• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II O Direito de Tendências no Partido dos Trabalhadores:

3.15. Conclusão

Embora tenhamos indicado mudanças na abordagem da temática das tendências, bem como uma redefinição estratégica significativa, permanece inegável que a DS manteve uma trajetória coerente, e que existe de fato uma unidade nas concepções que sustentou ao longo do período estudado. Desde a fundação do PT, a DS sempre considerou que o partido cumpriria um papel fundamental para a construção de um projeto socialista no Brasil, ainda que num primeiro momento o compreendesse enquanto uma “frente política dos trabalhadores”. A partir de seu XIII Congresso (1985), a corrente internacional à qual a DS estava ligada, o SU, começa a elaborar uma caracterização nem sempre explícita de que rupturas revolucionárias radicais, que exigiriam total independência política do

160

proletariado, não estavam na ordem do dia. A corrente passa a enfatizar a ideia de um processo de recomposição do movimento revolucionário mundial, bem como a reduzir o emprego do conceito de centrismo, ampliando a definição de quem seriam os “revolucionários” com os quais se deveria construir um programa comum. A queda do Muro de Berlim e o fim da URSS aprofundariam essas definições.

Já em 1981 a DS apostava: “o caminho para a construção do PT, para que ele assimile o programa revolucionário será sem dúvida não apenas longo, mas tortuoso” (DS, 1981, p. 29). No mesmo sentido, a estratégia do “movimento em pinça”, que começa a ser exposta pela DS em 1989, já operava explicitamente com a premissa de que uma série de lutas deveria ser travada antes do “confronto final”, de modo que o acúmulo de postos dentro da institucionalidade burguesa tornava-se condição de possibilidade do socialismo. A partir dessa concepção, o processo de “se assumir enquanto tendência petista”, no caso da DS, expressava tanto os acordos táticos com o grupo majoritário na direção petista (entre eles, o peso que ambas davam à necessidade de avançar na ocupação de postos dentro da institucionalidade burguesa) quanto uma estratégia de longo prazo própria da DS, de disputa da hegemonia dentro do PT, buscando aproximar a ala esquerda da Articulação das posições que considerava revolucionárias.

Quanto ao direito de tendências, especificamente, avaliamos que, embora a corrente sempre tenha defendido a necessidade de regulamentá-lo, no momento em que o debate se tornou candente no partido, a DS identificou traços de sectarismo na iniciativa. Isto porque a proposta de regulamentação formulada pela Articulação a partir de 1986 direcionava-se contra os “grupos organizados” dentro do PT, estabelecendo uma distinção artificial entre “partidos dentro do partido” e um suposto petismo autêntico – representado pelas posições da tendência majoritária. Lembremos que a DS também era alvo desse ataque: em “Algumas Considerações Sobre as Tendências Organizadas no PT”, José Dirceu e Wladimir Pomar (1986) incluíam-na entre as “tendências organizadas” que apresentavam demasiada autonomia e estariam no PT com o objetivo de se autoconstruir. (DIRCEU; POMAR, 1986. pp. 27-28 et passim.)

Como vimos, a DS não negava a necessidade de estabelecer uma unidade partidária coesa na ação, e sempre sustentou que a atuação das tendências deveria se dar exclusivamente no âmbito interno ao partido. Apesar disso, no período que vai até o V EN, a corrente mandelista hierarquizava sua intervenção na polêmica das tendências a partir do eixo da garantia das liberdades democráticas dos grupos minoritários. Isto se traduzia em associar a regulamentação das tendências a outras medidas

161

democratizantes, como a instituição da proporcionalidade em todos os órgãos de direção, em especial nas Executivas; além disso, a DS enfatizava que o objetivo da discussão era avançar nas definições ideológicas e programáticas do PT, e não o de uma “caça às bruxas”.

No segundo momento do processo, a partir de 1990, quando teve lugar a implementação da regulamentação, essa hierarquia não mais se fazia presente. Identificando avanços no debate e na definição das “convicções socialistas” do PT, a DS passou a dar maior ênfase ao caráter estratégico do partido e à sua unidade, representada por seus organismos de direção e instâncias máximas (Encontros e Congressos). Ao cobrar cada vez mais a adequação dos agrupamentos que não se subordinavam às deliberações partidárias, deixava entender que os mesmos constituíam obstáculos à democracia partidária, atentando contra os direitos dos filiados não organizados em tendências e contra a unidade do PT – expressa por sua direção. Mais que uma ausência de hierarquia, parece mesmo haver uma tímida inversão, ainda que incompleta.

