• Nenhum resultado encontrado

A Articulação: Formação do núcleo dirigente petista e o “discurso do petismo

CAPÍTULO II O Direito de Tendências no Partido dos Trabalhadores:

2.1 A Articulação: Formação do núcleo dirigente petista e o “discurso do petismo

A posição hegemônica ocupada ainda no início da década de 1980 pelo grupo majoritário no seio do PT é fato tão largamente reconhecido que Pedro Ribeiro pôde afirmar que “escrever a história da Articulação/ do Campo Majoritário significa, em grande medida, escrever a história geral do PT”. (RIBEIRO, 2009, p. 213). Organizada nacionalmente em 1983, a Articulação dos 113 aglutinava os principais dirigentes do novo sindicalismo, dito autêntico, que haviam aderido e impulsionado a construção do PT, atraindo ainda setores da militância católica, ligada às Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟s), e muitos intelectuais petistas. Antes mesmo da formalização da Articulação, muitos de seus futuros membros já cumpriam a função de um núcleo dirigente, “costurando” os acordos aprovados nos dois primeiros Encontros Nacionais. Mas, nesse período fundacional, as profundas divergências ideológicas entre as correntes do partido tornavam difícil a tarefa de conferir coesão ao partido. (SECCO, 2011, p. 76.)

Durante os primeiros anos do PT, militantes oriundos de praticamente todos os segmentos políticos e sociais que aportaram no partido aproximaram-se do grupo de sindicalistas encabeçado por Lula, que se constituiu no maior polo de aglutinação de “independentes”, isto é, daqueles membros do partido que não pertenciam a nenhuma de suas correntes organizadas. Eurelino Coelho aponta que um dos elementos recorrentes no perfil dessa militância que orbitava o “grupo do Lula” era o anticomunismo (ou antileninismo), sintetizado numa crítica às organizações marxistas que supostamente “faziam política pelas cúpulas, excluindo as bases das decisões mais importantes”, e cuja concepção partidária seria “vanguardista e messiânica”. (COELHO, 2005, pp. 58-59.) Para Secco, ao conferir expressão organizada a essa crítica, a Articulação “se via como a reação popular ao elitismo e ao vanguardismo” das correntes que se localizavam à esquerda dentro do PT. (SECCO, 2011, p. 94.) 22

Coelho destaca que a principal força do grupo hegemônico que se constituía no PT “sempre foi o número”. A majoritariedade do “grupo do Lula” desde a fundação do partido pode ser explicada por algumas razões: a projeção nacional do próprio Lula a partir das históricas greves do ABC no final da década de 1970 alavancava o líder sindical como principal figura pública do PT, e seu grupo já buscava estabelecer vínculos com outras lideranças do “sindicalismo autêntico” pelo menos desde 1978. Mas Coelho percebe ainda que São Paulo e o ABC paulista, principais bases de atuação direta do “grupo do Lula”, eram nos primeiros anos da década de 1980 os locais que concentravam a maior parte dos

22

Nota Coelho (2005, p. 59) que o cenário de disputa se intensificava pelo fato de que “em alguns municípios e até em estados como Pará e Bahia, as correntes 'de esquerda' ficaram em maioria nos primeiros anos do PT”.

49

filiados e eleitores petistas: não há dados oficiais sobre os números de filiados do partido no período, mas os resultados das eleições municipais de 1982 evidenciam claramente o peso dessas regiões na composição do partido. Seguindo as elaborações de Meneguello (1989) e César (1995), Coelho interpreta o resultado dessas eleições como “confirmação de que em São Paulo, e particularmente no ABC, o PT era composto por uma base de massas muito mais numerosa do que no restante do país”. (COELHO, 2005, pp. 60-61.)

O discurso proferido por Lula na I Convenção Nacional do PT, realizada em Brasília no mês de setembro de 1981, posteriormente seria adotado como documento partidário oficial. Já nesse discurso se expressa um dos elementos que unificavam o grupo majoritário do partido em oposição às correntes marxistas organizadas que aderiram ao PT, através da metáfora das duas camisas, que se tornaria recorrente no debate sobre as tendências ao longo daquela década. Lula considera preocupante se “um militante veste, por baixo de nossa camisa, outra camisa”; embora reconheça a legitimidade da organização dos membros do partido em torno das ideias que defendem, afirma que “não aceitaremos jamais que os interesses dessas tendências se sobreponham, dentro do PT, aos interesses do Partido”. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1998, pp. 107, 112.)

