• Nenhum resultado encontrado

2.6. A PROPORCIONALIDADE E A REVISÃO JUDICIAL DAS DECISÕES

2.6.1. O papel do juiz numa democracia substancial

2.6.1.2. A atividade judicial e a ponderação de princípios

Como ressalta Maria Helena Diniz234, apesar de destacar sua força normativa e imperatividade, a Constituição não deve ser vista apenas como um documento jurídico. Mais que isso, está ela ligada ao processo político de desenvolvimento das sociedades. As Constituições, suas reformas, revisões e mutações, refletem um processo histórico de evolução dos grupos humanos. Elas são o produto de lutas e conflitos sociais, são o resultado de “uma atitude reflexiva e crítica” de cada sociedade em cada momento histórico. Resumem, pois, os valores consolidados naquele tempo, bem como as aspirações e perspectivas para o futuro.

As Cartas Políticas são, portanto, documentos dialéticos, que exprimem diversos pontos de vista, diversos valores políticos, econômicos e sociais que devem, à vista do princípio da unidade da Constituição, ser sempre conciliados no caso concreto pelo hermeneuta. Esse processo de concretização também reflete uma postura analítica e dialética. Não se pode mais conceber a interpretação e aplicação do direito como um processo axiomático, simples, corriqueiro ou, muito menos, fruto da vontade soberana do magistrado. A noção de Hans Kelsen de um processo de aplicação incontrolável, por meio do qual o juiz escolhe uma das opções que lhe são dadas pelo texto235 se pretende superada pelo neoconstitucionalismo. Destarte, surgem e se desenvolvem técnicas de controle da atividade de concretização do direito, como a ponderação, própria de casos que exigem a harmonização de princípios e valores contrapostos – casos cada vez mais comuns no direito contemporâneo. Como bem sintetiza Suzana de Toledo Barros, a técnica da ponderação, há pouco estudada, pretendendo racionalizar a aplicação do direito e compatibilizá-la com a dialeticidade do sistema jurídico, consiste no estabelecimento da precedência de um princípio sobre o outro no caso concreto, diante de circunstâncias específicas. A racionalidade se verificaria na possibilidade de fundamentar essa relação de precedência de modo consistente, sobrelevando o papel da argumentação jurídica236.

234

DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989, p.14.

235

KELSEN, Hans. Op. Cit.. p. 248.

236

Consoante já se viu, Robert Alexy sistematiza de forma bastante didática esse procedimento. Para o autor, a colisão de princípios jurídicos pode ser solucionada pela ponderação, estabelecendo-se entre eles uma relação de precedência condicionada. É dizer, diante do caso concreto, o magistrado verificará quais circunstâncias favorecem a aplicação de um ou de outro princípio. Atribuindo pesos a cada uma das normas para aquele caso, o juiz decidirá que, naquelas circunstancias (condições específicas) dado princípio prepondera. Alteradas as condições em caso concreto distinto, a relação de precedência poderá se alterar, prevalecendo, para a nova situação, outro princípio237.

Esclarece ele que as condições estabelecidas para a precedência, ou seja, as características específicas do caso concreto são o suporte fático de uma regra, cujas consequências jurídicas serão determinadas para a consecução do princípio prevalente238. Assim, o resultado do procedimento de sopesamento corretamente realizado será sempre uma regra, uma norma de direito fundamental atribuída. Sua estrutura é de regra porque define claramente quais as condições de sua aplicação (suporte fático) e quais as consequências jurídicas de sua incidência (específicas da promoção do princípio prevalente). Seria uma norma de direito fundamental atribuída porque obtida mediante um procedimento de sopesamento de princípios enunciadores de direitos fundamentais e corretamente fundamentada nesse sentido239.

Nessa linha, como aponta Ana Paula de Barcellos, a reprodução das circunstâncias fáticas resultantes do sopesamento (suporte fático da regra) autoriza a aplicação imediata pelo juiz, com referência ao procedimento já realizado240. Isso permite o estabelecimento de enunciados normativos gerais e abstratos, que se podem subsumir com a repetição do caso concreto. Verifica-se, assim, o estabelecimento de um catálogo de topoi, de que o hermeneuta se socorre quando verificado o preenchimento do suporte fático241.

Diante disso, sustenta-se que são os tribunais, mormente no exercício da jurisdição constitucional, que definem o alcance, o conteúdo e a vinculação dos direitos fundamentais. A interpretação ‘correta’, o verdadeiro sentido da norma constitucional é revelado pelo Judiciário, no exercício hermenêutico, no caso concreto242. Por correto não se entende a única

237

ALEXY, Robert. Op. Cit.. p. 96.