Quando a regulamentação foi utilizada para excluir a Convergência Socialista do PT, a DS entendeu a medida como um equívoco “apressado e sectário” do DN. Nesse episódio hierarquizou novamente sua resposta por um princípio democrático, questionando a legitimidade do DN para encaminhar uma questão de tamanha magnitude, que deveria ter sido deixada para um Encontro Nacional. Para a DS, a direção petista perdia a oportunidade de disputar e ganhar através do debate “militantes valorosos pra a efetiva construção do partido”; optando pela exclusão, acabava por unificar a CS em torno das posições mais sectárias existentes na corrente morenista, as daqueles militantes que preferiam sair do PT. (Em Tempo, nº 259, 1992. p. 8.) Como se pode perceber, a caracterização da exclusão como um equívoco não impedia nem limitava as críticas que os mandelistas faziam à CS, que por atuar como fração pública e declarar sua insubordinação às resoluções do I Congresso, era encarada como a responsável direta pelos atritos.

Como a regulamentação incidiu sobre a própria DS? Vitor A. de Angelo considera que a resolução de 1987 “não trouxe qualquer dificuldade para a organização”. As principais alterações concretas geradas pela resolução foram a incorporação da expressão “Tendência interna do Partido dos Trabalhadores” ao nome Democracia Socialista, e a circulação exclusivamente interna à qual o Em Tempo teria passado a se destinar. (ANGELO, 2008, pp. 183-184.) Além disso, se pode falar em uma redução da influência direta do centro de elaboração internacional mandelista, o SU, sobre a corrente, muito embora a DS tenha seguido participando dos espaços internacionais promovidos pelo mandelismo e reivindicando uma estratégia afinada com a do SU.

162

Existem diversos elementos que contribuem para explicar porque a DS, que no início da querela das “tendências organizadas” foi identificada como mais um “partido dentro do partido” pela ala majoritária do PT, não sofreu ameaças de exclusão quando a regulamentação foi implementada. O primeiro deles tem um caráter bastante prático e objetivo: a corrente subordinou-se de fato à regulamentação. Conforme exemplifica o caso da disputa pela política a ser aplicada pelo PT contra Collor, a DS buscava ao máximo a manifestação de suas divergências dentro dos limites estabelecidos pela regulamentação – o que se caracteriza, principalmente, pela ausência completa, em seus textos e declarações, de palavras de ordem e chamados para a ação distintos daqueles aprovados pela direção do partido. Ainda que a corrente não abandonasse as críticas às incorreções que julgasse haver na linha implementada pela direção, ao evitar a adoção de consignas polêmicas (como “Fora Collor!”) antes que fossem oficializadas pelas instâncias superiores do PT, a DS fazia o suficiente para não se caracterizar enquanto fração pública.

Resta apontar a explicação para a disposição da DS em subordinar-se, que deriva de sua opção estratégica por permanecer no PT. Avaliando a trajetória da corrente mandelista brasileira, Angelo busca apontar a particularidade daquela concepção frentista com a qual operava quando foi fundada (expressa em seus primeiros documentos internos, por exemplo, quando falam da estratégia da construção do PT em “três níveis”). O autor argumenta:

A caracterização do PT como uma frente estratégica (…) fundamentou-se exatamente na percepção de que a presença de várias organizações de esquerda no interior do partido facilitaria a aproximação entre a DS e outras forças políticas com as quais ela poderia discutir a criação da corrente revolucionária. A Democracia Socialista, entretanto, rapidamente abandonou essa concepção frentista, passando a defender o PT como partido mesmo – mas continuando a ressaltar seu caráter estratégico na implantação do socialismo – e a combater os agrupamentos que pretendiam transformá-lo numa frente que apenas expressasse politicamente os trabalhadores, em vez de dirigi-los. De qualquer forma, sob o ponto de vista orgânico, a corrente revolucionária nunca chegou a existir, na prática. (ANGELO, 2008, p. 187. Grifo do autor.)

Concordamos com o sentido das afirmações de Angelo, pois desde suas primeiras elaborações políticas a DS sustentava a ideia do “longo e tortuoso processo” de assimilação do programa revolucionário pelo PT, considerando-o como uma frente-única operária “mais estratégica” do que estes organismos costumavam ser encarados pela teoria trotskista. Ou seja, a possibilidade de romper com o PT não decorria da caracterização inicial com a qual trabalharam os mandelistas brasileiros, do PT enquanto frente política da classe trabalhadora. Desse modo, não é possível utilizar o conceito de entrismo para avaliar a relação entre a DS e o PT.

163

Angelo define a postura da DS dentro do PT como “crítica e conciliatória, ao mesmo tempo”, o que fica evidente, por exemplo, na sua resposta ao lançamento do Manifesto dos 113. Outro exemplo dessa postura, dessa vez um que revela os primeiros efeitos da inflexão mandelista de 1985, foi a avaliação que fez a corrente acerca da participação eleitoral petista no mesmo ano. Angelo aponta que nessa avaliação

… a DS colocou-se entre os xiitas e os light do PT, destacando alguns problemas na campanha televisiva do partido mas observando, por outro lado, que o avanço sobre a classe média fora uma decisão acertada – posição contrária a da maioria da esquerda organizada petista. (ANGELO, 2008, p. 189.)

