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As origens da Democracia Socialista: os grupos gaúcho e mineiro,

CAPÍTULO II O Direito de Tendências no Partido dos Trabalhadores:

3.2. As origens da Democracia Socialista: os grupos gaúcho e mineiro,

A consolidação de uma corrente mandelista no Brasil tem um de seus primeiros marcos em abril de 1977, com a conformação de uma “frente jornalística” que viria a editar o periódico Em Tempo, a partir do último bimestre do mesmo ano. Desde meados da década de 1970, a edição de jornais alternativos, geralmente impressos em formato tablóide e caracterizados por sua tiragem limitada, frequência irregular e circulação restrita, foi um importante mecanismo de divulgação das lutas sociais e veiculação de denúncias ao regime militar. Segundo Bernardo Kucinski:

A imprensa alternativa [no Brasil, a partir dos anos 1970] surgiu da articulação de duas forças igualmente compulsivas: o desejo das esquerdas de protagonizar as transformações institucionais que propunham e a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaços alternativos à grande imprensa e à universidade. É na dupla oposição ao sistema representado pelo regime militar e às limitações à produção intelectual-jornalística sob o autoritarismo, que se encontra o nexo dessa articulação entre jornalistas, intelectuais e ativistas políticos. (KUCINSKI, 1991. p. XVI.)

Para as diversas correntes trotskistas que viriam a atuar no PT, a edição de jornais alternativos permitia aliar um trabalho político quotidiano, potencialmente mais regular e centralizado (facilitado por meio da produção, circulação e discussão sobre o jornal) ao anseio de uma parcela do ativismo

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político por novas formas de fazer oposição ao regime, diante do evidente fracasso da opção pela luta armada. Vale lembrar que desde o Que fazer? de Lenin o jornal partidário foi considerado pelos comunistas tanto como uma ferramenta de propaganda quanto como um “organizador coletivo”, uma vez que dava coerência à atuação dos militantes de um mesmo agrupamento, ainda que eles estivesse atuando em distintas localidades e estruturas de militância. (LENIN, 1979. pp. 192 ss.)

O projeto de editar o Em Tempo começou a partir de um “racha” de ativistas políticos até então organizados em torno de outro jornal, o Movimento, que tinha sucursais em diversas cidades brasileiras e em sua origem fora controlado pelo PCdoB. O Movimento seguia defendendo a conformação de uma frente democrática que incluísse os setores liberais-burgueses para enfrentar a ditadura, numa linha de apoio ao MDB comum às organizações comunistas não-trotskistas brasileiras (PCB, PC do B, AP-ML, entre outras), então na ilegalidade. Os futuros organizadores do Em Tempo divergiam dessa orientação política, defendendo a necessidade da organização dos trabalhadores a partir de um princípio de independência de classe.

Além de jornalistas e intelectuais de esquerda, também faziam parte do grupo que fundaria o Em Tempo ex-militantes do COLINA, da AP-ML e da ORM-POLOP, egressos, portanto, de organizações que haviam feito a experiência da luta armada. Outros agrupamentos da esquerda brasileira que viriam a se aproximar do trotskismo compartilhavam com este coletivo a característica de reunir ex-militantes de partidos que haviam aderido à estratégia guerrilheira, e que faziam um balanço negativo dessa experiência, apontando a principal causa de seu fracasso no distanciamento entre a política foquista e o nível de consciência e organização política das massas trabalhadoras.

A organização do novo jornal atraiu alguns militantes da LIBELU, corrente estudantil da OSI trotskista, além de membros do MEP que rejeitavam o trotskismo, mas que encontravam afinidades com o grupo nas críticas ao stalinismo. Na tentativa de aproximar o periódico de suas posições, participaram também deste momento fundacional do Em Tempo, integrantes do MR-8, mais uma das organizações partidárias egressas da luta armada. Por fim, aglutinava ainda alguns militantes autonomistas, que defendiam a desvinculação entre o movimento operário e partidos políticos. (ANGELO, 2008. pp. 60-61.)

Em Minas Gerais, a antiga sucursal do Movimento aderiu maciçamente ao racha que culminaria na fundação do Em Tempo. O grupo mineiro, denominado O. (abreviação de “Organização”), era liderado, entre outros, por Flávio Andrade, pelo ex-militante da AP Aluísio Marques, e por João

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Machado, anteriormente membro da Juventude Universitária Católica (JUC). Ao mesmo tempo em que se empenhava no racha da Movimento, a O. mineira lançava tendências 64 no movimento estudantil, buscando disputar sua direção no estado. A mais importante delas foi a Centelha, que disputou a eleição de 1977 para o Diretório Central dos Estudantes da UFMG, sendo derrotada pela chapa organizada pela AP-ML, mas consolidando o peso político que a O. mineira passava a ter entre os estudantes no estado, atestado pela conformação de novas tendências ligadas ao grupo em outras universidades mineiras nos anos seguintes. Com a articulação em torno do Em Tempo, boa parte da direção da O. se transferiria para São Paulo, visando impulsionar a circulação nacional desse novo órgão de imprensa alternativa. Ao mesmo tempo, os demais dirigentes do grupo mantinham seu jornal regional, o De Fato.

