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3 AS NOÇÕES DE PODER, SABER E DISCURSO

3.7 A lei e a norma, a disciplina e a biopolítica

No contexto da biopolítica, Foucault observa que a lei também vai cada vez mais assumindo a função de norma. Isso porque o biopoder terá uma maior

necessidade de investir em “mecanismos contínuos, reguladores e corretivos”; “de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade” e “de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar” (FOUCAULT, 1985, p.135), do que de exercer o poder de gládio ou de morte ao qual a lei sempre era referência. Castro (2009) interpreta essa análise de Foucault, esclarecendo que as sociedades modernas são sociedades da normalização porque nelas se entrecruzam a norma da disciplina e a norma da regulação; a primeira refere-se à regulação da vida dos indivíduos por meio das tecnologias da disciplina (a anátomo-política do corpo como uma máquina, por exemplo) e a segunda à regulação da população por meio das tecnologias de regulação e normalização (a estatística, por exemplo, que mensura os processos biológicos do corpo-espécie como nascimentos, mortes, longevidade etc.).

Para se entender o papel da norma na configuração do poder na Modernidade, Foucault (1985) observou que o poder se exercia cada vez menos no domínio da lei e cada vez mais no domínio da norma, já que esta é instrumento, concomitantemente, de governo do indivíduo e das populações. A norma, por se apresentar como sendo uma regra natural e por ser aplicada indistintamente a fim de se preservar o ciclo natural e produtivo da vida (REVEL, 2006), afasta-se da ideia da repressão produzir somente efeitos negativos. Pelo contrário, para Foucault, os processos de disciplinarização e normalização não são considerados apenas como aqueles que reprimem uma individualidade, pelo contrário, são processos que também a constituem, a formam (CASTRO, 2009)19. Para Castro (2006), a norma é um dos elementos geradores da individualidade disciplinar porque se inscreve na disciplinarização dos corpos por meio de uma técnica disciplinar, chamada por ele de sanção normalizadora. A sanção normalizadora se apresenta como

um modo específico de se castigar no domínio disciplinar. Para a disciplina não se trata nem de expiar uma culpa nem de reprimir, mas sim de referir a condutas do indivíduo a um conjunto comparativo, de diferenciar os indivíduos, medir capacidades, impor uma “medida”, traçar a fronteira entre o normal e o anormal (CASTRO, 2006, p.67).

19 A propósito, é também nesse sentido que a resistência deve ser entendida, não como um

contrapoder, mas como um processo advindo do próprio domínio do exercício do poder, que inclui a constituição e criação de novas subjetividades. Isso quer dizer que nem a lei nem a norma são instrumentos que fogem à dupla face da governamentalidade, ou seja, os efeitos de poder que elas produzem incidem no âmbito do governo do outro, mas também no do governo de si mesmo.

Foucault explica que há cinco diferenças fundamentais entre os domínios da lei e da norma (CASTRO, 2009), sendo que o primeiro domínio tenciona as condutas à individualização e o segundo à homogeneidade, como esquematiza-se20 a seguir:

Para Foucault, então, a sociedade da normalização é o efeito histórico do exercício do biopoder, que por ser uma tecnologia de poder focalizada na vida, “a lei funciona cada vez mais como norma, e a [...] instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras” (FOUCAULT, 1985, p. 135). Para Foucault (1985), a atividade legislativa nesse período não tende a se extinguir, mas, pelo contrário, a intensificar-se, pois desde a tecnologia de poder panóptica, o exercício do poder vai se distanciando do modelo do inquérito para produzir o saber e se aproximando do modelo do exame (FOUCAULT, 2002). Dessa forma, os mecanismos do âmbito jurídico vão se constituindo paulatinamente em “formas que tornam aceitável um poder essencialmente normalizador” (FOUCAULT, 1985, p.136).

20 O conteúdo desse quadro é baseado no verbete “norma” que está em Castro (2009, p.

310).

Domínio da lei (individualização) Domínio da norma (generalização)

Refere-se a um campo único que é o do

corpus dos códigos e textos

A norma se refere, concomitantemente, a três campos diferentes: comparação, diferenciação e regra a se seguir.

Os atos individuais são especificados a partir dos códigos.

A diferença entre os indivíduos é estabelecida conforme uma média ou a um optimum a ser alcançado.

Distingue o que é permitido daquilo que é proibido.

Mensura em termos de quantidade e hierarquiza em termos de valor a capacidade dos indivíduos.

Busca a condenação. Impõe uma conformidade que deve ser alcançada, ou seja, busca homogeneizar. Julga as condutas em aceitáveis ou

inaceitáveis, mas sempre dentro da lei.

