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A partir do objetivo que foi proposto na presente pesquisa – compreender a atividade dos vendedores e autopeças, investigando sua relação com a mesma e com o gênero profissional – é possível afirmar que a trajetória empreendida nesse estudo permitiu uma aproximação ao contexto na atividade, a área comercial. Em adição a isso, foi possibilitada a utilização de uma abordagem qualitativa, baseada em operadores teóricos da Clínica da Atividade, que intensificou o processo de análise da atividade do vendedor, tornando possível sua compreensão de maneira mais ampla, ao abordar todas as dimensões da atividade – pessoal, interpessoal, impessoal e transpessoal – como também o que poderia ter sido realizado e não foi durante a execução da mesma, para além do que efetivamente foi feito numa situação de trabalho.

Essa pesquisa pôde contemplar, ainda que de forma inicial, o estudo sobre um trabalhador que representa simbolicamente a expressão máxima da relação capitalista, encontrando-se na linha de frente, ao relacionar-se com o cliente, o qual irá adquirir o produto que está sendo comercializado. Além disso, como visto, é um ofício que está presente fortemente em nossa sociedade, sendo representado pelo setor terciário da economia, e que sente diretamente as oscilações provenientes do mercado, provocadas pelas alterações político-econômicas da sociedade em que nos inserimos.

Por isso, foi extremamente relevante compreender a atividade desse profissional, pois é sabido o quanto ele tem sofrido os impactos dessas mudanças, especialmente nos últimos anos, a partir da crise político-econômica que se instalou em meados de 2015 no Brasil (Revista Veja, 2015). Foi importante compreender como esse cenário político econômico

influenciou as relações de trabalho em nossa sociedade, notadamente na área de vendas e no segmento automotivo, escolhido para a realização dessa pesquisa, por representar um dos setores mais afetados negativamente a partir da crise mencionada.

Esse cenário social de constantes mudanças, provocadas por essas flutuações advindas do cenário político-econômico sobre o qual discorremos gera repercussões na vida laboral do vendedor, que é exigido para se adaptar ainda mais à realidade que surge, exercitando sua capacidade de ajustamento às prescrições da empresa – dimensão impessoal da atividade – para sobreviver. Esse profissional precisa trabalhar mais, encontrar estratégias diferentes para conseguir atrair os clientes, uma vez que o fluxo deles tende a diminuir em períodos de crise, sendo ainda mais pressionado pelas organizações em que atuam para que obtenham os resultados, as metas estipuladas para cada um deles mês a mês.

A pesquisa foi realizada em parceria com o Sindicato da Categoria e possibilitou o acesso a vendedores automotivos de três diferentes organizações. Na primeira etapa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas de cunho sócio profissional, em que foram investigados aspectos da história de vida, trajetória profissional, atividade de trabalho, a percepção de trabalho bem-feito para os próprios vendedores e a forma como lidam com as contradições e impedimentos dessa atividade. Essa etapa da pesquisa possibilitou o acesso a informações importantes, o que permitiu conhecer os participantes um a um, compreendendo sua história de vida pessoal e profissional até o momento presente, em que puderam apresentar a atividade e como se relacionam, de forma mais abrangente, com ela.

No segundo momento, foi desenvolvida a aplicação da Técnica da Instrução ao Sósia, que permitiu um aprofundamento no tocante às dimensões da atividade, promovendo acesso mais intenso às prescrições da atividade, à atividade realizada, à forma como cada participante se relaciona com as contradições e impedimentos, bem como suas relações interpessoais e com o gênero profissional. A partir disso, os participantes puderam iniciar um processo de

ampliação de sua autopercepção acerca da atividade da venda e de seus sentidos a partir de sua própria perspectiva.

O processo de ampliação dessa autopercepção dos vendedores com relação à sua atividade e à forma como se relacionam com ela foi intensificado com um terceiro momento da pesquisa, que sugeriu a cada participante a captura de imagens de seu contexto laboral que representassem momentos cruciais de sua atividade, para si mesmos. A observação dessas imagens, associada à escuta da gravação da Técnica da Instrução ao Sósia possibilitou aos participantes um processo interessante de coanálise, em que puderam, a partir de suas próprias perspectivas e com o suporte da pesquisadora, se perceber com relação à atividade realizada, às prescrições, e ao real da atividade, expressando afetos com relação a ela e demonstrando como se sentem com relação a essas situações, em seu trabalho. A partir da percepção desses afetos, que também foram externados com relação às contradições e impedimentos presentes na atividade desses vendedores, foi possível perceber o quanto puderam refletir e se analisar em cada um desses momentos que a pesquisa promoveu.

De modo geral, é possível afirmar que os participantes dessa pesquisa buscam o constante ajustamento com relação às prescrições da atividade, pois reconhecem o quanto é importante para eles atingir a esses resultados. Percebem que têm se desdobrado ainda mais, tendo em vista que o mercado automotivo está em constante transformação, acompanhando os avanços tecnológicos presentes na área, o que leva-os a ter que estar atentos, atualizando-se constantemente com relação ao produto que vendem e buscando inovar em suas estratégias de relacionamento com o cliente. Dessa forma, reconhecem que atingir às prescrições é requisito máximo para se manterem em seus empregos, evidenciando as estratégias de acompanhamento e monitoramento como ferramentas de controle da organização para com seus resultados.