Desde meados da década de 1970, também fazia parte da estratégia da O. aproximar-se do movimento operário, o que se concretizou na militância junto à Oposição Metalúrgica de Belo Horizonte, uma das principais representantes do Novo Sindicalismo, que buscava se construir a partir de assembleias de base e conselhos de fábrica, afastando-se da estrutura tradicional do sindicalismo brasileiro atrelado ao Estado. A aproximação entre a O. e a Oposição Metalúrgica, no entanto, se deu de maneira mediada: não através da clássica tática do giro de militantes da organização para o trabalho em fábricas, mas principalmente por meio do DIEESE (cujo escritório mineiro era então dirigido por Virgílio Guimarães, membro da O.) e do Centro de Estudos do Trabalho (CET), órgão que publicava materiais de formação tratando de questões do mundo do trabalho a partir de um viés marxista, e que também era dirigido por um militante da O. (ANGELO, 2008. pp. 63-64) A simpatia da O. mineira pelas posições de Leon Trotsky surgiu nesse período, a partir da leitura e discussão de obras do mesmo, além das de Isaac Deutscher e de Ernest Mandel. (KAREPOVS; LEAL, 2007. p. 163.).

Também um grupo gaúcho referia-se a si próprio através da sigla O., coincidência explicável pela preocupação com as questões da clandestinidade sob o regime militar, comum aos militantes da esquerda. A Organização do Rio Grande do Sul reunia então cerca de 15 militantes, muitos deles oriundos do Partido Operário Comunista – Combate (POC-C), como Raul Pont. O POC-C, por sua vez, era fruto da união, em fins da década de 1960, entre uma dissidência gaúcha do PCB e ex-militantes da ORM-POLOP, e havia sido apoiado pelo SU, de modo que a presença desses militantes contribuiu para a afinidade teórica da O. gaúcha com o trotskismo. (KAREPOVS; LEAL, 2007, p. 156.) A organização também havia investido numa tendência estudantil, a Nova Proposta, organizada em 1973 na UFRGS,

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Aqui, o termo “tendência” aparece como sinônimo de “chapa” (para disputa de uma entidade) ou de “coletivo político estudantil”.

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para angariar militantes e intervir politicamente com um conteúdo classista, que diferenciava sua linha da das principais correntes presentes no movimento estudantil de então, o PC do B e a AP-ML. (ANGELO, 2008. pp. 64-65.) Em 1978, a O. gaúcha se encontrava dentro do MDB, organizando a Tendência Socialista no Rio Grande do Sul.

As coincidências na opção pela atuação no movimento estudantil e no enfrentamento com PC do B e AP-ML serviram para aproximar as O.s mineira e gaúcha, principalmente nos congressos estudantis nacionais. Assim, quando a O. mineira aderiu à dissidência do Movimento, optando pela construção do Em Tempo, estendeu o convite à O. gaúcha, então responsável pelo periódico regional Peleia. De maneira semelhante ao que ocorrera com a direção da O. de Minas Gerais, também os dirigentes do grupo gaúcho se dividiram, parte deles transferindo-se para São Paulo para se dedicarem junto aos líderes mineiros à publicação do Em Tempo. (ANGELO, 2008. pp. 69-70.)

Devido ao caráter de frente jornalística assumido pelo Em Tempo quando de sua fundação, o primeiro programa político do periódico, que orientaria sua linha editorial entre outubro de 1977 e agosto de 1978, era bastante básico, tratando de questões de curto prazo e sem definir-se por uma estratégia determinada. Segundo o Estatuto do jornal, aprovado ainda em 1977, a definição do Conselho Editorial do mesmo ficava a cargo dos acionistas, classificados em dois grupos, cujos votos tinham peso distinto. Os acionistas tipo A, ou seja, os que trabalhavam no jornal, colaboradores e administradores diretos, elegiam 80% dos membros do Conselho Editorial, que por sua vez definiria a diretoria e a linha editorial do periódico durante o mandato de um ano. Os 20% restantes eram escolhidos pelos votos dos acionistas tipo B, menos envolvidos com a produção do Em Tempo. (ANGELO, 2008. p. 71.) Graças a esse arranjo estatutário e à transferência de militantes para São Paulo, centro da elaboração do periódico, as Organizações mineira e gaúcha, afinadas por seu contato prévio no movimento estudantil e pela simpatia em relação a posições teóricas trotskistas, tornaram-se hegemônicas no Conselho Editorial do jornal antes mesmo do lançamento da primeira edição do jornal, em novembro de 1977.

