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3 AS NOÇÕES DE PODER, SABER E DISCURSO

3.8 A articulação entre discurso, saber e poder

Discurso batalha e não discurso reflexo. Mais precisamente, é preciso fazer aparecer no discurso funções que não são simplesmente as da expressão [...] ou da reprodução [...]. O discurso [...] esse fato é em si mesmo uma força. O discurso é para a relação das forças não apenas uma superfície de inscrição, mas um operador. (Michel Foucault, 2011, p. 221).

Segundo Veiga-Neto (2011a), a forma como Michel Foucault toma as questões da linguagem e do discurso está em diálogo com Friedrich Nietzsche e

com as descobertas sobre a linguagem na segunda fase de Ludwig Wittgenstein - com o qual partilha o interesse por realizar uma analítica pragmática e não formal do discurso. Muito embora não haja referências explícitas da influência das ideias de Wittgenstein nas teorizações de Foucault, as proximidades entre os dois são muitas, como, por exemplo, ao assumirem o caráter contingente das teorizações, ao considerarem que os discursos são gerados nas práticas sociais historicamente determinadas, o que leva os dois filósofos a não perguntarem “o que é determinado saber?”, mas a interrogarem sobre “como esse saber funciona?”; ao ignorarem a Metafísica, por não se interessarem em descobrir o que está oculto por entre as linhas do discurso; por não assumirem as verdades como descobertas da razão, mas como produções, fabricações, invenções da razão. Os dois filósofos “ao fazerem isso, eles dão as costas para a busca de uma suposta razão pura e voltam- se para a análise das relações da linguagem consigo mesma e das relações entre a linguagem e o mundo” (VEIGA-NETO, 2011a, p.90-91).

Para compreender o modo como Foucault aborda a questão do discurso é importante primeiro entender que, para ele, a linguagem possui um caráter atributivo, ou seja, não há correspondência a priori entre as palavras e as coisas; no entanto, é por meio da linguagem que se atribui sentido às coisas, sendo ela, portanto, constitutiva do pensamento, isto é, do sentido que se dá às coisas. (VEIGA-NETO, 2011a). Ao encarar a linguagem dessa forma, Foucault entende o conhecimento não como natural e intrinsecamente lógico, mas como um produto de discursos, que, por sua vez, têm a sua logicidade construída e, portanto, não se diferencia da prática. Para Foucault, discurso é também uma prática, porque é ele que constitui as práticas e, ao mesmo tempo, é construído por essas práticas.

Fischer (2003, p. 84) sintetiza afirmando que discurso é “o conjunto de enunciados de um determinado campo de saber, os quais sempre existem como práticas”. Conforme Fischer (2003, p. 85), os discursos são práticas porque “não só nos constituem, nos subjetivam, nos dizem ‘o que dizer’, como são alterados, em função de práticas sociais muito concretas”. Assim, por exemplo, é possível entender as alterações nos discursos sobre os afrodescendentes, como as piadas e os chavões relacionados à cor de pele deixaram de ser corriqueiros, na atualidade, deslocando-se da brincadeira para a agressão. Mesmo que piadas ou frases desse tipo sejam ainda pronunciadas, não provocam mais risos, mas indignação e constrangimento. Da mesma forma, os discursos sobre a mulher e sobre o

homossexual sofrem transformações no que pode ou não ser dito. Isso porque há saberes e poderes que articulam a produção dos discursos.

