopoder centra sua estratégia no desenvolvimento tecnológico – Negri e Hardt (2001) defendem que o poder agora é também exercido diretamente no cérebro das pessoas, por meio maquínico – que vai desembocar na troca de informações acelerada pela estrutura fluida e sem fronteiras territoriais das redes. Assim o jogo de “dentro” e “fora” do molde disciplinar dá lugar ao hibridismo de saberes, interesses, conhecimentos, culturas, pensamentos, ciências no fluxo incessante das redes. Na sociedade biopolítica, todos estão “dentro”.

Assim como ninguém está “fora” também nada escapa ao dinheiro, na era do capitalismo financeiro em rede, segundo Negri e Hardt (2004). Os autores chamam a atenção justamente para a perspectiva financeira do mundo biopolítico, para eles sua imagem mais fiel. Tudo hoje está revestido com roupagens financeiras, tudo tem seu preço e valor como produto. Afetos familiares vendem perfumes, sonhos de infância são consumidos aos goles como refrigerantes e as portas da felicidade se abrem ao toque de um cartão de crédito com um bom limite. Indo além de produzir só mercadorias, os grupos empresariais transnacionais constroem subjetividades, o que signifca dizer que “produzem produtores” (NEGRI E HARDT, 2004, p.171). É aí que entram as grandes redes de comunicação, em seu vínculo íntimo de efeito e causa da nova ordem capitalista mundial, não só estruturando e exprimindo essa última em suas interconexões comunicantes, mas controlando seu sentido por meio da construção simbólica em torno dela. A comunicação é considerada por Negri e Hardt como um dos setores hegemônicos da produção, impondo sua influência sobre a totalidade do contexto biopolítico.

Negri e Hardt (2004) conjecturam que a partir do momento em que o poder abarca não só as dimensões econômica e cultural da sociedade, mas passa a tentar abranger o próprio bios social – ou seja, o poder agora unifica e engloba em si mesmo todos os elementos da vida social –, emerge, paradoxalmente, um novo contexto de pluralidade e de singularização não dominável, resistências agora não marginais, mas ativas no próprio interior dessa sociedade que se expande em redes.

Para compreender essa relação entre biopoder e produção social, os autores consideram sua dimensão biopolítica, originada da nova natureza do trabalho produtivo “vivo”, que tende a se tornar cada vez mais imaterial e intelectual, imediatamente social e comunicante. Nessa dimensão, surgem novas figuras de subjetividade, ao mesmo tempo exploradas pelo capital e potencialmente revolucionárias, que formam a nova figura do corpo biopolítico coletivo: “uma multidão de corpos singulares e determinados em busca de uma relação” (NEGRI E HARDT, 2004, p. 169). Assim, em contraponto ao biopoder, em sua situação transcendente, acima da sociedade, impondo sua ordem como autoridade soberana, há a produção biopolítica, imanente à sociedade, que cria relações sociais a partir de trabalho colaborativo (NEGRI E HARDT, 2005). É nesse contexto de produção biopolítica que emerge a multidão, o novo sujeito social, internamente diferente e múltiplo e que, apesar disso, busca se constituir na busca do agir em comum. Se não há mais “fora” nos tempos do capital globalizado, é no interior das lutas do trabalho colaborativo e imaterial, que a multidão, mobilizando o que compartilha em comum, busca expressar-se em suas singularidades contra a homogeneização impetrada pelo capital global.

3.2.4 Os espaços relacionais da era da informação: fluxos, fragmentação e