Portanto, antes mesmo de se organizar formalmente, a Articulação demonstrava traços que fundamentariam a consideração de Secco, para quem a corrente majoritária petista “jamais conseguiu ver a si própria como uma tendência igual às outras”. Para o autor, seria mais correto definir a Articulação como uma antitendência: porquanto tivesse, como qualquer outra tendência, um projeto político e uma concepção própria do que deveria ser o partido, a Articulação buscava mais ou menos explicitamente deslegitimar suas concorrentes, e sentiu a necessidade de se organizar de maneira mais eficiente justamente para enfrentar a esquerda petista. Sendo, além disso, majoritária no partido, “a hegemonia da Articulação fazia com que seu caráter de tendência fosse sobrepujado pelo de agregado de todos aqueles que desejavam (ou assim argumentavam) um PT unido e sem tendências”. (SECCO, 2011, pp. 123-124.)

Sendo assim, o grau de heterogeneidade da Articulação era bastante superior ao de outras correntes, em especial daquelas que compunham a esquerda do PT. Coelho avalia que, enquanto o princípio de independência de classe era o que garantia a unidade do conjunto do partido, um discurso mais específico foi a “base da estabilização da relação política entre os diferentes sujeitos” que compuseram a Articulação: o discurso do petismo autêntico. A partir da definição de ambos os conceitos, podemos visualizar de maneira mais precisa os tensionamentos entre a corrente hegemônica

50 do PT e outros setores do partido.

O princípio de independência política da classe trabalhadora, segundo Coelho, é a “postulação que funcionara ao longo de 1979 como „magneto‟ que atraiu sujeitos e repeliu outros”, presente nos textos constituintes do partido, nos discursos de suas lideranças e mesmo nas intervenções políticas da militância de base. (COELHO, 2005, p. 63) O Manifesto fundacional do partido expressa esse princípio de maneira cabal, afirmando o nascimento do partido como fruto da intenção das “grandes maiorias” de “falar por si próprias”, da “vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política”. Ou, ainda mais explicitamente: “Os trabalhadores querem se organizar como força política autônoma. O PT pretende ser uma real expressão política de todos os explorados pelo sistema capitalista”. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1998, pp. 65-86.)

Essa postulação, expressa antes de tudo pelo próprio nome do Partido dos Trabalhadores, delimitava claramente tanto o campo dos aliados quanto o dos inimigos políticos. Tendo seu núcleo dirigente sido forjado no calor das lutas operárias de fins da década de 1970, não é fortuito que concepções classistas tivessem uma grande importância para a definição de sua própria identidade: o PT se propunha enquanto partido dos explorados pelo sistema capitalista para enfrentar os patrões e seus governos, cujos interesses eram antagônicos aos seus. Coelho aponta que a importância desse princípio foi a de conferir unidade programática ao partido, uma vez que era reivindicado não apenas pela futura Articulação, mas por todos aqueles que confluíram para a construção do PT: “Trata-se do marco programático fundamental, do princípio organizador de um efetivo discurso hegemônico, no sentido de que produzia um elemento de unificação em torno de um consenso politicamente construído”. (COELHO, 2005, p. 64.)

O discurso do petismo autêntico, por outro lado, é definido por Coelho como o traço específico das elaborações da corrente majoritária do PT, que buscava justamente estabelecer uma fronteira entre os

“autenticamente” petistas e aqueles que vestiam “duas camisas”. O autor toma como ponto de partida para

apresentar os elementos constituintes desse discurso o documento “As falsas tendências e o PT de Massa”, elaborado pelo agrupamento “PT de Massas”, embrião da Articulação no estado de Minas Gerais. O documento, cujo título já é um questionamento aberto ao petismo das correntes da “esquerda organizada que aderiu ao PT”, circulou dentro do partido ainda em 1980. Para Coelho, o texto do grupo mineiro:

… é precioso pelo seu caráter antecipatório da pauta das intervenções da Articulação em suas reiteradas divergências com as demais tendências partidárias: 1) uma visão da história do PT

51

marcada pelo mito fundador;23 2) a legitimação da posição do núcleo dirigente através da reprodução do mito; 3) a desqualificação das demais tendências, mesmo aquelas que participaram desde o Movimento pró-PT, consideradas como não genuinamente petistas; 4) a condenação da concepção vanguardista da política (que nem sempre se distinguia da condenação pura e simples das vanguardas) e a defesa de uma concepção de “partido de massas”. A este conjunto de noções, que seriam empregadas repetidas vezes nos anos seguintes, eu denomino “discurso do petismo autêntico”. Se o princípio hegemônico do PT era a independência de classe, o petismo autêntico foi a base da estabilização da relação política entre os diferentes sujeitos que compuseram a Articulação. (COELHO, 2005, p. 72. O grifo é meu.)

