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A insustentável leveza do capitalismo em rede

3.2 A REDE: RACIOCÍNIO LÍQUIDO DA CONTEMPORANEIDADE

3.2.2 A insustentável leveza do capitalismo em rede

O domínio do novo paradigma tecnológico, denominado como informacional, aconteceu de forma intimamente associada a uma fundamental reestruturação do capitalismo na década de 80, caracterizada, basicamente, por uma “transição da produção em massa para a produção flexível, ou do ‘fordismo’ ao ‘pós-fordismo’” (CASTELLS, 1999, p.175). Assim, o modo capitalista de produção, que por muito tempo teve como modo de desenvolvimento o industrialismo, baseado na produção em massa – ganhos de produtividade por economia em escala, processo mecanizado de produção padronizada com base em linhas de montagem – passa a uma nova fase, denominada de capitalismo avançado ou flexível, para enfrentar as mudanças da nova economia, que vê os mercados mundiais ficarem cada vez mais diversificados e as aceleradas transformações tecnológicas tornarem obsoletos os equipamentos de produção com um único objetivo. No capitalismo pós-industrial, conhecimento sendo utilizado para gerar mais conhecimento é a principal fonte de produtividade.

“No novo modo informacional de desenvolvimento, a fonte de produtividade acha-se na tecnologia de geração de conhecimentos, de processamento da informação e de comunicação de símbolos” (CASTELLS, 1999, p.35)

Castells (1999, p.51) vai além ao analisar o Informacionalismo como a primeira vez na história em que “a mente humana é uma força direta de produção”. Afinal, o ciclo de retroalimentação da informação gerando mais informação se dá pela sua difusão (por isso as redes são tão fundamentais e intrinsecamente ligadas ao processo de desenvolvimento tecnológico atual), fazendo de usuários novos criadores que, ao assumirem o controle, apropriam-se e redefinem produtos e processos que surgem em torno das novas tecnologias. Essa “horizontalização” da produção, caracterizada pela amplificação da mente humana por computadores, sistemas de comunicação, decodificação e programação genética simplesmente “transforma” nossos pensamentos em todo tipo de produção material e intelectual: novos produtos, novos serviços, novos sistemas de habitação, transporte e comunicação, novos modelos de atenção à saúde e tudo mais que cerca a existência humana atual.

Usuários que são, ao mesmo tempo, criadores, produtores que se confundem com consumidores, ideias que nascem e são difundidas em rede, o que as coloca na arena da discussão, da reorganização, do redirecionamento e da constante inovação compartilhada, fazendo com que a informação se desenvolva a partir da ação sobre ela própria, coloca essa que Bauman (2001) chama de Modernidade Líquida em confronto com o paradigma industrial fordista da era do capitalismo pesado – racionalização do trabalho, separado entre intelectual e manual e baseado num controle vertical rigoroso, em que pesados maquinários e imensas fábricas mantinham acorrentados capitalistas e operários por entre altos muros. Na era do capitalismo em rede, o capital viaja leve, invisível, enquanto os trabalhadores se espalham pelo mundo, com seus celulares, tablets e notebooks, segundo o autor.

Se as ideias das classes dominantes tendem a ser as ideias dominantes de seu tempo, como disse Marx, cada um desses quadros tornou-se uma metáfora de referência para moldar as visões de mundo, comportamentos e relações sociais de seus respectivos períodos históricos. Como diz Bauman, é o know-how do dia que define como vai funcionar o modo de entender o mundo. O capitalismo industrial, “pesado”, se baseava na regularidade, na repetição e previsibilidade, com seu centro

de referência na fábrica fordista, um primor de engenharia social orientada pela ordem. Capital e trabalho estavam firmemente fixados ao solo, lado a lado, imóveis; volume e tamanho eram valores maiores que acabavam tornando mais firmes e impenetráveis as fronteiras de qualquer coisa para qualquer coisa. Esse era o mundo separado entre os que ditavam as regras e os que as obedeciam, o mundo das autoridades que determinavam o que era certo e o que era errado, dos líderes que detinham o conhecimento de como chegar a uma utópica “boa sociedade” e que deixavam seus “seguidores” seguros e confiantes do caminho correto a percorrer para atingir esse objetivo. Para se chegar a essa sociedade correta e boa para todos, os líderes também se portavam como intermediários entre o “bem individual” e o “bem comum”, traçando arenas públicas de discussão em que se entrelaçavam escolhas individuais e projetos coletivos.

