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3. Pressupostos Teóricos da Clínica da Atividade

3.1 As Dimensões da Atividade e o Gênero Profissional

Para compreender melhor esse funcionamento e desenvolvimento da atividade, é importante considerá-la em suas dimensões e interconexões, quais sejam: pessoal, interpessoal, transpessoal e impessoal. De acordo com Clot (2004), a dimensão pessoal da

atividade se refere à singularidade do indivíduo, à maneira como age sozinho quando em atividade, em sua subjetividade; a interpessoal diz respeito à direção em que o sujeito se orienta, ao produzir um trabalho, a um destinatário; a transpessoal, traz a atividade como parte da história de um coletivo, ou seja, ela transcende o indivíduo por estar inserido em circunstâncias sociais e culturais que o definem; e, por último, há a dimensão impessoal da atividade, que denota as regras para o cumprimento da mesma e a importância das prescrições, em meio às outras instâncias existentes.

É importante mencionar que todas essas dimensões conversam entre si constantemente, a todo o tempo. Isso significa que, muitas vezes, uma atividade prescrita, embora esteja previamente e até estritamente definida, pode ser influenciada pelo próprio indivíduo, que se apropria da mesma, estilizando-a, colocando algo de si mesmo em sua produção. Essas transformações da atividade prescrita podem ir da (re)criação do individual ao coletivo, constituindo aí o gênero profissional.

Como descrito por Clot (2006, p. 50):

O gênero profissional é um (...) sistema aberto de regras impessoais, não escritas, que definem num meio dado, o uso dos objetos e o intercâmbio entre as pessoas; uma forma de rascunho social que esboça as relações dos homens entre si para agir sobre o mundo.

Para o autor, essas regras implícitas ou explícitas são criadas pelos próprios trabalhadores e tem a função de regular as relações entre esse profissionais do mesmo ofício, orientando a ação dos mesmos, instituindo o pertencimento ao grupo e constituindo as atividades dignas de reconhecimento ou não-recomendadas em um contexto de trabalho, dirigidas aos objetivos definidos. É como se esse sistema tivesse a função de mediar as relações entre o sujeito e o objeto, entre o sujeito e sua própria subjetividade, bem como entre ele e os demais sujeitos, representando normas internas que dizem a maneira certa de se trabalhar, bem como a errada. Como não há uma cartilha, um manual onde estejam

registrados esses procedimentos, o profissional precisa estar inserido num contexto laboral específico de seu ofício para que possa receber esses “ensinamentos”.

Clot (2006) se refere ao gênero profissional como aquele que possui uma senha, conhecida apenas por aqueles do qual fazem parte. É como se essa senha permitisse aos integrantes do gênero o acesso e apropriação do trabalho, o conhecimento sobre como se deve agir, para não se cometer erros. O gênero fortifica e une os indivíduos do qual fazem parte. Ele facilita a integração de dois profissionais que nunca se viram antes, ao terem que iniciar um trabalho, pois permite a ambos saber qual é o trabalho e como precisa ser feito.

Porém, esses dois profissionais fictícios, embora conheçam as normas do gênero, podem ter feito alguma modificação em sua forma de trabalhar, tendo recriado a produção do trabalho a partir de alguma necessidade que sentiram. De repente, na prática, perceberam que existia uma maneira diferente, mais rápida, eficiente, que chegasse à eficácia com uma maior qualidade no produto final, por exemplo. Assim, eles modificaram a forma usual de se trabalhar conhecida e praticada pelo gênero profissional. Eles (re)criaram, estilizaram, colocaram sua subjetividade em ação. É essa estilização do indivíduo que dinamiza o gênero, promovendo inovações, conferindo movimento e trazendo vivacidade ao conceito, o que também é bastante característico. Portanto, estilo é o percurso que existe entre a sua própria ação de criação e o coletivo do qual faz parte.

