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Como já visto, a emergência da pós-modernidade exigiu do direito que se reinventasse. O paradigma pós-positivista, revendo antigos conceitos de normatividade, aplicabilidade e interpretação, trouxe uma nova forma de compreender a realização do direito a partir do retorno dos valores ao sistema, agora permeado de princípios. Com o neoconstitucionalismo, a eficácia das normas constitucionais, mormente dos princípios definidores de direitos fundamentais, é maximizada, exigindo-se do intérprete um esforço maior para equacionar os diversos interesses fundamentais conflitantes. Isso em virtude do fato de que as Constituições contemporâneas criaram ordens intrinsecamente dialéticas, fundadas na pluralidade política e na ampla participação de todos os setores sociais nas decisões. A ciência do direito viu-se, destarte, forçada a desenvolver-se para lidar com esse novo e complexo fenômeno jurídico180. É nesse contexto que surgem as técnicas de ponderação de interesses e desenvolve-se a argumentação jurídica. A tentativa é a de superar o arbítrio na aplicação do direito e racionalizar o fenômeno interpretativo. É de se observar que o paradigma que se pretende superar – note-se: superar e não deixar para trás –, bem representado pelo positivismo lógico kelseniano, não oferecia resposta adequada para controlar o fenômeno da interpretação

178

MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O conceito... Op. Cit.. p. 19.

179

Id. Ibid.. p.320.

180

jurídica. Para Hans Kelsen181, o direito positivo não abarca qualquer critério que defina ou obrigue o juiz a tomar esta ou aquela decisão, desde que dentro da moldura normativa. Observava o autor que “os métodos de interpretação até o presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto”. É exatamente essa a tarefa da ponderação: racionalizar o processo de obtenção do direito, tornando-o controlável, portanto182. O processo de ponderação implica na atribuição de pesos aos interesses envolvidos no caso decidido. Estabelece-se, assim, uma relação de precedência condicionada entre bem tutelado e bem sacrificado pela norma jurídica. A possibilidade – exigibilidade, diga-se – de fundamentação para esse procedimento se não elimina, ao menos diminui o subjetivismo na aplicação da norma.

Bem verdade que, no atual estágio de desenvolvimento da ciência jurídica, a ponderação não revela uma efetiva objetividade, sendo, muitas vezes, o meio pelo qual os juízes se utilizam para justificar um decisionismo desarrazoado. As técnicas de argumentação e a exigência de efetiva fundamentação das decisões judiciais, todavia, têm contribuído para um maior controle do poder depositado na mão dos magistrados183.

2.5.1. Ponderação e princípios jurídicos

Num contexto em que a normas jurídicas são divididas em regras e princípios, já se viu aqui, um dos critérios utilizados para a distinção entre as duas espécies normativas é a sua forma de aplicação. Desse modo, pela clássica definição, regras são aplicadas mediante subsunção e princípios são concretizados mediante ponderação. Apesar de demasiadamente simples e, bem verdade, ultrapassada, essa definição traz a base da discussão da moderna doutrina.

A subsunção é uma forma de aplicação ainda largamente utilizada e faz parte da própria essência do direito. Mas há casos em que não se pode a ela recorrer para a concretização das normas jurídicas. Nesse passo, a ponderação seria a técnica adequada para a decisão em casos difíceis (hard cases), quando a subsunção não satisfaz às exigências, em virtude da complexidade da situação trabalhada184.

181

KELSEN, Hans. Op. Cit.. p. 248.

182

BARROS, Suzana de Toledo. Op. Cit.. p. 174.

183

BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit, p. 350.

184

Isso resulta diretamente da natureza dialética do sistema jurídico contemporâneo, que não comporta, em certas ocasiões, uma solução simplória oferecida pela subsunção185. Diante da existência de interesses conflitantes abarcados pela ordem jurídica, impõe-se a utilização de técnicas mais apropriadas, como a ponderação. Nesse contexto, identificam-se diversas situações de conflitos normativos, em virtude da existência de direitos contrapostos e tutelados simultaneamente pela Constituição. Essa constante colisão de princípios não é apenas possível, ela é intrínseca ao sistema jurídico contemporâneo, que não é axiomático, mas dialético186.