Delimita a normalidade, traçando a anormalidade como sendo tudo que lhe é exterior.

Segundo Foucault (2002), o modelo do inquérito consiste, na prática judiciária, ao procedimento pelo qual se buscava reconstruir um acontecimento do passado que fora presenciado por uma ou mais pessoas. O modelo do exame, por sua vez, não produz a recapitulação de um acontecimento, mas produz uma vigilância, um exame, ou seja, trata-se de se vigiar alguém totalmente e ininterruptamente. Nesse sentido, Castro (2006) afirma ser o exame uma das técnicas disciplinares para a formação de individualidades disciplinares, explicando-o como sendo uma

técnica que combina o olhar hierárquico que vigia com a sanção normalizadora. Nela se superpõem relações de saber e de poder. No exame se inverte a economia da visibilidade no exercício do poder, o indivíduo ingressa em um campo documental, cada indivíduo se converte em um caso (a individualidade tal como se pode descrever). O exame é a forma ritual da disciplina (CASTRO, 2006, p.67).

É considerando esses dois modelos de produzir saber que Foucault (2002), em conferência proferida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1973, ao analisar os mecanismos e efeitos da estatização penal, principalmente na França e na Inglaterra, no século XVIII e XIX, explica a gradual importância da norma e da adesão ao modelo do exame, no sistema legislativo e judiciário a partir da sociedade disciplinar:

Tem-se, portanto, em oposição ao grande saber de inquérito, organizado no meio da Idade Média através da confiscação estatal da justiça, que consistia em obter os instrumentos de reatualização de fatos através dos testemunhos, um novo saber, de tipo totalmente diferente, um saber de vigilância, de exame, organizado em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência. Esta é a base do poder, a forma de saber-poder que vai dar lugar não às grandes ciências da observação como no caso do inquérito, mas ao que chamamos ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia etc. (FOUCAULT, 2002, p. 88).

A respeito da disciplinarização dos saberes, Castro (2006) lembra que a normalização dos saberes foi uma das quatro operações estratégias21 utilizadas pelo Estado para disciplinar o conhecimento e que nesse processo de disciplinarização surge a enciclopédia, as grandes escolas (de minas, de estradas, de pontes etc.) e a

21 As outras três operações estratégicas citadas por Castro (2006, p.67) são: a eliminação e

desqualificação dos saberes inúteis; a classificação hierárquica dos saberes mais particulares aos mais gerais; e, por fim, a centralização piramidal.

ciência que, nesse contexto, vai ocupando o lugar de saber fundamental que era da filosofia. As ciências chamadas de ciências da normalidade passam a estabelecer o que é normal e o que é anormal, fortalecendo, por um lado, “os mecanismos de disciplinarização individual e, por outro, elas mesmas têm sido possíveis a partir desses mecanismos” (CASTRO, 2006, p. 68).

Maia (2003), concordando com Foucault (2002), explica que, conforme a população vai emergindo como objeto do poder e fonte de saber, a configuração política instaurada pelo biopoder, ainda na sociedade disciplinar, integra-se cada vez mais a uma dimensão epistemológica caracterizada pelo modelo do exame. A norma se constitui, no modelo de exame, como padrão para se avaliar uma diversidade de aspectos ligados à vida social, diferentemente da configuração política instaurada pelo poder do gládio, na sociedade de soberania, na qual a dimensão epistemológica se caracteriza pelo modelo do inquérito. Para Maia (2003), a utilização da estatística para a definição de regularidades presentes na população, juntamente com o discurso dos demógrafos, médicos, sanitaristas, psiquiatras etc. foram elementos fundamentais para a emergência da norma, havendo, portanto, uma articulação importante entre a norma, o exame e o biopoder.

No entanto, Maia (2003) lembra que, por causa da morte prematura de Michel Foucault, em 1984, a articulação entre norma, exame e biopoder não foi profundamente explorada pelo filósofo francês, mas que outros estudiosos se ocuparam dessa tarefa, reforçando o caráter sutil e flexível do regime no qual funciona a biopolítica. Dentre esses pesquisadores estão Gilles Deleuze, Michel Hardt e Antonio Negri. Segundo Maia (2003), as ferramentas teóricas forjadas por Foucault para analisar a vida política contemporânea foram atualizadas por esses autores. Deleuze, assim, percebe que os mecanismos disciplinares que caracterizaram a Modernidade foram sobrepostos por novos mecanismos de sujeição que já não se utilizam de espaços fechados para a vigilância, mas de dispositivos abertos e contínuos de controle, proporcionados pelo desenvolvimento da tecnologia cibernética. Hardt, por sua vez, nota que o biopoder não se exerce só sobre a vida desde cima, mas é também um poder que produz e cria vida, porque age na produção de subjetividades coletivas e de novas formas de vida. Já Negri defende que o biopolítico possui uma dimensão produtiva e positiva, pois age na produção social da subjetividade (MAIA, 2003).