No decorrer dos dois anos seguintes, a frente jornalística viria a se dissolver. Em agosto de 1978, a maioria trotskista no Conselho Editorial aprovou um novo programa para o Em Tempo, que se definia pelo apoio à formação de um partido socialista, à esquerda do MDB. Ainda no primeiro semestre do ano seguinte, a Tendência Socialista gaúcha, dirigida pela O. daquele estado, saía em bloco do MDB para engajar-se na construção do PT. A Tendência Socialista classificava o PT nascente como um projeto frentista de massas, capaz de abrigar os diversos agrupamentos da esquerda brasileira nos

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marcos de um partido classista, politicamente independente da burguesia. A partir de março de 1971, quando se retiram do Em Tempo os membros do MR-8 e da AP-ML, atraídos pelo MDB, o jornal passa a declarar-se oficialmente como parte do Movimento pró-PT. O grupo dos autonomistas, favorável à construção do PT, permaneceria na frente jornalística até dezembro de 1980, quando se retiraria por conta dos atritos crescentes com os trotskistas. (ANGELO, 2008. pp. 74-75.) A fundação da Democracia Socialista ocorreria no marco dessas disputas pelo controle editorial do Em Tempo. A partir dos acordos aprofundados na convivência dentro da equipe do jornal, membros da Tendência Socialista gaúcha, da O. mineira e ex-militantes do POC-C uniram-se para formar a nova organização, decisão tomada em congresso na cidade de São Paulo, em dezembro de 1979.

A partir da fundação da DS e com a saída dos militantes autonomistas, o jornal Em Tempo acaba por se tornar o porta-voz da nova organização. Karepovs e Leal (2007, p. 164.) levantam dados que evidenciam uma considerável redução da base entre a qual circulava o periódico a partir de 1980, se comparada com o período da frente jornalística. Enquanto a média de vendas do Em Tempo em seus dois primeiros anos de existência ficava em torno dos 8.000 exemplares por edição, número bastante elevado para os padrões da imprensa alternativa brasileira da época, a partir de 1980 a cifra cai para cerca de 2.200 exemplares por edição. Os autores notam ainda que a convivência com outras organizações no âmbito da frente jornalística acabou não trazendo à DS um ganho significativo no número de seus militantes. (KAREPOVS; LEAL, 2007. p. 165.)

A própria escolha do nome Democracia Socialista pela nova organização expressava a já consolidada simpatia dos militantes do grupo pelas posições mandelistas no movimento trotskista internacional. O documento “Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado”, elaborado por Ernest Mandel e aprovado pelo XI Congresso do Secretariado Unificado da IV Internacional ainda em 1979, constituíra uma das principais bases para as discussões entre os militantes que formariam a DS. Já em seu congresso fundacional a DS recebeu dois representantes internacionais do SU, embora sua filiação formal ao Secretariado tenha ocorrido apenas em 1984. (KAREPOVS; LEAL, 2007. p. 164.) A adesão dos trotskistas do Em tempo às posições programáticas afirmadas pelo documento do SU era facilitada por uma profunda consonância entre a linha defendida pelo mandelismo para a construção de partidos de massas e a participação ativa que o grupo brasileiro já desenvolvia no Movimento Pró-PT. Além disso, convergiam também suas avaliações da conjuntura internacional e a definição de quais as tarefas estratégicas do movimento operário. De acordo com Angelo:

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As articulações para a criação do PT, por exemplo, passaram a ser vistas [pelos militantes da DS] como um possível embrião do partido revolucionário defendido pelo SU. O apoio à proposta petista, por conseguinte, teve exatamente o objetivo de transformá-lo num partido que pudesse dirigir os movimentos de massas na implantação do socialismo. Já a democracia socialista, entendida como uma fase transitória entre o capitalismo e o socialismo, era outra questão defendida pelo Secretariado Unificado que também se adequava à realidade brasileira. Na avaliação daqueles grupos, os marxistas-revolucionários, como eles mesmos se intitulavam, deveriam lutar pela implantação de uma democracia socialista que representasse uma alternativa ao regime militar e, ao mesmo tempo, permitisse a transição para o socialismo. (ANGELO, 2008. pp. 84-85.)

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