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CAPÍTULO II O Direito de Tendências no Partido dos Trabalhadores:

2.7. Uma trégua na disputa

Apesar de sua indiscutível majoritariedade, a Articulação sofria eventuais derrotas, sobretudo em embates nos níveis municipal e estadual, e frequentemente como reflexo da aglutinação dos distintos setores à sua esquerda. À época do V EN, embora o desempenho da Articulação nos Encontros declinasse, a corrente estava segura de manter a adesão de mais da metade dos delegados às suas posições, de modo que tais derrotas não constituíam grave ameaça de perda do controle sobre o partido. Algumas das disputas em que era vencida, contudo, tinham um valor estratégico amplo e evidente.

As prévias internas que decidiram a candidatura majoritária petista no município de São Paulo para as eleições de 1988 estiveram certamente entre elas. O candidato apoiado pela Articulação, Plínio de Arruda Sampaio, foi derrotado por Luiza Erundina, sustentada pela esquerda do partido e inclusive por setores da base da própria Articulação. Em todo caso, aquelas eleições foram encaradas pela direção partidária como uma grande vitória, uma vez que expressavam o crescimento eleitoral mais rápido que o previsto, mesmo pelos mais otimistas. O PT alcançava naquele ano as prefeituras de 36 municípios, entre eles três capitais (Vitória, Porto Alegre e São Paulo).

Lincoln Secco (2011) nos oferece uma das chaves para atribuir um significado geral, do ponto de vista da história do PT, ao período que se inicia justamente durante o intervalo que identificamos entre os distintos momentos do processo de regulamentação do direito de tendências. Para o historiador, “o ano de 1989 assinala a maioridade do PT”. Até então, o partido buscava estabilizar-se enquanto oposição social e, para tal, empenhava-se em consolidar sua direção e sua estratégia. Mas não

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se deve esquecer o isolamento político em que o partido se encontrava, desde sua derrota na campanha das “Diretas Já!”, ainda em 1984. No cenário aberto naquela ocasião e que vigorou nos anos seguintes, a manutenção da unidade partidária era compreendida como uma condição de seu fortalecimento; ao mesmo tempo, o combate às alas radicais minoritárias do partido era, evidentemente, também uma condição para a consolidação da Articulação enquanto direção.

A partir de 1989, no entanto, aquilo que o PT “já se tornara socialmente (a oposição de esquerda predominante na sociedade civil) ele se converte no Estado: uma oposição dentro do aparelho de Estado político”. (SECCO, 2011, p. 25. Grifo meu.) Essa afirmação compreende, além da novidade das vitórias em importantes capitais (inserção no poder executivo do Estado) também o crescimento das bancadas parlamentares petistas. As diversas relações entre o partido e o aparelho estatal têm, como sabemos, um peso decisivo sobre o processo de institucionalização da organização. A Articulação apontava como estratégia a conquista do poder Executivo do Estado em nível nacional e impulsionava a progressiva parlamentarização do PT, visando ocupar os “espaços institucionais” necessários para o “acúmulo de forças”.

É Ribeiro quem nota que, a partir do V EN (1987) se inicia o período no qual a “face pública” do partido, isto é, mandatários e ex-mandatários de cargos públicos (principalmente parlamentares), passará a ter um peso cada vez maior na composição dos organismos de direção partidária, representando sempre a partir daí, pelo menos 40% das CEN's. (RIBEIRO, 2008, p. 212).39 O crescimento dos diversos tipos de inserção institucional petista proporcionaria novos âmbitos e dimensões aos enfrentamentos entre as tendências internas.40

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Para explicar a parlamentarização da direção petista, Ribeiro afirma que “as estratégias das elites internas também devem ser levadas em conta. Como a capacidade de distribuição de incentivos é recurso decisivo nos jogos horizontais de poder, os parlamentares se tornam armas valiosas nos conflitos internos. No PT, esse potencial foi constantemente mobilizado pelo agrupamento que concentra a maior quantidade de líderes com peso eleitoral: a Articulação/Campo Majoritário. O peso dos parlamentares (e do próprio Lula) foi arma sempre empregada nas disputas contra as correntes de esquerda”. (RIBEIRO, 2008, p. 214.)