O autor conclui seu trabalho com algumas considerações que tocam a questão da permanência da DS no PT. Reproduzimo-las:

Se, por um lado, a Democracia Socialista foi uma das organizações políticas que mais cresceu no PT ao longo da década de 1980, por outro, não ter conseguido fazer com que o partido seguisse pelo caminho da revolução colocou a DS diante do seguinte dilema: permanecer no PT e lutar por sua transformação no partido revolucionário ou transformar a si mesma para adequar-se ao partido. O fato de a DS ser o único entre os grupos trotskistas que apoiaram o PT desde sua fundação a permanecer na legenda parece indicar que muito dessa concepção foi abandonada, talvez em favor dos cargos e do prestígio que ela alcançou ainda nos primeiros anos dentro do partido. A Democracia Socialista, contudo, jamais assumiu plenamente essa mudança estratégica, incorporando a seu discurso revolucionário uma prática política considerada reformista pelo próprio trotskismo. (ANGELO, 2008, p. 192. O grifo é meu.)

Andriei G. Gutierrez, cujo trabalho acompanha a DS e outras correntes trotskistas nas eleições presidenciais de 1998 e 2002, é mais enfático em suas conclusões. Em primeiro lugar, aponta já na estratégia do “movimento em pinça” um distanciamento com relação à ortodoxia trotskista, uma vez que tal estratégia trazia embutidas certas noções etapistas, expressas principalmente nas ideias de um necessário acúmulo de forças e da aliança com setores pequeno-burgueses e burgueses para enfrentar o Capital monopolista. (GUERRERO GUTIERREZ, 2004, pp. 69-70.) Além disso, nos anos de 1990 a DS aprofundaria essas concepções, reformulando seu programa e mesmo sua instrumentação teórica. A partir de uma significativa aproximação com setores do catolicismo progressista e da teologia da libertação, facilitada pela atuação do dirigente internacional do SU, Michael Löwy, Gutierrez afirma que mesmo os textos publicados no Em Tempo:

164

… passam a falar cada vez menos em “luta de classe” para falar em “cidadania”; usam cada vez mais o termo “solidariedade”, não uma solidariedade de classe para unir os trabalhadores, mas uma solidariedade (no sentido cristão do termo) para unir os “homens”. (GUERRERO GUTIERREZ, 2004, p. 91.)

Um elemento relacionado por Gutierrez com o abandono do trotskismo (na prática) pela DS é o envolvimento da corrente com as experiências de gestão do “ramo administrativo do Estado burguês”. O autor refere-se aos três governos consecutivos do PT na capital gaúcha, e em especial aos dois últimos: Raul Pont foi vice-prefeito de 1993-1996, e prefeito na gestão seguinte. Dentre as iniciativas governamentais que implementou, a mais reivindicada como positiva pela DS foi a do “orçamento participativo”, que segundo Gutierrez, “a princípio, (…) tem alguma influência da concepção trotskista de gestão a partir dos „conselhos operários‟”. No entanto, o autor afirma que a proposta de democratizar os mecanismos decisórios do Estado entre os diversos setores da “sociedade civil” pouco avançou no empoderamento da população, dados os limites do “orçamento participativo” que decidia, na maioria das vezes, sobre menos de 10% do orçamento municipal, e que muitas vezes cumpriu o papel de “mero legitimador das instância superiores” (isto é, do planejamento e das decisões tomadas nas instituições do Estado). (GUERRERO GUTIERREZ, 2004, pp. 88-90.) Levando em conta que a experiência do “orçamento participativo” permaneceu sempre subordinada à legislação vigente e a um sistema de distribuição fiscal que concentra recursos na União, podemos afirmar que, de fato, o modelo do não corresponde a uma tática trotskista, na medida em que não se choca com a institucionalidade burguesa, mas acaba por subordinar-se a ela.

É necessário destacar ainda que o primeiro mandato de Raul Pont como deputado federal se inicia em 1986. Não podemos menosprezar os efeitos dessa experiência sobre o desenvolvimento da estratégia do “movimento em pinça”, que se pautava justamente em valorizar o aspecto institucional da luta, antes negligenciado. É no mesmo período que a Articulação passa a tomar passos decididos no sentido de viabilizar o PT enquanto partido de governo – a luta contra a ala xiita do partido, da qual a regulamentação da atuação das tendências foi uma das expressões, era uma parte fundamental desse projeto, uma vez que o PT buscava aproximar-se de uma parcela do eleitorado sensivelmente mais anticomunista que o próprio movimento sindical. Mas ao fim da década de 1980, ficava cada vez mais evidente que, na prática, a Democracia Socialista não aplicava táticas semelhantes às dos ditos xiitas; reproduzindo a posteriori o que se passou com o próprio PT, a moderação discursiva demoraria ainda uma década para se consolidar. Em todo caso, à altura do I Congresso (1991), os objetivos da DS e da Articulação se encontravam afinados em alguns pontos dos quais a Convergência divergia. No capítulo seguinte, trataremos da CS, e poderemos aprofundar essa comparação.

165

Outline

Documentos relacionados