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5. Resultados e Discussões

5.6 A Atividade da Venda a partir do Gênero Profissional

Como visto em capítulo teórico desse estudo, o gênero profissional funciona como se promovesse uma sustentação simbólica que pode construir e orientar sobre mudanças (Clot, 2006, 2010) desde o que é prescrito, referindo-se a normas e tarefas, até as modificações e desenvolvimentos individuais, singulares, que podem ser empreendidas por cada profissional na área de vendas, que é o contexto em questão, funcionando como se representasse a cultura da profissão.

Identificar um gênero profissional relacionado a um ofício e suas atividades, permite perceber questões da memória genérica do trabalho, aquilo que os trabalhadores de certa função em suas realidades concretas percebem, reconhecem, apreciam ou temem, a partir de Clot (2006). Funciona como conhecer as “fronteiras móveis do aceitável e não aceitável, traço de união e possibilidade de diferenciação” (Clot, 2006, p. 49) no desenvolvimento da atividade. Nesse sentido, o gênero profissional traz consigo também as problemáticas comuns que se apresentam como impedimentos, mas também impulsiona o desenvolvimento, promovendo a ampliação do poder de agir e do trabalho bem-feito.

Como visto, uma representação significativa do funcionamento dessa ideia são os coletivos de trabalho. O coletivo de trabalho se refere à dimensão transpessoal de abordagem da atividade de trabalho, abrangendo fenômenos que encontram seu sentido e sua dinâmica em grupos com afinidade perceptível por inserção organizacional, e que demonstram profunda ligação com o gênero profissional, movidos pela afetação emocional que há entre si. Logo, é o afeto que une os coletivos de trabalho e os transforma em gêneros profissionais significativos na vida daqueles que fazem parte desse grupo (Andrade, 2018).

Assim, considerando os conceitos acima reapresentados, é importante voltarmos à proposta dessa pesquisa, que teve como objetivo compreender a atividade de trabalho de vendedores, abordando tal ofício desde sua trajetória profissional, caracterização da atividade, prescrições, impedimentos e contradições e, por último, como se dão as relações entre pares, entre vendedores. A análise realizada apontou, dessa forma, que há um certo distanciamento entre esses profissionais, de modo geral, justificado por uma suposta competição entre si, uma vez que esses eles são estimulados a buscar seus próprios resultados a todo custo, tendendo a isolar-se para isso.

Como vimos, a rivalidade em questão foi expressa nas falas da maioria dos participantes, que expuseram a forma como lidam com ela, ora isolando-se para conseguir seus objetivos com afinco, ora buscando fazer “sua parte” na socialização, buscando tratar bem seus colegas, ainda que não recebam o mesmo em troca. Expressões como “selva” e “briga de águia” (que trazem elementos instintivos de suposta agressividade nessas relações interpessoais) foram colocadas nas falas de alguns participantes, quando orientaram a pesquisadora sobre realizar a atividade, ao ter que substituí-los em um dia de trabalho, pois é preciso ter muito cuidado ao lidar com os colegas da mesma função. É como se precisassem se proteger, pois outros vendedores podem prejudica-los, de modo geral. Assim, tendem a trabalhar em uma relativa “solidão”.

Logo, a “solidão” em que trabalham, muitas vezes, num distanciamento com relação aos outros vendedores, pode a diminuir as possibilidades de partilha entre esse grupo, troca de experiências e suporte. Essa tendência ao isolamento, alimentada por um sentimento de rivalidade, hostilidade, ou até autodefesa, assim, pode interferir negativamente no desenvolvimento do coletivo de trabalho e gênero profissional, impedindo seu fortalecimento e renovação.

Ainda que vivenciem esses possíveis impedimentos na dimensão interpessoal de sua atividade e que repercutem no gênero profissional, os participantes revelaram falas durante as entrevistas sobre o mesmo, supondo a existência dele e sua função de orientação com relação ao seu ofício. As falas que se referem a esse gênero profissional dizem sobre a atividade de trabalho, sem obrigatoriamente se direcionarem a uma prescrição formal e geralmente não encontram um autor evidente para a fala. Desse modo, é mais frequente que se diga “a gente sabe”, “a gente faz”, orientando que provém de algo criado ao longo do tempo a partir dos próprios trabalhadores, os quais foram desenvolvendo suas atividades e construindo uma cultura do ofício de vendas, o que tem uma existência simbólica, mas com desdobramentos concretos para o desenrolar da atividade em seu codidiano. A seguir, temos algumas delas:

A gente sabe que vendas não é só vender, tem que a questão do atendimento. (, transcrição de entrevista de P2, p.1).