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A inserção estatal não foi a única dimensão ambiental em transformação para o PT no período. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) fundada em 1983 crescia, bem como a inserção petista no movimento sindical e nos aparelhos das entidades, que passavam a representar uma zona de incerteza significativa para o PT. Como aponta Ribeiro recuperando um argumento já desenvolvido por Panebianco, “essas entidades constituem terrenos férteis para atuação e fortalecimento das facções, na arregimentação de novos militantes, na captação de recursos financeiros, na obtenção de votos a seus candidatos etc., à revelia do controle por parte das instâncias oficiais do partido”. (RIBEIRO, 2008, p. 207. O grifo é de Ribeiro.) Embora em escala enormemente inferior, também as correntes da esquerda partidária frequentemente possuíam alguma inserção sindical, chegando a ocupar postos diretivos em sindicatos, a partir dos quais organizavam bases locais para sua atuação política. Um acompanhamento mais detalhado das relações entre o partido e o movimento sindical e seus aparelhos escaparia ao âmbito de nossa pesquisa, mas faremos referência a essas relações com alguma frequência. Isto porque os enfrentamentos na arena sindical reproduziam (embora não de maneira idêntica) as tensões entre as tendências petistas, e as

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Mas a maioridade do PT traria um desafio ainda maior, que não poderia ser previsto em toda sua magnitude à época do V EN. Trata-se da possibilidade real de chegada do partido à Presidência da República. Lembremos, como faz Iasi (2006, pp. 442-443), que as formulações estratégicas petistas que embasavam o programa democrático-popular haviam sido pensadas “dentro de uma dimensão temporal bastante elástica”, pois não estariam colocadas para o curto prazo, dependendo de um “longo acúmulo de forças”. Contrariando essa expectativa inicial pouco otimista, a perspectiva concreta de uma vitória presidencial esteve colocada pelo crescimento da candidatura Lula e pela chegada da Frente Brasil Popular ao segundo turno das eleições de 1989, convulsionando o partido. Esperava-se que o desempenho eleitoral de Leonel Brizola (PDT) fosse superior ao de Lula, o que bloquearia a chegada da FBP ao segundo turno.

Em entusiástica resenha da corrida eleitoral daquele ano, Wladimir Pomar apontava os elementos que possibilitaram o crescimento da candidatura Lula. O momento era favorável, uma vez que, “cada vez mais nitidamente desde as eleições de 1985, as elites apresentavam-se sem um projeto unificado”, abrindo espaço para a esquerda. A campanha petista buscava dar vazão ao descontentamento e às aspirações das massas populares por mudanças, que se expressavam com crescentes greves e protestos, desde o fracasso do Plano Cruzado. Além disso, um arco de alianças mais amplo foi pensado pela direção partidária como saída para o isolamento em que o PT se encontrava: da Frente Brasil Popular participariam, além do PT, PSB e PC do B; o PV se aproximaria da FBP, mas a abandonaria. No segundo turno, Lula atrairia ainda o apoio de PDT, PSDB e setores do PMDB. (POMAR, 1990, pp. 35-40.)

Apesar do crescimento da candidatura Lula, Collor conseguiu garantir a vitória graças ao voto das camadas do eleitorado de menor renda, concentradas nas periferias e pequenas cidades. Para tal, sabidamente contou com o apoio político e material de amplos setores do empresariado brasileiro e da grande mídia (tendo a Rede Globo cumprido papel fundamental na reta final da campanha, com a reconhecida manipulação do último debate eleitoral), além de ter utilizado expedientes escandalosos, que iam de calúnias contra Lula à contratação de “brigadas de mercenários, muitos dos quais vestindo camisetas do PT, [que] percorriam favelas e bairros pobres ameaçando as pessoas com os boatos então amplamente difundidos por Collor e pela imprensa”. (POMAR, 1990, p. 96.) O anticomunismo foi um dos sentimentos mobilizados na ofensiva de Collor, buscando dividir o apoio petista nas classes médias a partir do estímulo aos temores pelo suposto “achatamento” do padrão de vida que decorreria das disputas pela direção da CUT eventualmente coincidiram com momentos decisivos na história das lutas internas do PT. Trataremos de um deles no Capítulo IV.