238

Id. Ibid.. p. 121.

239

Id. Ibid.. p. 102.

240

BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit.. p. 61.

241

Id. Ibid.. p. 66.

242

decisão possível, ou a única resposta correta. Correta é a decisão que pode ser racionalmente fundamentada com referência aos direitos fundamentais, que foi produzida mediante um procedimento válido de concretização normativa e que reflete de algum modo os valores positivados no direito e especialmente no texto constitucional.

Por meio da ponderação, o juiz define o alcance da norma, concretizando aquilo que o legislador abstratamente inseriu no texto da lei. Por isso que se diz, na linha de Paulo Bonavides, haver a nova hermenêutica, ainda que preservando o princípio da separação dos poderes, construído um paradigma de “ascendência do juiz sobre o legislador”243. Não se abala o princípio da separação dos poderes exatamente porque há limites à atividade criativa do magistrado, não se imaginando uma concentração absoluta do poder político em suas mãos.

Importa, pois, concluir, com Suzana de Toledo Barros, que a imposição de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais não exclui a atividade do legislador. Ao legislador é confiada a função precípua de, legitimado pela vontade da maioria, concretizar os princípios jurídicos e efetivar os direitos fundamentais, preservando-os sempre. Não lhe cabe, é verdade, extrapolar os limites impostos pelo Constituinte, indo além da restrição permitida ou ficando aquém da efetivação exigida. Mas dentro da moldura que lhe foi desenhada na Constituição, deve-se respeitar a vontade popular da maioria, preservando a discricionariedade e a liberdade de conformação do legislador244.

Assim é que, já se viu, estão os governantes, administrador e legislador, vinculados à Constituição. Mas também a ela se vincula o magistrado, que deve se limitar a corrigir os desvios do poder público ali onde lhe foi deferida diretamente a competência para agir245. Os direitos fundamentais vinculam os poderes da República num sentido material e formal, o que impõe o respeito ao princípio democrático e do Estado de Direito246.

Não se está, com isso, defendendo um procedimentalismo exacerbado, como sustenta John Hart Ely, que se limita a controlar a correção e a democracia do processo de produção normativa, negando ao Judiciário a revisão das decisões substantivas nela expressas. Mesmo porque, como bem refere Ronald Dworkin247, tal seria muito mais fácil caso a qualidade

243

BONAVIDES, Paulo. Curso... Op. Cit.. p. 363.

244

BARROS, Suzana de Toledo. Op. Cit.. p. 155.

245

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle... Op. Cit.. p. 31.

246

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia... Op. Cit.. p. 361.

247

democrática do processo fosse facilmente determinada e extreme de discordâncias. Em virtude disso, a regra da revisão é importante num Estado Democrático de Direito, já que o sistema de freios e contrapesos que o preconiza é o modelo concebido para a contenção do arbítrio e a revisão dos abusos no exercício do poder248.

Como assevera Lênio Luiz Streck, na linha substancialista, da jurisdição constitucional se exige uma postura ativa, intervencionista, que garanta a observância do procedimento e a fidelidade aos princípios constitucionais. Essa função intervencionista, entretanto, não implica uma exacerbada “judicialização da política e das relações sociais”. Ao revés, exige-se apenas – e nada mais que – o fiel cumprimento das disposições constitucionais, mormente das determinações relativas à concretização de direitos fundamentais249.

Justamente para garantir a fidelidade à Constituição, aponta Maria Helena Diniz250, o sistema de freios e contrapesos impõe a limitação de um poder pelo outro, sem que, com isso, se prejudique o equilíbrio no seu exercício. Não se pode falar em competências incontroláveis, sejam elas titularizadas pelo Executivo, pelo Legislativo ou pelo Judiciário.

Nesse contexto de limitação do poder, desponta assim o postulado da proporcionalidade como baliza de interpretação e aplicação das normas jurídicas e controle dos atos estatais. Esse controle, contudo, conforme evolução do pensamento jurídico, não se restringe à proibição do excesso – no sentido de tutelar o indivíduo contra os excessos do Estado. A proporcionalidade, nessa linha, tem sido compreendida também numa outra face, a saber, como proibição de proteção deficiente de direitos fundamentais. É o que será estudado de modo mais pormenorizado no próximo capítulo.

248

APPIO, Eduardo. Op. Cit.. p. 251.

249

STRECK, Lênio. Jurisdição... Op. Cit.. p. 185.

250