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4. O CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE: ANÁLISE DA LEI Nº 898/65

4.4. A RESPONSABILIDADE PENAL

4.4.7. Necessidade de adequação da Lei nº 4.898/65: solução de lege ferenda

Como já se viu neste trabalho, o aspecto mais controvertido do estudo do postulado da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente, especialmente no campo do direito penal, é a questão da utilização dessa teoria no controle jurisdicional das omissões do poder público. Especialmente, questiona-se como controlar a atividade legislativa, uma vez que, tratando-se de matéria penal, é imprescindível que a ampliação da tutela se dê por meio de lei em sentido formal e material.

Nessa linha, verificou-se que, a princípio, somente se mostra viável o controle efetivo de constitucionalidade da omissão estatal quando esta se der por alteração legislativa que reduza desproporcional e injustificadamente a tutela dispensada a um bem jurídico constitucional que, por fundamental, tenha dignidade penal. Quer-se dizer com isso que somente se mostra viável a intervenção efetiva da jurisdição quando novel legislação materializar a violação à proibição de proteção deficiente. Ou seja, naqueles casos em que se edite norma retirando a proteção estatal, é possível a intervenção judicial para, declarando a inconstitucionalidade da norma revogadora, repristinar a norma revogada, restabelecendo a tutela efetiva – ou, pelo menos, mais efetiva – antes dispensada ao bem jurídico.

No caso presente, os tipos penais do art. 3º da Lei de Abuso de Autoridade não encontram correspondente no Código Penal ou em legislação específica que lhe tenha precedido. De modo diverso, contudo, há equivalência entre os tipos do art. 4º da Lei nº 4.898/65 e aqueles previstos no art. 350 do Código Penal. Referida correspondência é textual em certos casos e, no caso específico do Parágrafo Único, inciso IV da norma codificada, trata-se de norma geral que abarca a prática, “com abuso de poder, de qualquer diligência”.

Nessa senda, em julgamento de Recurso Ordinário em Habeas Corpus RHC nº 96.689/SP608, de Relatoria do Ministro Eros Roberto Grau, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu que, à exceção da norma geral do parágrafo único, inciso IV, o art. 350 do Código Penal teria sido revogado pela Lei de Abuso de Autoridade.

Tratar-se-ia, no caso, de novel legislação que reduziu a proteção dada pelo Código Penal às liberdades fundamentais, de modo que se poderia encaixar a situação na hipótese em que se afigura admissível o controle de constitucionalidade. Ocorre, todavia, que se trata legislação pré-constitucional, de modo que não é cabível o controle de constitucionalidade da revogação

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Voto do Ministro Relator. Recurso Ordinário em

tendo como parâmetro a Constituição de 1988. Isso porque se estaria declarando a invalidade da revogação de norma realizada em 1965. É dizer, acaso se realizasse a exclusão da norma do ordenamento jurídico constitucional inaugurado em 1988, não se poderia repristinar o dispositivo revogado do Código Penal.

Deve-se recordar, nesse contexto, a decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI nº 02609, que inaugurou firme e consolidada jurisprudência da Corte Suprema acerca do controle de constitucionalidade de direito pré-constitucional – que, inclusive, estabeleceu impossibilidade de ajuizamento de ADI tendo como objeto direito pré-constitucional. Naquela assentada, fixou-se o entendimento de que o vício de inconstitucionalidade seria congênito à norma, não se podendo falar em inconstitucionalidade superveniente, senão de simples revogação por norma posterior e superior. Nesse passo, admitir a revogação da Lei nº 4.898/65 não teria o condão de repristinar as disposições do Código Penal, uma vez que o efeito repristinatório é consequência da aplicação da sanção de nulidade e não do reconhecimento da revogação pela não recepção do texto legal.

É dizer, não faz sentido sustentar a não recepção in totum da Lei nº 4.898/65 pelo ordenamento constitucional de 1988 – ou, ainda, a não recepção de alguns de seus tipos penais –, sob pena de se configurar absoluta omissão na própria tipificação das condutas. Desse modo, não sendo o caso de declarar a inconstitucionalidade e aplicar à Lei a sanção de nulidade, estar-se-á diante de hipótese de omissão inconstitucional, a ser suprida por meio de atividade legislativa ativa. No caso da desproporcionalidade por deficiência de proteção da Lei de Abuso de Autoridade, está-se diante de omissão legislativa em sentido estrito (por insuficiência da resposta penal às condutas tipificadas), de modo que a lacuna no ordenamento reclama uma solução de lege ferenda.

