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4. O CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE: ANÁLISE DA LEI Nº 898/65

4.4. A RESPONSABILIDADE PENAL

4.4.1. Tipos penais – Art 3º e 4º

4.4.1.1. Tipos previstos no artigo 3º da Lei nº 4.898/65 – atentados gerais às liberdades

4.4.1.1.7. Atentado à incolumidade física do indivíduo (art 3º, i)

Não há previsão específica na Constituição brasileira de garantia do direito à “incolumidade física” ou à “integridade física” do indivíduo – somente se garante expressamente a integridade física do preso, consoante dispõe o art. 5º, XLIX524. Isso não significa, obviamente, que a integridade física dos demais indivíduos não seja protegida. Ao revés, ela resulta do sistema de proteção aos direitos fundamentais. Resulta, inicialmente, do princípio do Estado de Direito, uma vez que a ausência de proteção à incolumidade física significaria verdadeiro estado de barbárie.

Ademais, a tutela da integridade do indivíduo deriva da dignidade da pessoa humana525, da proteção aos direitos humanos526, do direito à vida e à segurança527, da proibição à tortura e ao tratamento desumano ou degradante528, do direito à saúde529, entre outros direitos que lhe dão suporte. A integridade física, aliás, é pressuposto sem o qual poucos direitos poderão ser exercidos, de modo que tem fundamento na própria noção de existência humana e proteção do indivíduo.

Naturalmente, o direito à incolumidade física pode sofrer limitações legítimas quando sua restrição for necessária ao controle da ação do indivíduo, impedindo-o de violar direitos próprios ou alheios. É dizer, o uso proporcional da violência pode ser admitido legitimamente em determinadas situações, a exemplo das descriminantes excludentes de ilicitude530. Exige-

524

Art. 5º, XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

525

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

526

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II - prevalência dos direitos humanos;

527

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

528Art. 5º, III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; 529

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

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se, contudo, da autoridade que tenha sido obrigada ao uso da força para o exercício de suas funções, bem assim que a utilize moderadamente, é dizer, no limite da necessidade531.

Nesse passo, verifica-se que o uso da violência em medida desnecessária configura a hipótese de abuso de autoridade por atentado à incolumidade física do indivíduo, ainda que não se possa tipificar lesão corporal. Aliás, em casos de ocorrência de lesão corporal, caracteriza-se o concurso material dos delitos previstos no Código Penal e na Lei de Abuso de Autoridade. Apesar de haver dissenso doutrinário acerca da configuração do concurso formal ou material em virtude da prática, a um só tempo, da lesão corporal e do abuso de autoridade, tem-se considerado o crime previsto no art. 3º, i da Lei nº 4.898/65 hipótese autônoma, que protege bem jurídico independente, sendo o caso, pois, da aplicação da regra do cúmulo material de infrações532. Note-se que esse entendimento se consolidou no Supremo Tribunal Federal533 na década de 1980 e, hoje, predomina na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça534, ao

531

FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS Vladimir Passos de. Op. Cit.. p. 55.

532

Id. Ibid.. p. 56.

533

LESÕES CORPORAIS E ABUSO DE AUTORIDADE. SE O AGENTE, ALÉM DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE (ART-3.. LETRA "I", DA LEI 4898, DE 9.12.1965) TAMBÉM PRATICAR LESÕES CORPORAIS NA VÍTIMA, APLICAR-SE-A A REGRA DO CONCURSO MATERIAL. NÃO CONSTITUI CONSTRANGIMENTO ILEGAL A DESCONSIDERAÇÃO DE DECRETOS CONCESSIVOS DE

INDULTO, SEM A VERIFICAÇÃO DOS SEUS PRESSUPOSTOS FATICOS, EMBORA SÓ O RÉU TENHA RECORRIDO. H C INDEFERIDO.

(HC 59403, Relator(a): Min. CORDEIRO GUERRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/03/1982, DJ 23-04- 1982 PP-03668 EMENT VOL-01251-01 PP-00108 RTJ VOL-00101-02 PP-00595)

(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 59.403. Relator Min. Cordeiro Guerra. DJ de 23 de abril de 1982)

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DIREITO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. CONCURSO MATERIAL ENTRE LESÃO CORPORAL E ABUSO DE AUTORIDADE. POSSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE DIVERGÊNCIA. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO. ALEGAÇÃO DE NECESSIDADE DE REDUÇÃO DA PENA DE MULTA NO SEU VALOR UNITÁRIO. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO.

1. [omissis]

2. Ademais, mesmo pela alínea “a” não mereceria melhor acolhida.

"Saliente-se, por último, que a Lei nº 4.898/65, cuidando da questão referente ao abuso de autoridade, definiu, caso a caso, as sanções administrativa, civil e penal aplicáveis de acordo com a gravidade do abuso cometido. Desta forma, o abuso de autoridade passou a ser punido independentemente de responder o agente, em concurso material, por outros delitos que da sua ação resultar. In casu, a r. sentença se apóia em prova amplamente satisfatória de que o recorrente cometeu abuso de autoridade, de vez que atentou contra a incolumidade física da vítima, assim como praticou lesões corporais, por haver-lhe efetivamente ofendido a integridade corporal, e sendo ambos os crimes dolosos, resultando de desígnios autônomos, aplica-se a regra do concurso material". 3. [omissis]

4. [omissis]

5. Agravo a que se nega provimento.

(AgRg no REsp 781.957/RS, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 01/07/2008, DJe 12/08/2008)

(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 781.957. Relatora Des. Convocada Jane Silva. DJe de 12 de agosto de 2008)

PROCESSUAL PENAL - NOVA DEFINIÇÃO JURIDICA AOS FATOS - NULIDADE INEXISTENTE - CONCURSO MATERIAL - ABUSO DE AUTORIDADE E LESÕES CORPORAIS.

fundamento de que haveria desígnios autônomos e que a punição da Lei de Abuso de Autoridade teria fundamento diverso, de modo que a reprimenda deveria ser independente. Na mesma linha e ao mesmo fundamento, Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos de Freitas entendem ser cabível o concurso material entre os crimes de abuso de autoridade por atentado à incolumidade pública e tortura, mesmo porque a condição de agente público não é pressuposto para a configuração dos crimes previstos na Lei nº 9.455/97, figurando apenas como causa especial de aumento de pena535.

4.4.1.1.8. Atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional