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Biopoder e biopolítica no exercício do poder na Modernidade

3 AS NOÇÕES DE PODER, SABER E DISCURSO

3.3 Biopoder e biopolítica no exercício do poder na Modernidade

Ao abordar o poder em termos de estratégia e tática e não em termos jurídicos, Foucault analisou-o como uma tecnologia. O termo “tecnologia” é usado por Foucault, segundo Castro (2009), para agregar ao conceito de prática os conceitos de tática (correspondente aos meios) e de estratégia (correspondente aos fins). Por isso Foucault nomeou a capacidade e as formas de manejar o corpo como

tecnologia política do corpo; chamou de tecnologia disciplinar as técnicas que têm

como objetivo tornar os corpos dóceis e úteis; nomeou de tecnologia da vida o conjunto de saberes e poderes sobre a vida; de tecnologia da verdade os procedimentos usados para produzi-las; e de tecnologias de si ao referir-se aos modos de vida, às maneiras de regular a própria conduta e de fixar para si mesmo os fins e os meios de se viver.

Ainda segundo Castro (2009), Foucault usa o termo ao abordar a tecnologia

do sexo, a tecnologia cristã ou da carne e para tratar das tecnologias do poder utiliza

as expressões tecnologia de governo, tecnologia política dos indivíduos e tecnologia

reguladora da vida.

Segundo Dalpiaz (2009), Foucault estudou diferentes modos a partir dos quais as pessoas têm desenvolvido saberes sobre si mesmas e classificou esses modos em quatro grupos de tecnologias:

1. as tecnologias de produção (que nos permitem produzir, transformar e manipular coisas); 2. Tecnologias de sistemas de signos (que nos permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significações); 3. tecnologias de poder (que determinam a conduta dos indivíduos, os submetem a certo tipos de fins ou de dominação e consistem na objetivação do sujeito; e, por fim, 4. as tecnologias de eu” (DALPIAZ, 2009, p. 98).

‘Tecnologia’ está sendo usado, neste trabalho, como um conjunto de procedimentos, técnicas e práticas (incluem-se aqui as práticas discursivas) transpassadas pelo exercício tático e estratégico do poder; e ‘tecnologia’ de poder

está sendo usado neste trabalho como as práticas que tentam conduzir os indivíduos, interferindo no modo como pensam, sentem, agem e vivem.

Segundo Maia (2003), a análise de Foucault em torno do poder inclui compreender a trajetória das diferentes tecnologias de poder, que se desenvolveram no Ocidente, a partir do século XVI. Essas tecnologias de poder se referem a dois níveis de exercício do poder que, embora se entrelacem e complementem no mundo contemporâneo, possuem origens distintas (MAIA, 2003): são elas as técnicas incidentes nos corpos dos indivíduos e as técnicas incidentes no corpo-espécie, ou seja, na população.

Foucault estava atento para esses dois níveis de exercício do poder que se articulam com a formação/elaboração de saberes em torno do corpo do indivíduo e do corpo-espécie da população, ambos tomados como campos biológicos e políticos tanto na produção de saberes quanto no exercício de poder. O corpo, então, seja do indivíduo ou da espécie, passa a receber relevo nos trabalhos de Foucault, porque ele percebe o amplo alcance do poder sobre os corpos, sendo o corpo considerado não apenas como um campo biológico de produção de saber, mas, sobretudo, como um campo político de exercício do poder.

Foi em Vigiar e Punir, publicado em 1975, em A Vontade de Saber,

publicado em 1976, no curso Em defesa da sociedade, ministrado em 1976, e no curso Segurança, território e população, ministrado em 1978, que a análise de Foucault sobre o poder e seus efeitos nos corpos dos indivíduos e no corpo-espécie da população passou a receber atenção do pesquisador. Segundo Maia (2003), nessas pesquisas, Foucault expõe os mecanismos, as táticas e os dispositivos que foram utilizados no exercício do poder ao longo da Modernidade e que permanecem ainda na contemporaneidade, mas com certas modificações.

Em uma das suas entrevistas, concedida em 1975, Foucault esclarece que, na sociedade de soberania, a presença do corpo do monarca tinha uma importância, mas que se esmiúça com a formação do Estado; a importância da presença do corpo do monarca vai paulatinamente sendo deslocada para a importância do corpo- espécie da população, com a formação do Estado:

[...] Em compensação, é o corpo da sociedade que se torna, no decorrer do século XIX, o novo princípio. É este corpo que será preciso proteger, de um modo quase médico: em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade do corpo do monarca, serão aplicadas receitas, terapêuticas como a eliminação dos

doentes, o controle dos contágios, a exclusão dos delinquentes. A eliminação pelo suplício é, assim, substituída por métodos de assepsia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos ‘degenerados’” (FOUCAULT, 2000, p. 145).

Ou seja, um outro tipo de exercício de poder sobre a vida começava a emergir na transição da sociedade de soberania para a sociedade disciplinar e se evidenciou na sociedade da normalização. Essa nova modalidade de exercício do poder foi chamada por Foucault de biopoder ou biopolítica10 e, conforme Foucault (1985), desenvolveu-se a partir do século XVII em duas formas principais: uma corresponderia aos mecanismos disciplinares que centraram-se no indivíduo como máquina a partir da anátomo-política do corpo humano; e a outra corresponderia aos mecanismos de poder centrados no corpo da população, surgidos em meados do século XVIII por meio de procedimentos, intervenções e controles reguladores de uma biopolítica do corpo-espécie, debruçando-se sobre os problemas da natalidade, da mortalidade, da longevidade, da saúde pública, da habitação etc.. Para Foucault (1985, p.131),

as disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação – durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida – caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo.

Maia (2003) pensa que as tecnologias de poder que incidem sobre o indivíduo e sobre a população são possíveis, por causa dessa imposição gradativa do biopoder, pois ele incide, ao mesmo tempo, diretamente sobre a vida do indivíduo e da população, mas de formas diferentes. Maia (2003) considera que o biopoder vem se impondo no Ocidente, desde o século XVI, e não apenas a partir da metade

10 Pérez (2006) ressalta que Foucault utilizou biopoder e biopolítica como sinônimos em sua

obra, bem como muitos dos estudiosos que também usaram essas noções em seus trabalhos. No entanto, atenta para a necessidade de definir, atualmente, em separado esses dois conceitos, pois, para ele, o biopoder está compreendido na biopolítica. Para esse autor, com o decorrer do tempo o termo biopolítica se impôs o biopoder pela força do uso, mas isso não ocorreu sem que houvesse um esforço dos estudiosos em definir se eles devem ter o mesmo sentido ou não. Não discutirei, porém, essa diferença com mais profundidade neste trabalho, embora apresentemos, no item 3.3 uma definição para biopoder e outra para biopolítica, de acordo com Castro (2009).

do século XVIII, devido à emergência da população como um dos focos da produção de saber. Para Maia (2003), a tecnologia disciplinar (seus mecanismos, técnicas, táticas, estratégias etc.) também comporia esse tipo de exercício do poder sobre a vida.

Para Maia (2003), há uma diferença de tratamento dada por Foucault para analisar essas duas diferentes tecnologias de poder – o poder disciplinar e o biopoder -, mas que há um tipo de poder sobre a vida perpassando-as, que torna possível a articulação entre elas. Castro (2009, p.59), no verbete biopoder também sugere essa articulação entre a disciplina e o biopoder:

o poder, organizado em termos de soberania [na sociedade de soberania], tornou-se inoperante para manejar o corpo econômico e político de uma sociedade em vias de explosão demográfica e, ao mesmo tempo, de industrialização. Por isso, de maneira intuitiva e ao nível local, apareceram instituições como a escola, o hospital, o quartel, a fábrica. Em seguida, no século XVIII, foi necessária uma nova adaptação do poder para enfrentar os fenômenos globais de população e os processos biológicos e sociológicos das massas humanas.