Assim sendo, podemos dizer que gênero ativo saudável é aquele que permite a criação e renovação do conhecimento. Por isso, é indiscutível que gênero e estilo são indissociáveis Clot (2014). Uma representação significativa do funcionamento dessa ideia são os coletivos de trabalho. O coletivo de trabalho se refere à dimensão transpessoal de abordagem da atividade de trabalho, abrangendo fenômenos que encontram seu sentido e sua dinâmica em grupos com afinidade perceptível por inserção organizacional, e que demonstram profunda ligação com o gênero profissional. Assim, o coletivo de trabalho é movido pela afetação

emocional. É essa afetação que influencia na autoestima e fortalece as bases do gênero profissional, conforme Spinoza (2003), quando define afeto, compreendendo-o como “as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou reduzida, assim como as ideias dessas afecções”. Logo, é o afeto que une os coletivos de trabalho e os transforma em gêneros profissionais significativos na vida daqueles que fazem parte desse grupo.

Em adição a isso, a estilização sobre a qual discorremos, na medida em que permite ao gênero a renovação, a mobilidade, o enriquecimento de poder se mover em direção às múltiplas possibilidades criadas e recriadas pelos profissionais que o constituem, evita o fazer mecânico, o trabalho copiado e repetido. Esse pode colocar em risco a saúde psicossocial do trabalhador, visto que impossibilita as criações do mesmo, aprisionando-o nas prescrições da atividade e impedindo sua revitalização.

Dessa maneira, quando não é permitida ao gênero profissional a inovação, a estilização, essa renovação através da criação subjetiva dos indivíduos integrantes do mesmo, há a possiblidade do seu enfraquecimento. Clot (2006, p. 128) enfatiza que “no trabalho coletivo, o coletivo de trabalho mobiliza instrumentos genéricos. Quando isso não ocorre, os riscos de desregulação da atividade individual aumentam, com consequências tanto para a segurança do trabalho quanto para a saúde dos trabalhadores”. Sobre essa questão especificamente, há um estudo interessante, que demonstra o quanto decisões gerenciais como desligamentos em massa e contratação de diversas prestadoras de serviço a uma só empresa, por exemplo, que funcionam como aspectos que influenciam diretamente no enfraquecimento da cultura organizacional e têm impacto direto na formação ou desintegração dos coletivos podem contribuir para o aumento do número de acidentes de trabalho. Isso porque, como caracteriza Lima (2007, p. 101), “se o gênero degenera, o desenvolvimento da atividade fica

bloqueado, configurando uma situação de risco, pois a atividade passa a ser, sobretudo, uma fonte de sofrimento”.

Assim, sendo impossibilitado de articular o conhecimento e a prática através da criação e do diálogo, o gênero se enfraquece, necrosa, adoece. Nesse cenário, o sujeito pode entrar num processo de isolamento, individualização, sofrimento, já que o enfraquecimento do coletivo de trabalho leva ao empobrecimento do gênero profissional e, consequentemente, as possibilidades de desenvolvimento individual são gravemente perturbadas ou até mesmo inviabilizadas.

Voltemos ao contexto da atividade do vendedor, para refletir sobre algumas questões importantes nesse estudo. Como vimos, esse profissional possui o desafio de atingir prescrições impostas pela organização denominadas de metas. São números, é a quantidade que precisam vender para garantir a rentabilidade à empresa e a sua própria remuneração. No entanto, devido às dificuldades já mencionadas anteriormente – pressão por resultados, medo do desemprego, diminuição do fluxo de clientes nas lojas decorrente do cenário econômico atual, só para citar alguns exemplos – o vendedor termina sendo estimulado por um forte sentimento de competitividade.

Isso porque o seu próprio colega de trabalho é o seu principal concorrente no ranking, sendo acompanhado e cobrado por seu gestor semanalmente, muitas vezes. Além disso, podem haver premiações diferenciadas para os melhores vendedores, por exemplo, o que impulsiona cada um, individualmente, a buscar seus objetivos com todas as forças. E ainda há outra possibilidade: quem será o próximo a ser escolhido para desligamento da organização? Embora essa realidade seja bastante cruel, são os números que, muito provavelmente, dirão isso.