Veiga-Neto (2011b) também propõe um tipo de atualização das ferramentas focaultianas relacionadas à análise do poder, trazendo a noção de noopoder elaborada por Maurizio Lazzarato22 para caracterizar o tipo de governamentalidade que vem se exercendo na contemporaneidade. Conforme Veiga-Neto (2011b), assim como a biopolítica não substituiu o poder disciplinar, na emergência da governamentalidade liberal, também nos tempos da governamentalidade neoliberal, o poder disciplinar e o biopoder não são simplesmente substituídos por outro; um novo tipo de poder, no entanto, vem se acoplando à disciplinarização dos corpos e à regulamentação da vida do corpo-espécie, a partir de meados do século XX.

Esse novo tipo de poder é chamado de noopoder e não tem por objetivo nem a disciplinarização do corpo do indivíduo, nem a regulamentação do corpo da espécie, de outra maneira, tem como objetivo capturar a memória e a atenção das pessoas por meio da modulação dos cérebros (VEIGA-NETO, 2011b). Dessa forma, introduz-se um novo elemento de análise que é o público, ou a formação do público ou dos vários públicos que estão unidos pelo tempo, fundamentalmente. Assim, as sociedades neoliberais caracterizam-se pela “cooperação entre cérebros, por meio de redes; [pelos] dispositivos tecnológicos arrojados, que potencializam a captura da memória e da atenção; [pelos] processos de sujeição e subjetivação para a formação de públicos” (VEIGA-NETO, 2011b, p. 47).

A governamentalidade neoliberal da atual sociedade possui, nesse sentido, algumas características que a diferenciam da governamentalidade liberal própria tanto da sociedade disciplinar quanto da sociedade da normalização. Essas características são os vários deslocamentos da ênfase sobre elementos que sempre estiveram presentes na sociedade disciplinar e na sociedade da normalização, mas que, agora, estão em evidência. Deleuze (1992) afirma que o jogo de forças do poder estaria sofrendo os efeitos do deslocamento da ênfase nos dispositivos de seguridade, que se amparam no poder disciplinar e no biopoder, para os dispositivos de controle; por isso, estaríamos transitando para um tipo de sociedade nomeada por esse autor de sociedade do controle, como já mencionado.

Nesse sentido, segundo Veiga-Neto (2011b), a governamentalidade neoliberal centra-se na constante produção e exercício de uma liberdade na forma da competição, cuja ênfase está no consumo e não na produção, sendo inclusive a

22 Alfredo Veiga-Neto ampara-se em LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo.

liberdade considerada um objeto de consumo; a governamentalidade neoliberal possui como instituição paradigmática da economia capitalista não mais a fábrica, e sim a empresa, na qual o trabalho já não prioriza mais a vigilância sobre o corpo, mas a inventividade criativa da alma do indivíduo, transformando a subjetividade do trabalhador, “dotando-o de poder de gestão e de tomada de decisão” (VEIGA-NETO, 2011b, p. 41), em um cenário onde o imprevisível se sobrepõe ao rotineiro e onde a inovação sobressalta-se à reprodução de mercadorias padronizadas; a governamentalidade neoliberal, finalmente, é aquela cuja “administração vem perdendo espaço para a palavra gestão” (idem, ibidem, p. 45,), porque gestão

transmite um sentido de maior abertura, flexibilidade, adaptabilidade e menos rigidez do que administração.

Em suma, toda essa atualização teórica em torno das ferramentas foucaultianas a respeito do poder, situando-as no tempo presente, auxilia ou é um ponto de apoio, sem dúvida, para as análises dos elementos, objetos, situações, relações etc. que estão aí postas na contemporaneidade.

Parte dessas análises será abordada no quarto capítulo, no qual busco fazer algumas aproximações entre esse instrumental teórico-metodológico forjado por Foucault e atualizado por outros estudiosos a assuntos relacionados ao campo da educação, mais precisamente, à formação de professores.

Antes disso, no entanto, apresento brevemente como o discurso é abordado por Foucault e qual a sua utilidade no nexo entre a produção do saber e o exercício do poder na constituição dos sujeitos.