De forma criteriosa, Robert Alexy187 descreve como se dá esse fenômeno de colisão. Observa o autor que isso se dá geralmente quando uma medida é por um princípio permitida ou incentivada e por outro proibida. Nesse caso, tratando-se de princípios, não se cogita a declaração de invalidade ou a introdução de uma exceção. É o caso de definir que, no caso concreto, um dos princípios prevalecerá, diante das condições verificadas.

É dizer, o conflito se resolve “por meio de um sopesamento entre os interesses conflitantes”, cujo objetivo é verificar qual dos princípios terá “maior peso no caso concreto”, apesar de abstratamente não haver qualquer hierarquia188. Isso significa estabelecer para uma determinada colisão uma relação de precedência condicionada, ou seja, enunciar que em determinadas condições verificadas no caso concreto, tal ou tais princípios prevalecem e determinada conduta é permitida, proibida ou obrigatória. Alteradas as condições fáticas, é possível que o resultado da ponderação se inverta, estabelecendo nova relação de precedência, com base em outro suporte concreto189.

Esse método de concretização do direito, baseado na ponderação e na utilização da proporcionalidade, permite que num sistema jurídico uno convivam princípios, direitos e interesses contrapostos, próprios das sociedades plurais e democráticas da pós-modernidade. A ponderação e a proporcionalidade são necessárias num sistema que se pretenda dialético, valorativo e plural, baseado em princípios jurídicos190.

185

SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio... Op. Cit.. p. 116.

186

BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit.. p. 31.

187

ALEXY, Robert. Op. Cit.. p. 93.

188

Id. Ibid.. p. 95.

189

Id. Ibid.. p. 96.

190

Por isso que a ponderação foi por muito tempo vinculada à teoria dos princípios, entendendo a doutrina que ambas se implicam mutuamente191. A ponderação, contudo, tem se destacado como técnica autônoma aplicável não apenas em conflitos entre princípios. Nessa linha, Humberto Ávila é categórico ao afirmar que “não é apropriado afirmar que a ponderação é método privativo de aplicação dos princípios, nem que os princípios possuem uma dimensão de peso”192. Isso porque não só os princípios, mas também as regras possuem um caráter provisório – ou prima facie –, já que podem ser superados a depender de determinadas condições verificadas no caso concreto. A variação, diz ele, é o tipo de ponderação utilizado193.

Também Lênio Streck194 o destaca. Para ele, princípios e regras “acontecem sempre no caso concreto”, não se podendo cindir situações de direito de situações fáticas, motivo porque não se pode hierarquizá-los ou metodologizar-lhes a aplicação com critérios apriorísticos. Podem, sim, regras e princípios ser superados diante do caso concreto, uma vez identificados valores superiores que o justifiquem, num processo de sopesamento.

Aliás, como já referido, as regras podem sim ser superadas, contudo, data venia, sua superação implica uma ponderação com os princípios substantivos que as embasam e também com princípios formais que norteiam o sistema e exigem a observância das regras em geral, preservando a segurança jurídica e a isonomia. Entretanto, isso somente pode ser conseguido se observados critérios objetivos e fundamentada a decisão com base em argumentos racionais, o que leva à exigência de um método específico, uma lei de sopesamento.

2.5.2. Lei de sopesamento

Importa salientar, inicialmente, a distinção feita por Humberto Ávila195, para quem a ponderação não implica, necessariamente, a proporcionalidade e a existência de princípios. Nessa linha, o autor afirma que, para que tenha utilidade no campo do direito, a ponderação deve ser associada a algum critério específico. Impõe-se, pois, associá-la aos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade para que, assumindo uma estrutura específica, contribua com a realização do direito.

191

BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit.. p. 56.

192

ÁVILA, Humberto. Teoria… Op. Cit.. p. 52.

193

Id. Ibid.. p. 58-59.

194

STRECK, Lênio Luiz. Verdade... Op. Cit.. p. 175-176.