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medidas radicais a serem adotadas por um eventual governo petista.41

A amarga derrota quando a vitória parecia tão próxima demandou reflexão sobre as suas causas. Em fins de janeiro de 1990, a CEN e o DN publicavam uma “Avaliação da Campanha Eleitoral Presidencial”, que buscava sintetizar um balanço “oficial” interno da experiência. O signo geral das eleições, para o PT, seria o da vitória, uma vez que a candidatura Lula teria unificado o campo democrático e sido acompanhada pela participação militante do partido e, “principalmente, pela mobilização popular”. Os recursos desiguais, o apoio da mídia e o perfil de classe da candidatura Collor eram apontados como causas estruturais da derrota no segundo turno, sem que o partido se isentasse da responsabilidade por alguns erros táticos e estratégicos. A própria estrutura de direção do partido teria se mostrado “débil e amadora nas respostas às necessidades do 2º turno”, acarretando na demora da análise do perfil do voto do 1º turno e em vacilações quanto à agenda política e à intervenção no rádio e na televisão. “A ausência de um jornal nacional” também teria sido “desastrosa para nosso partido”. O erro na definição da linha e da abordagem para o último debate presidencial também era reconhecido. (POMAR, 1990, pp.117, 119-122, 124.)

A experiência eleitoral de 1989 consiste numa das principais razões pelas quais, nas palavras de Secco, “em 1990 descortina-se um novo período” para o PT. Esse novo período seria “marcado pela crise do socialismo”, em decorrência da bancarrota dos Estados operários burocratizados do Leste Europeu que teve na queda do Muro de Berlim sua apoteose, acompanhada por uma crescente ofensiva ideológica antissocialista que já começava a apresentar efeitos nítidos sobre o PT, como demonstrara a campanha de Collor. Ainda segundo Secco, o processo traria consigo a “exigência de aggiornamento ideológico” da ala majoritária do partido (SECCO, 2011, p. 25.)

É certo, portanto, que essa atualização ideológica esteve imbricada com o desempenho eleitoral petista. Até mesmo porque a questão da chamada “crise do socialismo” era encarada como um tema de importância menor por um setor significativo da Articulação, o que ficaria evidente pela avaliação feita por alguns de seus quadros do tratamento dado à questão no I Congresso do PT (1991). José Luís

41 A “Avaliação da Campanha Eleitoral e Presidencial” aprovada pelas instâncias nacionais de direção do PT afirmaria que, durante a campanha, o PT teria subestimado “o papel do anticomunismo, do sentimento religioso de nosso povo, de seu sentimento nacional expresso em nossa bandeira e principalmente a exploração caluniosa que Collor fez de nosso programa econômico, propagando por todo país que expropriaríamos a propriedade individual dos cidadãos e sua poupança e estatizaríamos toda a economia”. No contexto da falência dos regimes do chamado “socialismo real”, o documento relacionava ainda a exploração desse sentimento anticomunista pela candidatura Collor com a “mais grave” “incapacidade [do próprio partido] de capitalizar e explorar ao máximo aquilo que para o PT é uma confirmação de nossas avaliações sobre o socialismo e os regimes da Europa Oriental e mesmo da URSS. Nosso Partido nasceu sob o signo do socialismo democrático e do repúdio ao stalinismo e ao socialismo burocrático”. (in POMAR, 1990, p. 122.)

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Fevereiro, membro da Coordenação Nacional da Articulação, por exemplo, publicaria na revista Teoria & Debate nº 18 um artigo sobre o congresso partidário, no qual afirmava que a falência do modelo do “socialismo real” teria impulsionado um debate necessário para os setores “órfãos ou herdeiros do leninismo mais ortodoxo”, mas “estranho à tradição majoritária do PT”. (FEVEREIRO, 1992, p. 54.)

O balanço eleitoral de 1989, em todo caso, permaneceria sendo campo de uma encarniçada disputa durante o período seguinte. Tal disputa deixaria marcas nítidas sobre a nova fase do processo de regulamentação do direito de tendências, inaugurada naquele momento.

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