• Nenhum resultado encontrado

A emergência de processos de pedagogização na racionalidade

4 BIOPOLÍTICA, GOVERNAMENTALIDADE E EDUCAÇÃO

4.4 A emergência de processos de pedagogização na racionalidade

da educação está articulada com a formação das sociedades governamentalizadas, transformando-as em sociedades educadoras ou pedagogizadas, verifica-se que aos processos de governamentalização disciplinares preponderantes na escola, durante a Modernidade, estão se acoplando processos outros, mais característicos da racionalidade neoliberal. Ball (2013) acredita que os princípios da racionalidade neoliberal mobilizam uma transformação social, “uma mudança epistemológica

profunda, de um paradigma educacional moderno para um pós-moderno”36 (p.152), no qual o aprendiz produzido não é mais o do bem-estar, mas é um indivíduo “sem profundidade, flexível, solitário, alerta e responsável (coletivamente representado pelo capital humano)” (p.152). Uma mudança epistemológica que, segundo Aquino (2011, p. 202), não objetiva segregar a diferença, mas proporcionar a “adesão voluntária de todos”; enfatiza “a cooptação do controle” mais que a coerção do disciplinamento e ressalta “a incitação da coletividade rumo a ideias consensuais” em detrimento da “contenção física dos corpos”.

Ball (2013), ao analisar um conjunto de textos, a respeito da aprendizagem ao longo da vida, produzidos pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), pela UNESCO, pela Comissão Europeia, vinculada à União Europeia, pelo Ministério da Educação Sueco e pelo Department for Education and

Employment (DFEE - Reino Unido), ressalta que o discurso veiculado nesses textos

é parte de uma “maquinaria política de mecanismos, procedimentos e táticas” (BALL, p.145, 2013) de subjetivação, ou seja, esses textos são a materialidade do governamento porque executam parte do trabalho dos políticos e do Estado. Segundo Ball (2013, p.145),

o que é produzido nesses documentos e o que é tema das políticas que deles provêm não é mais que um novo tipo de pessoa e uma nova “ética de personalidade” [...]. Com efeito, o que está sendo construído é uma nova ontologia de aprendizagem e de política e uma “tecnologia de si” muito elaborada, por meio das quais conformamos nossos corpos e subjetividades de acordo com as necessidades de aprendizagem.

Exemplo dessa mudança de paradigma é o maior investimento na aprendizagem permanente do indivíduo, que é transpassada pelo paradoxo coação e ‘liberdade’ (ou produção da liberdade), presente nos processos de governamentalização educacionais da contemporaneidade. Uma das características marcantes das governamentalidades liberal e neoliberal é o gerenciamento da

36 Mesmo sabendo que Michel Foucault não adentrou às discussões sobre a pós-

modernidade, optamos por usar o termo “pós-moderno” para retratar o pensamento de autores como Ball (2013) e Biesta (2013) que utilizam as ferramentas teóricas forjadas por Foucault para fazer as suas análises sobre os temas educacionais na contemporaneidade. O meu interesse ao citar esses autores está nas análises que fazem sobre os processos de pedagogização e o deslocamento da ênfase da prática discursiva da educação para a aprendizagem e como esses processos e esse deslocamento estão vinculados à racionalidade neoliberal e à Teoria do Capital Humano.

‘liberdade’ por meio de mecanismos que deixam surgir possibilidades de escolha ou que calculam as probabilidades dessas possibilidades de ‘liberdade’ (AQUINO e RIBEIRO, 2009). Se há mecanismos responsáveis pela produção e controle da ‘liberdade’, o exercício do poder envolve a condução da ação do outro nos espaços das liberdades do outro, por isso “a necessidade de o poder acionar movimentos incessantes de (auto)regulação” (AQUINO e RIBEIRO, 2009, p. 62).

Assim, poder e liberdade são exercidos concomitantemente nos processos de governamentalização, numa dinâmica de retroalimentação, sendo os discursos produzidos por essa dinâmica, no campo educacional e, especificamente, no campo das políticas educacionais, um instrumental importante para a edificação da sociedade educadora ou pedagogizada tal qual mencionam Ball (2013) e Aquino (2013). Em tal sociedade, o Estado mobiliza-se para garantir que todo tempo do indivíduo e todo espaço transitado por ele sejam, então, pedagogizados (BALL, 2013), pois justifica suas ações na “crença-base do projeto escolar-civilizatório” (AQUINO, 2013, p. 204) que versa: quanto “mais pedagogicamente talhado” é o indivíduo, mais desenvolvida, emancipada e humana é a coletividade à qual pertence.