“São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta”, diz Bauman. Na nova economia organizada em torno de redes globais, Castells afirma que a apropriação de conhecimento tecnológico faz com que se supere a distinção entre grandes e pequenas empresas, o trabalho se torne cada vez mais individualizado e os trabalhadores mais comprometidos com resultados do que com um processo rígido de organização. Nesse novo momento, o capital funciona globalmente e se estrutura em uma rede de fluxos financeiros, ou seja, é percebido, investido e acumulado como capital financeiro em constante circulação. Nessa nova lógica do capitalismo em rede, a acumulação de capital é cada vez mais gerada nos mercados financeiros globais. Todo investimento feito em outras áreas – comércio, transportes, educação, saúde, cultura, turismo, bens imobiliários, práticas de guerra e outros – tem seus eventuais lucros revertidos para a “metarrede de fluxos financeiros”, no que Castells chama de “cassino global eletrônico” (CASTELLS, 1999, p.500), pois empresas, poupanças familiares, moedas nacionais e economias regionais ficam à mercê das elevações e quedas das bolsas.

Nas palavras de Bauman, essa é a era do fim do engajamento mútuo entre capital e trabalho. O poder, personificado no perfil capitalista “em rede”, torna-se extraterritorial, flui pela rede evitando qualquer confinamento territorial. Bauman (2001, p.18) defende que suas principais técnicas hoje “são a fuga, a astúcia, o

desvio, a evitação”. A elite global atual domina sem precisar estar presente fisicamente, seu engajamento ativo junto aos subordinados é visto como desnecessário, ineficaz e custoso. O poder é escorregadio, evasivo, não mais dita normas e regras, ao contrário, deixa que os indivíduos cuidem de seu próprio bem- estar. Nada de estar enraizado a qualquer lugar, o poder agora precisa ser portátil, leve e nômade para aproveitar as oportunidades que surgem globalmente. Dessa forma, vive-se a cultura da aceleração e do descarte, em substituição à da durabilidade e da confiabilidade. É a era de poderosos no modelo Bill Gates, que evitam o durável e desejam o transitório.

Agindo na velocidade instantânea e na extraterritorialidade das redes, o poder vive o estágio “pós-panóptico”, como diz Bauman, o que permite que “as alavancas do poder” sejam acionadas de forma invisível, por supervisores que sequer conhecem seus supervisionados. Ordens cumpridas por celular ou por e-mail tornam as relações impessoais e seus protagonistas inacessíveis.

Sem instituições que determinem seu lugar social, as pessoas tendem hoje a comportamentos individualizantes. A liberdade de escolher nosso destino deu lugar à insegurança em definir qual nosso lugar no mundo. A um modelo de comportamento moldado pelos movimentos repetitivos, simples e mecanicamente obedecidos da fábrica fordista se confronta agora um momento em que cai por terra qualquer ilusão sobre uma ordem perfeita, em que tudo está no lugar certo, do domínio sobre o futuro absolutamente previsível. No processo de individualização que caracteriza a modernidade fluida, a identidade humana é uma “tarefa” e os indivíduos são os responsáveis por realizá-la. Se as classes foram o “pertencimento fabricado” pela era da modernidade pesada, as identidades fabricadas na fase fluida da modernidade são os novos lugares – frágeis, voláteis, cambiantes – a que os indivíduos tentam se acomodar. No final, estamos tão presos como se ainda estivéssemos entre os muros da fábrica. Como diz Bauman (2001, p.43), “a individualização é uma fatalidade, não uma escolha”.

O sentimento de pertencimento, próprio da primeira fase da modernidade, estimulava ações no âmbito da coletividade, principalmente nas classes que não detinham o poder. A falta de força para enfrentar os problemas sozinhos incitava a cumplicidade e a luta conjunta. Palavras de ordem eram sempre clamadas usando-

se o “nós”. Contudo, hoje o “indivíduo por fatalidade” não usa mais a força da coletividade, simplesmente porque suas aflições individuais não têm mais a “liga” necessária para se unir as de seus semelhantes, tornando-se um dilema comum. Problemas individuais continuam individuais, mesmo quando colocados lado a lado com os de outros. A arena pública é constituída agora por um aglomerado de pessoas com angústias semelhantes a se entreolharem, tentando encontrar no outro um exemplo de superação. É o mundo das celebridades com suas vidas perfeitas, seus casamentos perfeitos, seus filhos perfeitos, suas separações perfeitas e – por que não? – suas tristezas perfeitas. É o mundo dos livros de autoajuda, contando as histórias de pessoas que superaram o câncer, o divórcio, a morte iminente ou a falta de domínio na cozinha. É o mundo do Facebook, com suas frases feitas e aforismos rasos desveladores de todos os mistérios da vida, travestidos de conselhos de como viver de forma perfeita. Deleuze fala sobre a possibilidade de se fazer da vida uma obra de arte46. Mas talvez essa obra esconda, hoje, o que disse Ulrich Beck, citado por Bauman (2001, p.47): o “ego nu, atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda”.