Assim, é perceptível que o ambiente do comércio, por si só, pode trazer a individualização do trabalho, o que promoveria a competição como uma ferramenta

estratégica na busca por melhores resultados. A fim de alavancá-los, os gestores criam comumente métodos agressivos, estimulando uma disputa interna por clientes e visibilidade por parte dos vendedores, que terminam por se digladiar, famintos, em busca dos seus números.

Há um cenário semelhante a esse no contexto esportivo, a exemplo de um estudo realizado com atletas de vôlei de praia, que analisa a formação e funcionamento dos coletivos de trabalho nesse gênero profissional. É interessante que, embora seja impossível ignorar a relação de competitividade como uma das características centrais do vôlei de praia, tal como das práticas esportivas de alto rendimento, parece que há formas de compartilhamento de saberes e valores entre esses atletas, mesmo que eles venham a se tornar adversários futuramente (Borba & Muniz, 2017). É contraditório e curioso imaginar como isso pode funcionar, na prática, mas parece que há limites e orientações para a operação dessas questões.

Há também o denominado paradoxo da corporatividade (Zamboni & Barros de Barros, 2016), que se relaciona com essa questão do funcionamento saudável e eficaz dos coletivos de trabalho entre motoristas de ônibus, uma vez que se fala na necessidade do desenvolvimento e construção de uma relação anterior de amizade, coleguismo, para que se possa construir essa troca e apoio mútuo entre pares versus o hábito da delação – denúncias – associado à falta de confiança entre os próprios parceiros de trabalho dessa categoria profissional. Segundo esses autores:

Esse tensionamento paradoxal das políticas de coletividade do trabalho configura uma situação pela qual se constitui a atividade do trabalhador, um problema presente em seu fazer cotidiano e que lança as controvérsias profissionais às posturas éticas do trabalho, sempre ameaçado de resvalar em impasse como jogo de denúncia e silenciamento. (2016, p. 336).

Ainda sobre esse paradoxo e, conforme Clot em entrevista publicada por Clot, Soares, Coutinho, Nardi e Sato (2006):

há uma verdadeira contradição na gestão profissional, na indústria e nos serviços, sobretudo na área de serviços. Certamente, a gestão tende a individualizar as questões e os sociólogos têm insistido muito nisso, mas o real do trabalho impõe, cada vez mais, um trabalho coletivo; para fazerem face ao real, os trabalhadores têm que fazê-lo juntos. No mundo do trabalho atual há uma gestão individualizante, mas há uma necessidade muito, muito forte do coletivo (p. 103).

Desse modo, o autor afirma que, embora haja essa real tendência à individualização do trabalho por parte de muitas organizações e segmentos específicos, a exemplo da área de serviços, o real do trabalho e todos os dilemas existentes nele precisam do coletivo de trabalho para que o gênero profissional possa se sustentar.

Em adição a isso, Dejours (2011) afirma que “as investigações em psicodinâmica do trabalho dos últimos dez anos demonstram que a introdução e rápida generalização dos novos métodos de avaliação individual do desempenho levada a cabo pelas ciências da gestão tem um papel de primeiro plano na destruição das possibilidades de trabalho colectivo, de cooperação e de solidariedade”. Sendo assim, estes métodos de organização do trabalho estão implicados nos processos de servidão voluntária e de deterioração da saúde mental no trabalho. Então, ao invés da criação dos espaços de ajuda, diálogo, reflexão e compreensão, promovidos a partir da existência dos coletivos de trabalho, por exemplo, podem haver lugares vazios, preenchidos de solidão e medo. Nesses, há terreno propício aos abusos de poder, aos assédios morais, injustiças, ameaças e hostilidades.