(...) porque peça de carro é assim, tipo: você diz o nome científico e o mecânico diz o nome de fantasia. „Asa de urubu‟... então eu ia colocando tudo! E, no começo, foi bem difícil. Mas pelo prazer que eu tinha em lidar com as pessoas, aí eu vi, conhecia muita gente, conversava, conseguia cliente... ( entrevista transcrita de P3, p. 2). Porque tem coisas que a gente não pode, mas tudo tem um jeitinho, entendeu? Nada não pode. Tudo tem um jeitinho, se você... toda regra tem sua exceção. (, transcrição de entrevista concedida por P4, p. 6).

A gente... nós somos vendedores, mas eu não digo que eu sou vendedora, sou consultora de vendas. (...) A gente chama de prospectar, seja onde eu moro, entregar cartãozinho, „oi, eu vendo tal produto, se precisar me procura‟(, transcrição de entrevista de P8, p. 6).

As falas dos participantes acima expostas revelam a presença de um gênero profissional que os orienta sobre como a atividade precisa ser realizada (Clot, 1999, 2006, 2010), de acordo com esse código interno, construído entre vendedores ao longo de sua existência em seus contextos de atuação laboral. É como se essa voz ecoasse, perpassando pelas prescrições e informando a eles o que de forma natural, precisam saber a respeito de seu ofício para serem vendedores de autopeças. Para vender peças de carros, a participante P3, por exemplo, precisou aprender os “nomes de fantasia” de cada uma delas, ou seja, as nomenclaturas criadas entre as pessoas que trabalham com essas peças. É como se a intimidade que há entre os produtos que vendem fosse expressa a partir dessa forma de nomeá-los, constituída ao longo do tempo pelo gênero da profissão, na própria atividade e contato constante com os materiais.

Da mesma forma, os participantes P1 e P8, orientando e discorrendo sobre como a atividade precisa ser feita, se remetem a essa mesma voz, quando dizem, por exemplo, que “a gente sabe” que vendas não é somente comercializar um produto e entrega-lo ao cliente, mas requer atender bem ao mesmo, isto é, vender é atender com qualidade. Essa mesma expressão também surgiu na fala da participante P8, que reforça a ideia da existência da dimensão transpessoal em sua atividade, afirmando “a gente” como esse gênero profissional de vendedores, que reconhece que são consultores de vendas, valorizando o atendimento ao cliente como caraterística crucial ao desenvolvimento de sua atividade. A mesma participante fala, ainda, sobre a importância de prospectar, oferecer às pessoas seu produto, abordá-las constantemente como algo que “a gente” sabe que precisa fazer para vender.

Outra fala que chamou a atenção e que reflete a existência de um gênero profissional, para além das prescrições da empresa, foi a expressa pelo participante P4, que afirmou que sempre tem um “jeitinho” para realizar a venda, mesmo sabendo das normas impostas pela organização. Esse “jeitinho” é o que foge à regra, segundo ele, é o que parte de sua forma de

dar conta das dificuldades que possam surgir ao longo do caminho, dos impedimentos, por exemplo. É o que faz decidir por si mesmo para não perder uma venda, mesmo sabendo que, para isso, precisa fazer algo diferente do que é autorizado pela sua gestão. Assim, o gênero profissional surge também para sustentar decisões (Lima, 2007) que o vendedor precisa tomar, que vão além do limite imposto. Esse profissional consulta o gênero – considerando suas experiências anteriores, seu conhecimento sobre a história da profissão, a cultura, as atitudes comuns e possíveis desse ofício – o que permite a ele criar sua própria forma de conduzir as situações que surgem em seu dia-a-dia. Esse é um exemplo interessante para nos permitir compreender que nem todas as prescrições que existem são suficientes para dar conta da atividade em sua complexidade ou estão em concordância com o gênero profissional, e nem toda regra de gênero pode estar em consonância com a atividade prescrita.