Para se entender esse modo de abordar o discurso, é igualmente relevante compreender como o filósofo define a prática discursiva e o enunciado, distanciando- os do ato de fala. A prática discursiva se diferencia do ato de fala, porque ela “não é uma ação concreta e individual de pronunciar discursos, mas é todo o conjunto de enunciados” (VEIGA-NETO, 2011a, p. 93) que, por sua vez, também não são atos de fala cotidianos, nem proposições, “nem uma manifestação psicológica de alguma entidade que se situasse por baixo ou mais por dentro daquele que fala” (VEIGA- NETO, 2011a, p. 93). Foucault considera os enunciados como um ato discursivo porque eles são transmitidos e conservados; recebem valor e, portanto, sua apropriação é perseguida; são repetidos, reproduzidos e transformados. Segundo Veiga-Neto (2011a, p. 94-95), o enunciado

se separa dos contextos locais e dos significados triviais do dia a dia, para constituir um campo mais ou menos autônomo e raro de sentidos que devem, em seguida, ser aceitos e sancionados numa rede discursiva, segundo uma ordem – seja em função do seu conteúdo de verdade, seja em função daquele que praticou a enunciação, seja em função de uma instituição que o acolhe.

Outro ponto importante a se compreender é que os discursos são sempre contingentes, sendo, então, inseparáveis do acontecimento que os gerou e “dos poderes que o acontecimento coloca em ação” (VEIGA-NETO, 2011a, p.92), não são apenas a representação das coisas do mundo ou uma combinação de palavras, porque não são apenas subjetivos, mas, sobretudo, porque subjetivam. Certamente que os discursos se compõem de signos e possuem uma estrutura, mas há algo mais que torna os discursos irredutíveis aos recursos da língua. Esse algo mais é a vontade e o interesse de quem fala; é o que governa quem fala; por isso, esse algo mais dos discursos torna possível não a representação dos objetos do mundo, mas a formação/a produção dos objetos de quem fala; torna possível a subjetivação de quem fala. Isso quer dizer que o que molda a maneira das pessoas constituírem, compreenderem e representarem o mundo são as práticas discursivas e não discursivas que são moldadas pela episteme que, ao mesmo tempo, funciona em decorrência de tais práticas (VEIGA-NETO, 2011a).

Veiga-Neto esclarece que, observando o caráter temporal dos discursos, ou seja, a sua contingência, Foucault compreende que os discursos podem, então, revelar um arquivo. O arquivo, na perspectiva foucaultiana, é constituído de um conjunto de discursos que são contingentes porque são sancionados pelos conteúdos de verdade atribuídos a eles nos momentos históricos em que surgem, sendo, portanto, o arquivo sempre ligado a um determinado momento histórico. Veiga-Neto (2011a, p. 96) explica que para designar esse “conjunto de condições, de princípios, de enunciados e regras que regem sua distribuição, que funcionam como condições de possibilidade para que algo seja pensado em determinada época”, Foucault usa a palavra episteme. Ainda segundo Veiga-Neto (2011a, p. 96),

os regimes de discursos são as manifestações apreensíveis, visíveis, da episteme de uma determinada época. Trata-se de um arranjo de possibilidades de discursos que acaba por delimitar um campo de saberes e por dizer quais são os enunciados proibidos ou sem sentido (porque estranhos à episteme) e quais são os enunciados permitidos; e, entre os últimos, quais são os enunciados verdadeiros e quais são os falsos.

Nesse sentido, os discursos marcam o pensamento de cada época e estão espalhados difusamente pelo tecido social, não se localizando em um determinado ponto, nem se originando de um determinado ponto específico, como do Estado, por exemplo. Por isso que o interesse de Foucault não é tentar interpretar o sentido profundo do que não foi dito, como que procurando nas entrelinhas algo escondido, o que o enunciador do discurso não disse. O interesse de Foucault não é relacionar o caráter subjetivo do discurso nem relacionar o sujeito ou a instituição ao discurso produzido, mas relacionar o discurso ao campo no qual ele se desenrolou. Enfim, o interesse de Foucault ao analisar discursos está relacionado com as possibilidades de subjetivação que o discurso produz e nem tanto com o caráter subjetivo e estrutural do discurso porque, como afirma Veiga-Neto (2011a, p.99), “mais do que subjetivo, o discurso subjetiva”.