Como assinala Clot (2014, p. 226), “são essas possibilidades não realizadas que estão na fonte do desenvolvimento possível da atividade”. Ou seja, a fonte do desenvolvimento está no que o sujeito não fez e que continua a poder fazer. Isso o torna agente da mudança, protagonista e analista de sua ação e trabalho, o que se configura como o seu poder de agir, outro conceito de grande relevância para a Clínica da Atividade. Sobre ele, Bendassoli e

Soboll (2011, p. 63) discorrem, demonstrando o interesse pela ação no trabalho, na medida em que “busca-se criar condições psicossociais para que os sujeitos se apropriem de sua atividade, seja na forma de um retorno reflexivo sobre ela (pensar sobre), seja na forma de ações conjuntas elaboradas pelos coletivos de trabalho, as quais buscam enfrentar as questões ou dificuldades colocadas pelas atividades comuns”. Assim, o desenvolvimento do poder de agir está intimamente associado à capacidade que o sujeito tem de se reconhecer a partir gênero profissional do qual faz parte.

Desse modo, a partir do momento em que o trabalhador produz de maneira criativa em seu ambiente laboral, ultrapassando o limite imposto pelas prescrições da organização, desocupando o lugar do operador de tarefas para aquele que é capaz de elaborá-las de maneira inovadora, demonstrando-as em sua atividade, ele passa a atuar desenvolvendo o seu poder de agir. Porém, é relevante afirmar que as possibilidades de atuação nesse sentido ocorrem na medida em que o sujeito é capaz de afetar-se ou não pelo seu trabalho, conforme demonstra Clot (2010), quando expõe que o raio de ação do sujeito pode ser aumentado ou diminuído a partir do sentido que ele confere ao trabalho que realiza. Nesse sentido, a forma como o sujeito se afeta por sua atividade irá interferir diretamente no processo de esvaziamento ou não da mesma.

É interessante complementar que o conceito de poder de agir proposto pela Clínica da Atividade se relaciona também às ideias de Canguilhem (2009) sobre a diferenciação entre o normal e o patológico no mundo do trabalho. Dessa maneira, para o autor, o processo de adoecimento ocorre quando há uma diminuição dos meios que o organismo dispõe para o funcionamento normal, o que interfere na capacidade que ele possui para se adaptar às circunstâncias da vida. O desgaste foi tão profundo que o sujeito é pouco capaz de se afetar positivamente por sua atividade, e seu corpo sente isso, refletindo toda essa apatia.

Outra questão que representa um indicador de doença versus saúde no trabalho é o enfraquecimento dos coletivos, conceito já apresentado anteriormente, tendo em vista o processo de individualização no trabalho dos vendedores que foi ilustrado como possibilidade a ser encontrada na presente pesquisa. Assim, como vimos, quando acontece esse enfraquecimento, o sujeito perde a capacidade de se sentir acolhido e parte dos espaços de debate e reflexão acerca do que é um trabalho bem-feito. Sem a possibilidade de participar dessas discussões, o trabalhador se sente sozinho, num verdadeiro dilema sobre como realizar o seu trabalho. Dessa maneira, privado do reconhecimento do outro – o que seria possível caso existisse um coletivo de trabalho atuante – o sujeito pode se perceber desapropriado de seu poder de agir.

Assim, é no desenvolvimento, análise e restauração do poder de agir dos trabalhadores em ação que a Clínica da Atividade se direciona. Para isso, é imprescindível considerar a importância do funcionamento efetivo de um coletivo de trabalho, além do espaço de cada trabalhador, como indivíduo que é em sua singularidade e potencial de criação. É na harmonia entre a capacidade de estilizar do trabalhador e o papel do coletivo, reforçado pelo gênero profissional, que emerge, então, o poder de agir.

Nesse sentido, considerando o objetivo central dessa pesquisa, que visa compreender a atividade do vendedor de varejo, investigando sua relação com a mesma e com o seu gênero profissional, é que iremos adotar os operadores teóricos da Clínica da Atividade como perspectiva. Em adição a isso, buscaremos criar condições para o desenvolvimento desses trabalhadores, com o olhar, direção dessa perspectiva teórico-metodológica, que se afasta dos modelos tradicionais de pesquisa, os quais consideram o lançamento de hipóteses como ponto de partida para a construção das ideias e posterior testagem das mesmas. Mais adiante, então, serão apresentados esses pressupostos que sustentam e referenciam a presente pesquisa, assim como seu objetivo central.