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EMENTA: CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO.

INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição;

inconstitucional na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da

inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir

efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. 2. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária. 3. Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do pedido. [grifos aditados] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 02. Relator Min. Paulo Brossard. DJ de 21 de novembro de 1997).

Isso não impede uma interpretação da Lei conforme a Constituição para afastar a incidência das normas da Lei de Abuso de Autoridade quando haja regulação mais adequada na norma geral. Isto é, tendo em vista a existência de tipos penais gerais, que podem ser aplicados a determinadas condutas também subsumíveis aos tipos da Lei de Abuso de Autoridade, pode- se sustentar o afastamento da incidência da norma especial, aplicando-se a regulação codificada. É o caso, por exemplo, dos art. 322610 e 350, parágrafo único, IV611 do Código Penal, que, segundo orientação do Supremo Tribunal Federal, não foram revogados pela Lei nº 4.898/65.

Trata-se de normas gerais, que punem a prática de violência no exercício de função pública

ou a seu pretexto e a execução de diligências com abuso de poder. Destaque-se que não há

subsidiariedade entre as normas. Isso porque a subsidiariedade pressupõe a existência de dois ou mais tipos penais que protejam “o mesmo bem jurídico em diferentes fases, etapas ou graus de agressão”, pressupondo que a conduta posterior seja mais grave que a anterior612. Desse modo, o tipo principal será aplicável quando configurada a adequação com seus elementos e o tipo subsidiário será aplicável apenas quando não se configurar a tipicidade formal do delito mais grave613. Não é esse o caso em questão, uma vez que, diante do tratamento dado à matéria pelo legislador de 1965, não se podem considerar os crimes tipificados na Lei nº 4.898/65 como mais graves.

O caso especifico da Lei de Abuso de Autoridade configura na verdade uma relação de simples especialidade, em que “a norma especial afasta a incidência da norma geral”, uma vez que trata de modo mais específico a matéria614. Em virtude disso, sua aplicação usualmente prefere ao Código Penal615. Nesse passo, trata-se de norma especial que, para o caso concreto, derroga a norma geral616 – sem que, com isso, se observe a exclusão de qualquer delas do ordenamento. Cuida-se da aplicação de um critério ordinário de solução de antinomias

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Art. 322 - Praticar violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la: Pena - detenção, de seis meses a três anos, além da pena correspondente à violência.

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Art. 350 - Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder:

Pena - detenção, de um mês a um ano.

Parágrafo único - Na mesma pena incorre o funcionário que: IV - efetua, com abuso de poder, qualquer diligência.

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TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 51.

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QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral... Op. Cit.. p. 66; PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal

brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2010. p. 233.

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TOLEDO, Francisco de Assis. Op. Cit.. p. 51.

615

QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral... Op. Cit.. p. 66.

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aparentes, em que se afasta a incidência de uma norma por meio da inserção de uma cláusula de exceção para o caso concreto.

Significa com isso dizer que não se trata, aqui (no caso dos art. 322 e 350, parágrafo único, IV), de revogação da norma geral operada em 1965. A solução de um conflito normativo se dá por meio de interpretação e concretização do direito; por meio da atividade do hermeneuta que, para o caso específico, deverá inserir uma cláusula de exceção, excluindo a incidência de uma das normas. Em virtude disso, pode-se sustentar – e é o que se faz nesse trabalho – que, diante da aplicabilidade de uma das normas gerais do Código Penal, o afastamento de sua incidência pela Lei de Abuso de Autoridade configura método inconstitucional de aplicação do direito, uma vez que desproporcional por violação à proibição de proteção deficiente. Sustenta-se, portanto, que, numa hipótese de conflito normativo aparente entre as normas da Lei de Abuso de Autoridade e os art. 322 ou 350, parágrafo único, IV do Código Penal, impõe-se a aplicação desses últimos – já que vigentes –, tendo em vista a proibição de proteção deficiente e o dever de proteção do bem jurídico imposto ao Estado.