O documento “As Falsas Tendências e o PT de Massa” nos é interessante por outra razão: é uma das primeiras intervenções escritas sobre o debate do direito de tendências no partido. Ele seria reeditado no começo da década de 1990, quando a polêmica já se encontrava instaurada e a regulamentação em curso. Como bem percebe Coelho, o texto do agrupamento mineiro antecipa muitos dos argumentos que seriam frequentemente reivindicados pela ala majoritária do partido com o intuito de colocar na defensiva as correntes minoritárias advindas da “esquerda organizada”. No documento, são apresentadas cinco conclusões que, segundo os autores do texto, poderiam ser generalizadas para todas essas correntes:

1. Todos esses agrupamentos seriam “pequenos partidos políticos, com objetivos e direções próprias” que, seja pela estreiteza da legislação partidária então vigente, seja pela “estreiteza e incapacidade política de suas propostas”, não teriam conseguido “se expressar abertamente”, mas tão logo adquirissem condições de fazê-lo, abandonariam o PT;

2. Cada um desses grupos estaria interessado em sua autoconstrução, utilizando o PT como “campo privilegiado para o recrutamento de novos militantes”;

3. A grande quantidade de agrupamentos e as divergências entre eles tornariam o PT em um campo de disputa, algo perceptível, por exemplo, pela “busca desenfreada de cargos”;

4. A ação unitária do PT estaria dificultada, uma vez que os militantes das tendências deviam

23 “Um mito não é necessariamente um discurso falso, no sentido de uma falsificação de fatos ou eventos. (...) Mas este

discurso, verdadeiro em seus próprios termos, quando tomado como explicação para a gênese histórica de uma formação política em cuja construção estiveram empenhados outros sujeitos, com outros projetos, corre um sério risco: o de substituir

a história real das tensões que constituíram o PT pela versão do protagonista vencedor. A história do PT, rica de tensões e

possibilidades cruzadas, é deslocada por um discurso heroico e unilateral. Neste sentido, o mito é um instrumento valioso na disputa pela memória do partido e pela legitimidade que esta memória pode conferir. Com efeito, este discurso sobre a fundação do PT cumpriu um papel importante nas disputas internas do próprio partido ao atribuir a um grupo, especificamente, a legitimidade decorrente do ato de fundação. Não por acaso, o grupo de sindicalistas ligados a Lula constitui o núcleo inicial da tendência majoritária que, posteriormente, seria denominada Articulação. O “mito fundador” seria, ao longo da existência do PT, muitas vezes transformado em argumento desta tendência para caracterizar teses adversárias como não autenticamente petistas”. (COELHO, 2005, p. 50. Grifos meus.)

52 “lealdade prioritariamente aos seus respectivos grupos”;

5. “Em função de suas concepções sobre o PT”, tais grupos utilizariam “métodos errôneos”, tais como a “ação de bancada” (atuação unitária enquanto grupo) nos espaços internos do PT, a “tentativa de fazer aprovar pacotes feitos nos grupos e não discutidos dentro do PT”, e até mesmo a venda de seus materiais próprios como se fossem materiais do partido, “induzindo os filiados” a supor que suas posições fossem oficiais. (VIANA, 1991, pp. 114-115.)

O texto elaborado pelo “PT de Massas” de Minas Gerais é provavelmente o primeiro documento petista que defende a exclusão dessas correntes, ainda que não o faça de maneira ostensiva. Reconhece o direito de tendências somente aos grupos que, surgidos no interior do partido, “correspondam a correntes de opinião (...) quanto à forma e posição com que [o PT deve] enfrentar as grandes tarefas a que se propõe”. Explica-se por qual razão os agrupamentos de esquerda seriam “falsas tendências”:

O princípio básico do direito de tendência é justamente dela ser uma expressão do próprio PT. Sendo uma expressão política de um grupo, de uma corrente de opinião, de uma organização ou outro partido, articulado fora de suas estruturas, com pensamento tirado a partir de outras experiências que não as suas, então está configurado que esta não é uma tendência interna ao PT. (VIANA, 1991, p. 117.)

A posição do grupo “PT de Massas” em relação ao tema das tendências pode ser analisada a partir de dois eixos que a estruturam. O primeiro é o dos limites do direito de tendências: tal direito deveria ser assegurado às correntes internas sem prejuízo às estruturas partidárias, isto é, com a permanente manutenção da fidelidade partidária, de modo a não caracterizar um privilégio dos membros de tendências. O segundo eixo é o da diferenciação entre as correntes organizadas e o PT. Por esse eixo, é comum que se parta de uma argumentação em favor do direito de livre organização partidária, como premissa para estabelecer uma distinção entre o partido e as correntes que o tomam como “frente política”, concluindo que o PT não deve admitir a presença de grupos com pretensões partidárias próprias em seu interior. Como se nota, o já mencionado “discurso do petismo autêntico” definido por Coelho (2005) se encontra implícito no procedimento argumentativo que parte desta distinção.