Analisar discursos na perspectiva foucaultiana é considerar a economia no exercício do poder, assegurada por meio da produção de discursos de verdade, porque os discursos ativam o poder, colocando-o em circulação; é considerar as relações de poder que estão ali envolvidas (FISCHER, 2003). No entanto, para essa perspectiva de análise de discurso, não há espaço para se dialetizar o mundo em dois blocos de discursos, aqueles que dominam e aqueles que resistem ou de

considerar o discurso dos dominadores e dos dominados, pois os discursos são tomados, na análise foucaultiana, ao mesmo tempo, como instrumento e efeito do poder; são veículos de produção do poder concomitantemente a que são o ponto de partida da invenção de novas estratégias de resistência ao poder. Enfim, essa abordagem de análise preocupa-se com o nexo entre o saber e o poder, com a ocorrência do balizamento dos mecanismos de poder no interior dos discursos (FOUCAULT, 2012e).

Por isso que a expressão ‘vontade de verdade’, explica Veiga-Neto (2011a), não deve ser entendida como o “amor à verdade”, mas como a vontade de dominação empreendida por cada um por meio dos discursos que são regidos por procedimentos que estabelecem o que não pode ser dito e pensável daquilo que pode e, dentro do discurso dizível e pensável, distinguem o verdadeiro do que é falso. A verdade, portanto, é intrínseca ao que a estabelece, isto é, o que estabelece o regime de verdade “são os enunciados dentro de cada discurso que marcam e sinalizam o que é tomado por verdade, num tempo e espaço determinado.” (VEIGA- NETO, 2011a, p. 101). Os discursos, portanto, não são nem verdadeiros nem falsos, em si mesmos, porque eles não descobrem verdades, senão as inventam. Veiga- Neto (2011a) explica que as disciplinas são exatamente a delimitação de cada campo formado por um conjunto de enunciados que concomitantemente sistematizam um dado conteúdo e estabelecem a fronteira desse campo de saberes.

Analisar os discursos a partir das ferramentas foucaultianas é pensar sobre os processos que estabelecem as verdades e os campos de saberes aos quais elas se assentam; é “problematizar em torno dos regimes de verdade, e não

propriamente por dentro deles” (VEIGA-NETO, 2011a, p. 104), como procedem algumas análises de conteúdo cuja ênfase é ou ler puramente os elementos lógicos e formais do discurso ou ler o que não está no discurso, ou seja, seu caráter ideológico. Na perspectiva foucaultiana de análise do discurso, o que interessa não é formular uma verdade ou decifrar uma verdade não dita, mas é, diferentemente, identificar e descrever os regimes de verdade que, ao mesmo tempo, sustentam os discursos e são sustentados, justificados, criados e recriados por eles. É cartografar os regimes de verdade, revelando as convergências e as tensões das vozes que atuam na formação do discurso; é como cartografar as ramificações, as nervuras que vão se desenhando devido ao exercício do poder/dos poderes e nas quais se sustentam a emergência dos saberes e conhecimentos legitimados.

Isso significa que o texto é lido não como um documento, na sua linearidade e internalidade. De outra forma, é lido como um monumento, isto é, é lido a partir das relações que podem ser estabelecidas entre os seus enunciados e os regimes de verdades que eles descrevem, “para, a partir daí, compreender a que poder(es) atendem tais enunciados, qual/quais poder(es) os enunciados ativam e colocam em circulação” (VEIGA-NETO, 2011a, p. 104). O que importa nesse tipo de análise é compreender que o regime de verdade que acolhe e é sustentado por um enunciado exclui outros, porque ao separar o que é dizível do que não é, o que é normal do que não é, o que é verdadeiro daquilo que é falso, o enunciado atende “a determinada vontade de verdade que, por sua vez, é a vontade final de um processo que tem, lá na origem, uma vontade de poder” (VEIGA-NETO, 2011a, p. 105).

O que estabelece o dizível e o não dizível, o pensável e o não pensável e o verdadeiro e o falso são os procedimentos de controle, restrição e coerção usados na produção dos discursos, dos quais tratarei a seguir.