Conforme Ball (2013), nesse contexto, a aprendizagem ao longo da vida tem como efeito a produção de um tipo de cidadão mais adequado às novas formas de governamento neoliberais: um cidadão que está perdendo a capacidade de cidadania, porque as suas experiências são abstraídas das relações de poder, impossibilitando, dessa forma, a crítica. Para Ball (2013), esse processo está corroendo as possibilidades de autenticidade e de sentido do ensino, da aprendizagem e da pesquisa, porque não expande as subjetividades dos indivíduos, pelo contrário, as delimita.

Para Biesta (2013), o deslocamento no campo discursivo educacional corresponde à ênfase ao conceito “aprendizagem” e ao declínio do conceito “educação”, na contemporaneidade, ou seja, para esse autor, a linguagem da educação está sendo substituída por uma linguagem da aprendizagem. Quatro tendências têm colaborado para essa mudança epistemológica, segundo Biesta (2013): o discurso pós-moderno que prega o fim da educação e a ênfase na aprendizagem, a ênfase na aprendizagem do adulto, a emergência das teorias da aprendizagem construtivistas e socioculturais que se centram na aprendizagem do aluno, e o enfraquecimento do Estado de Bem-estar social que modificou a relação

entre governos e cidadãos de uma relação política para uma relação econômica: “uma relação entre o Estado como provedor de serviços públicos e o contribuinte como o consumidor dos serviços estatais” (BIESTA, 2013, p. 36).

Nesse contexto da sociedade da aprendizagem, o indivíduo trabalhador torna-se responsável pela aquisição, desenvolvimento e atualização das suas habilidades e competências em função de demandas impostas por necessidades de aprendizagem que constantemente são reatualizadas e recriadas. A experiência vivenciada por esse indivíduo, seu saber acumulado no decorrer do tempo é desvalorizado; atualmente, sua capacidade de esquecer o que já aprendeu para dar atenção ao que lhe é apresentado como inovação é mais significativa. Um sujeito permanentemente educável está sendo produzido por uma governamentalidade na qual as escolhas e as ações desse sujeito o tornam sempre retornável, flexível, disposto à aprendizagem das inovações da sociedade capitalista neoliberal. Esse sujeito permanentemente educável é o indivíduo-empresa, produzido para administrar-se a si mesmo no mercado das competências, habilidades e capacidades, conforme propõe a Teoria do Capital Humano, já mencionada. Segundo Ball (2013, p.150), os indivíduos-empresa “devem internalizar e assumir a responsabilidade pelas suas necessidades, na mesma medida em que suas histórias pessoais e suas condições sociais para a aprendizagem são eliminadas nesse processo”.

É nesse cenário que, segundo Ball (2013), os saberes e verdades ao redor da “aprendizagem ao longo da vida” estão sendo produzidos. Para esse autor, a “aprendizagem ao longo da vida é uma microtecnologia de poder” (p.146), que mobiliza os indivíduos a terem a iniciativa de buscarem continuamente o desenvolvimento de capacidades, habilitando-os, assim, a se refazerem constantemente, como em um processo de otimização de si mesmos até os finais de seus dias. Dessa forma, o indivíduo pensa e age tal como um eu empreendedor que tem como capital as suas próprias capacidades aprendidas, fazendo da sua vida uma empresa.

O investimento na e os saberes produzidos sobre a aprendizagem ao longo da vida, a permanente capacitação, atualização e formação dos profissionais, dentre eles a dos professores, são estratégias da racionalidade neoliberal. O efeito dessas estratégias discursivas e não discursivas, na formação do docente, é a criação de cada vez mais tecnologias e mecanismos de governo, incidindo sobre a sua

formação que, nos tempos atuais, tem se direcionado pelo princípio da competição e do “progresso” quantificável por meio do número de diplomas e certificados adquiridos, e do “progresso” mensurável pela porcentagem de acertos em questões de múltipla escolha de provas de desempenho aplicadas aos alunos nas escolas. O efeito dessas estratégias remete à emergência da cultura do empreendedorismo, da meritocracia e das competências e habilidades dos professores e estudantes, temáticas comuns nos debates educacionais, na atualidade (GADELHA, 2009).