Tais estratégias de controle e monitoramento, associadas à busca frenética e incessante pelas prescrições podem provocar tensão, ansiedade e sofrimento nesses profissionais, que tendem a se sentir ameaçados constantemente pela organização, caso não atinjam aos resultados, pois percebem que são avaliados por ela como se representassem números. Essa questão, se somada também à avaliação dos clientes com relação ao atendimento prestado pelos vendedores, o que ocorre comumente na área comercial, pode colocá-los num lugar de opressão, em que só consigam se perceber enquanto operários, que precisam atender, a todo custo, a essas exigências. Esse sentimento de opressão foi colocado pelos participantes, que reconhecem o quanto são exigidos a corresponder a todas essas expectativas desses outros – a organização e os clientes.

No entanto, o contato com a Técnica da Instrução ao Sósia e coanálise, também desenvolvida a partir da captura das imagens que os participantes fizeram de seus contextos de trabalho permitiu a eles uma elaboração (retirei o clínica) que promoveu o surgimento da voz deles mesmos, quando puderam refletir acerca de suas próprias atividades de trabalho, a partir de situações do dia-a-dia que vivenciam comumente e ainda não tinham atentado para as possibilidades que poderiam surgir a partir de suas perspectivas.

Assim, foi possível adentrar na atividade de trabalho do vendedor para além das prescrições da organização e comportamento observável. A presente pesquisa promoveu a ampliação desse foco, nos permitindo ir além do sujeito-trabalhador que sofre ameaças psicossociais e buscando alcançar como direcionamento principal o poder de agir do vendedor em seu contexto de trabalho. Seria a ampliação do poder de agir o espaço em que o trabalhador se permitiria recriar, adaptar a seu modo de fazer, otimizar, produzindo algo de novo, estilizando sua atividade na direção de produzir melhorias nela. Através dessa ampliação de possibilidades de ação, o vendedor também contribuiria com a renovação do seu

gênero profissional, uma vez que possibilitaria sua revitalização a partir do desenvolvimento e expansão do potencial criativo dele mesmo.

Entretanto, um dos grandes desafios ao se buscar promover o poder de agir nesses trabalhadores a partir da coanálise empreendida foi perceber a força do discurso da atividade prescrita nesses trabalhadores, o que tende a dominá-los e dificulta o desenvolvimento do pensamento sobre sua própria atividade, distanciando-os de seus próprios referenciais sobre o que é um trabalho bem-feito, por exemplo, ou de sua autossatisfação com relação ao seu trabalho. É como se esses trabalhadores não encontrassem um lugar em que pudessem falar sobre o trabalho, opinar, discutir, refletir. Há, ainda, o receio de falar como um sentimento presente em quase todos os participantes, pois se corre o risco de serem desligados ou punidos de alguma outra forma, caso suas falas possam ir de encontro ao que a organização promove. Essa situação pode contribuir para a precarização da atividade de trabalho, fragilizando o gênero profissional do vendedor a partir do cenário exposto.

Em adição a isso, a competitividade entre vendedores, percebida na fala de todos os participantes, pode provocar um sentimento de hostilidade entre eles, gerando um distanciamento entre si, por falta de confiança e parceria. Tal sentimento tende a isolá-los, o que também pode enfraquecer o gênero profissional do ofício, impedindo sua renovação e colocando-o num lugar de atrofiamento, em que sua potência de ação torna-se diminuída frente ao contexto de trabalho apresentado.

Assim, se o gênero profissional representaria para esses vendedores um suporte na orientação e proteção de suas práticas, como vimos em apresentação teórica, o possível enfraquecimento dele frente às questões apresentadas pode deixar esses trabalhadores num lugar de fragilidade e vulnerabilidade, ainda mais expostos à precarização provocada pelas condições de trabalho prescritas, o que pode levar à amputação da história do coletivo e à perda da função psicológica de libertação e de proteção do gênero profissional (Clot, 2006).

Ainda que esses entraves tenham sido evidenciados nas falas dos participantes e possam contribuir com o enfraquecimento do gênero profissional, foi possível perceber que esses vendedores, embora vivenciem um cotidiano permeado por contradições, impedimentos e prescrições rígidas, que podem dificultar o exercício de sua criatividade e desenvolvimento do poder de agir em suas práticas, se sentem afetados positivamente com relação à sua atividade de trabalho. Eles, de modo geral, ainda encontram prazer em sua atividade, apesar das oscilações e questões apresentadas. Por isso, sugerimos que ações voltadas à análise da atividade, ou mesmo que espaços de escuta a esses trabalhadores possam ser criados, nesse contexto, ainda que isso pareça difícil, considerando as características do segmento em que atuam.

Nesse sentido, seria interessante que os psicólogos organizacionais que trabalham nesses contextos pudessem conhecer a Clínica da Atividade e ampliar seu repertório de atuação frente a esses profissionais vendedores, promovendo ações voltadas à saúde do trabalhador que pudessem ser orientadas a partir da análise do trabalho, o que poderia promover a revitalização do mesmo e a geração de saúde a partir de uma perspectiva diferente da praticada atualmente, que é baseada comumente na Psicologia do Trabalho Tradicional. Para isso, seria necessário que esses psicólogos pudessem funcionar como verdadeiros mediadores entre empresas e colaboradores, promovendo diálogos e facilitando o desenvolvimento das pessoas a partir da perspectiva da atividade.

Por fim, de acordo com a Clínica da Atividade, a qual considera que é preciso cuidar do trabalho, para além do cuidado com a subjetividade do indivíduo-trabalhador, é através da fala sobre o trabalho que esses vendedores poderiam encontrar a ampliação de sua potência de agir, frente à ela ou à sua própria vida, de forma mais ampla, recriando possibilidades para si, protagonizando transformações e promovendo a revitalização de si mesmos através da atividade.

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