Nessa mesma esteira de pensamento, Revel afirma que as reflexões de Foucault sobre o tema da biopolítica começaram já em Vigiar e Punir, no qual Foucault já apresenta o duplo valor da noção de biopolítica: “entendida como o conjunto de biopoderes locais” (2006, p.53), ou seja, a biopolítica entendida como uma tecnologia de poder, e como uma política capaz de produzir subjetividades, sejam de resistência ou não. A autora lembra, inclusive, que Foucault já usara a palavra biopolítico, referindo-se à medicina como uma estratégia biopolítica e ao corpo como uma realidade biopolítica, em uma conferência pronunciada em outubro de 1974, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro11.

Ademais, ainda segundo Revel (2006), em Vigiar e punir o filósofo francês apresenta, além da disciplinarização nos termos da anátomo-política, enfatizando o treinamento dos corpos individuais para a docilidade e para a produção, uma biopolítica nos termos de “uma política dos seres vivos constituídos em populações segundo uma regra de um tipo novo, não mais jurídica mas pretensamente natural: a

11 Ver REVEL (2009), p. 54-55, onde a autora cita um trecho da conferência e disponibiliza a

referência aqui reproduzida: FOUCAULT, M. “El nacimiento de La medicina social” (“La naissance de La médecine sociale”); trad. D. Reynié), Revista centroamericana de Ciencias

de la SaludI, no 6, janvier-avril 1977, p. 89-108. (Segunda palestra no curso de Medicina

norma” (idem, ibidem, p. 53), que emerge, assim como o dispositivo disciplinar, a favor da racionalidade político-econômica liberal.

Para Revel (2006), portanto, Foucault desdobrou o estudo dessas duas tecnologias modernas do exercício do poder em duas linhas – linha disciplinar e linha biopolítica – devido à complexidade da análise de dois elementos que prolongam as análises feitas em Vigiar e punir: a aparição do eixo da gestão da população ao lado do eixo da disciplinarização e docilização dos corpos; e a emergência da norma como elemento fundamental para a definição das populações como objeto de governamento.

O estudo do eixo da gestão da população permite, por um lado, visualizar como os biopoderes atuam no governamento da força de trabalho não de cada indivíduo em separado, mas de cada indivíduo “reduzido a ser o exemplo ínfimo de um conjunto muito mais amplo e que, por ser homogêneo, pode ser mais facilmente manipulado, submisso, assujeitado, governado” (REVEL, 2006, p.56). A análise da emergência da norma, por outro lado, permite averiguar como o saber passa a ser produzido a favor de uma racionalidade política preocupada em criar homogeneidades entre os indivíduos e produzir padrões de normalização, mensurando, hierarquizando, julgando, examinando, corrigindo muito mais do que condenando.

Em relação à norma, Castro (2006), diferentemente de Revel (2006), localiza-a no eixo da disciplina, pois ela funciona como uma técnica disciplinar que influi na constituição de individualidades disciplinares e que influi também na organização do saber em disciplinas próprias das Ciências Humanas.

De qualquer modo, os autores anteriormente citados concordam que o poder disciplinar e o biopoder emergem, portanto, em dois diferentes momentos na história, incidem em dois níveis diferentes - um no indivíduo o outro na população -, mas se articulam, se complementam, e perpassam por entre as relações de poder ainda na contemporaneidade justamente porque derivam de um mesmo tipo de poder que se exerce sobre a vida dos indivíduos enquanto sociedade.

Nesse sentido, Maia (2003) esclarece que Foucault articula o poder disciplinar com essa outra tecnologia de poder, o biopoder, e essa articulação permitiu a Focault deslocar-se da análise do poder no âmbito da disciplina do corpo do indivíduo para a análise no âmbito do controle da população.