195

A associação da técnica de ponderação com a proporcionalidade, já se viu, implica num método de solução de conflitos normativos, notadamente de princípios. Diante de um conflito, que se apresenta quando uma conduta é permitida ou incentivada por uma norma e proibida por outra, sopesam-se os interesses em jogo. Diante das circunstâncias observadas no caso, estabelece-se uma relação de precedência condicionada, em que as condições são os fatos relevantes específicos do caso.

No caso das regras, pode-se estabelecer uma hipótese de superação – sem declará-las inválidas –, quando, realizada a ponderação entre os princípios substanciais e formais, se resultar na submissão da regra a um princípio antagônico. Ressalte-se que a superação de um princípio formal não deve ser comum. É medida excepcional, uma vez que tais princípios são reflexo e fundamento da democracia e da legitimidade do poder político e da própria edição das normas196.

Num caso e noutro, verifica-se sempre o estabelecimento de uma relação de precedência condicionada, constatando-se, claramente, as condições fáticas para a incidência da decisão e as consequências jurídicas preconizadas pelo princípio prevalente. Ficam claros, assim, o suporte fático e a consequência jurídica de uma norma particular, uma regra, já que delimitados precisamente197. Para Robert Alexy198, trata-se de uma norma (com estrutura de regra) de direito fundamental atribuída, já que, apesar de não estar expressa em um texto legal, pode ser corretamente fundamentada na perspectiva dos direitos fundamentais.

Nessa linha, sempre que em outro caso se verifique a repetição das circunstâncias descritas no suporte fático daquela regra – as condições para a precedência –, poder-se-á aplicar, por subsunção, a regra elaborada no novo caso, dando ao juiz “modelos de solução pré- prontos”199. É o que se observa, por exemplo, com as súmulas de tribunais superiores, que concretizam princípios, estabelecendo condições de prevalência de um sobre outro e a consequência jurídica aplicada no caso concreto. A utilização dessas regras, a subsunção de decisões já tomadas e a contínua formulação de novas normas de direito fundamental atribuídas criam certa estabilidade no sistema, permeando-o de racionalidade200. Essas

196

ALEXY, Robert. Op. Cit.. p. 105.

197

Id. Ibid.. p. 121.

198

Id. Ibid.. p. 102.

199

BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit.. p. 61.

200

Em sentido contrário, Lênio Luiz Streck refuta a tese de que a ponderação seja um raciocínio propriamente jurídico e que confira racionalidade à aplicação do direito: “de forma discordante, entendo que a ponderação

normas, conhecidas independentemente da aplicação num caso concreto, assumem um grau de generalidade e abstração, contribuindo para a garantia de segurança jurídica201.

Consoante já se viu, os critérios utilizados para o sopesamento são exatamente aqueles preconizados pela proporcionalidade. Essa máxima funciona como um “princípio dos princípios”, que atua estabelecendo relações de precedência diante de conflitos entre normas de igual hierarquia, sem lhes declarar a invalidade ou a revogação202. É dizer, trata-se do confronto entre uma medida que pretende promover um direito fundamental – ou, simplesmente, realizá-lo, no caso de atos particulares – e que, como efeito colateral, produz a restrição de outro direito fundamental.

Impõe-se, assim, verificar as possibilidades fáticas e jurídicas da proporcionalidade. Questiona-se a idoneidade da medida para satisfazer um direito fundamental: se não for, a medida escolhida será inválida, pois não se admitem restrições inúteis de direitos fundamentais. Perquire-se a existência de meios alternativos igualmente idôneos e menos restritivos de direitos fundamentais: se houver, a medida escolhida será inválida, pois não se admitem restrições desnecessárias de direitos fundamentais. Por fim, sopesam-se os interesses em jogo, para verificar a importância de cada bem (sacrificado e promovido) no caso concreto, estabelecendo-se uma relação de precedência condicionada e criando-se uma regra de direito fundamental atribuída para o caso em exame e os que o sucederem.

2.6. A PROPORCIONALIDADE E A REVISÃO JUDICIAL DAS DECISÕES