O primeiro eixo, que se tornaria importantíssimo para discussão sobre as tendências que emergiria no partido durante a segunda metade da década de 1980, ainda se encontra desenvolvido de forma rudimentar no texto do “PT de Massas” mineiro. O segundo, por outro lado, tem um peso

53

decisivo na definição das propostas apresentadas pelo grupo sobre o que deveria ser “a relação do PT com os grupos de esquerda no seu interior”. Adiantemos que, em especial nos espaços oficiais do partido, como nos EN‟s, o debate sobre o direito de tendências passaria a ter como principal terreno as especificações sobre os limites concretos da atuação de um grupo que não quisesse incorrer em infidelidade partidária; argumentos concernentes “às pretensões partidárias próprias” que tais grupos pudessem ter, por exemplo, tendiam a permanecer implícitos. Contudo, muito embora a ideia da diferenciação entre as correntes organizadas e o PT jamais tenha deixado de estruturar as concepções da ala majoritária petista sobre as tendências de esquerda (e, consequentemente, sobre o direito de tendências que se deveria regulamentar), ela poucas vezes apareceria de forma tão marcante quanto no primevo documento do “PT de Massas”.

Para o grupo mineiro, “simplesmente não existe nem deve existir a relação do PT com grupos de esquerda que persistem organizados, apesar dos seus militantes estarem filiados e atuantes dentro do PT”. Em defesa da manutenção da “identidade própria” do partido, “não lhes reconhece o direito de fazer do PT um instrumento”, posição concretizada em cinco pontos. Os dois primeiros articulam a defesa do “direito de organização e expressão político-partidária de todo e qualquer grupo de esquerda” com o não reconhecimento dos grupos organizados dentro do PT, que “não se propõe a ser canal de expressão política” dos mesmos, algo que seria “a negação do próprio PT”. O terceiro ponto apresenta uma vaga definição dos grupos cujo caráter de tendência interna não seria reconhecido, justificando-a:

3. O PT não reconhece como tendência interna os grupos organizados anteriormente à sua existência (ou que tenham se organizado desde então) cujos militantes tenham se filiado ao PT – porque tal fato não corresponde à expressão de correntes de opinião produzidas internamente na dinâmica de suas atividades. (VIANA, 1991, p. 118.)

O quarto ponto é o que mais se atém ao eixo da especificação dos limites para a atuação das tendências internas. Ainda assim, a formulação da proposta está sempre direcionada explicitamente contra as “falsas tendências” mencionadas no título do documento:

4. O PT, sendo um partido aberto, não pede atestado ideológico a seus filiados, mas se reserva o direito de cobrar fidelidade aos seus princípios partidários, não negociando nem transigindo com violações de sua política, à utilização de suas estruturas partidárias com outros propósitos político-partidários; nem tão pouco aceita ser biombo para práticas que condena. (VIANA, 1991, p. 119.)

54

dinâmica do próprio PT, configurando-se na “formação de correntes internas de opinião”, sem prejuízo às estruturas partidárias “não suportando pois, artificializações grosseiras que revelam interesses grupistas ou individuais, especialmente a tentativa de fazer passar como expressão do PT políticas forjadas fora de suas estruturas e de sua prática”. Perceba-se que a externalidade das “falsas tendências” em relação ao PT é colocada em destaque tanto quanto possível. Embora o conceito não apareça no texto do “PT de Massas” mineiro, há aqui uma acusação frequentemente explícita sobre o entrismo que estaria sendo levado a cabo por tais correntes no PT – não é outro o sentido da argumentação, senão enfatizar as origens e os interesses próprios, bem como as perspectivas rupturistas que tais grupos teriam ao tratar o PT enquanto “frente política”. Nos Capítulo IV, discutiremos a tática do entrismo de uma maneira mais ampla, levando em conta algumas das elaborações trotskistas clássicas sobre a questão.

A seguir, no entanto, convém aplicarmos à Articulação as categorias analíticas apresentadas no Capítulo I para o tratamento das subunidades partidárias. Utilizaremos tais categorias como parâmetros, tanto para eventuais comparações quanto para acompanhar o desenvolvimento político da corrente majoritária do PT durante o período em que foi levada a cabo a regulamentação do direito de tendências.

Outline

Documentos relacionados