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4. O CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE: ANÁLISE DA LEI Nº 898/65

4.2. BEM JURÍDICO PROTEGIDO: DEMOCRACIA SUBSTANCIAL

4.2.3. Democracia substancial, Estado de Direito e direitos fundamentais

O conceito de democracia substancial se pode conceber como a reserva de uma parcela do

indecidível, excluída da soberania popular. Já o Estado de Direito, necessariamente

constitucional, é aquele em que se exclui do soberano uma parcela do indecidível; ou seja, um âmbito de liberdade que não pode estar ao dispor do monarca – ao tempo em que foi concebido – e, então, do povo – com o desenvolvimento do princípio democrático da soberania popular.

Viu-se que o advento da democracia fez transferir a titularidade do poder do monarca ao cidadão, conferindo à maioria (parlamentar) a legitimidade de decidir, respeitado o procedimento – quem e como – de produção legislativa. Nesse passo, a democracia formal,

445

FERRAJOLI, Luigi. Derechos... Op. Cit.. p. 51.

446

STRECK, Lênio Luiz. Verdade... Op.Cit.. p. 19/20.

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baseada na simples transferência do poder de um monarca para o povo, ainda que aperfeiçoe o procedimento de formação da vontade popular – por meio de ampliação da participação do povo, por exemplo –, não se assemelha ao Estado de Direito. Mesmo uma democracia direta, perfeita, em que todas as decisões sejam tomadas pela confluência das vontades de todos os indivíduos, converter-se-á num totalitarismo caso o poder – popular – não seja limitado448. Ademais, é questionável a efetiva participação universal no processo democrático. Apesar de as massas terem sido politicamente emancipadas com o constitucionalismo democrático – notadamente com o sufrágio universal, já em meados do século passado –, sua incorporação ao processo e diálogo político ainda não se aperfeiçoou449. Impõe-se, assim, toda a cautela para permitir uma efetiva participação, impedindo-se que uma faculdade democrática como o voto se converta em verdadeira arma contra a democracia, coadunando com a perpetuação no poder e o seu livre dispor.

A relação entre a democracia substancial, o Estado de Direito e os direitos fundamentais é evidente. Robert Alexy450, ao definir direitos fundamentais como “posições que são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples” consegue deixar ainda mais claro o conceito. É exatamente esse o elemento-chave, a ideia-guia de uma democracia substancial, como já dito: a restrição de uma parcela do ‘indecidível’. Indecidível – ou indecidível que não – porque o próprio constituinte já fixou a decisão que não pode ser revista. São cláusulas intangíveis, não restringíveis senão para a garantia dos próprios direitos fundamentais.

Há questões, portanto, como sobrevivência e subsistência, em que não se permite que o Estado não decida, independentemente de haver ou não interesse da maioria. O Estado está obrigado a suprir uma demanda social, de modo que não há liberdade para que o legislador – o povo soberano – deixe de agir em tais casos451.

Mesmo porque, como adverte Dirley da Cunha Júnior, os direitos fundamentais são cristalizados nas cartas constitucionais não somente como posições favoráveis aos indivíduos, mas como valores básicos de uma sociedade, de modo que devem pautar as decisões – e não decisões – do legislador, conformando sua atuação452. Ao argumento de que seriam decisões

448

FERRAJOLI, Luigi. Direito... Op. Cit.. p. 689.

449

LEIBHOLZ, Gerhard. Op.Cit..

450

ALEXY, Robert. Op. Cit.. p. 446.

451

FERRAJOLI, Luigi. Direito... Op. Cit.. p. 693.

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passadas, que não refletem a configuração democrática contemporânea, deve-se observar que tais valores refletem conquistas que resumem a própria identidade de um povo, consolidadas na preservação dos interesses de cada um dos cidadãos. Desse modo, ainda que uma eventual maioria posterior lhes pretenda revogar, tais direitos ficam preservados, inerentes ao patrimônio jurídico de seus titulares.

Muito daquilo que se discute e vota num parlamento encontra nos direitos fundamentais uma barreira. Ainda que se pretendesse aprovar um projeto de lei contrário a um direito fundamental, a ordem jurídica constitucional não recepcionaria tal norma, uma vez que os direitos fundamentais servem de baliza para a admissibilidade das decisões parlamentares453. O conflito entre democracia e Estado de Direito se fixa exatamente na “nervosa esfera dos direitos fundamentais” 454. Trata-se de verdadeiro conflito entre indivíduos, membros de um corpo social que disputam por proteção estatal455. A sociedade vive, assim, o constante conflito político, ético e jurídico de garantir, de um lado, a liberdade de uns e, de outro, a proteção de outros. Tal dilema apenas reflete uma questão de colisão entre princípios jurídicos de direito fundamental, abarcados pela concepção de Estado de Direito. Nesse aspecto, a limitação da competência estatal e a sua sujeição ao direito do cidadão a uma prestação compõem a esfera das exigências em face do Estado, a esfera dos conflitantes direitos fundamentais. Tais garantias – liberais ou sociais – exprimem esses direitos fundamentais contra os poderes do Estado456.

Como já tratado alhures, esse conflito resulta numa constante síntese dialética entre os direitos fundamentais, que se alargam para abarcar novas realidades e ampliar as garantias – positivas e negativas – do indivíduo em face do Estado. A democracia constitucional é, pois, como observa Lênio Luiz Streck457, um “sistema político talhado no tempo social” justamente pela possibilidade de evoluir, enriquecer-se com o reconhecimento dos erros em sua condução. Não se trata de um sistema estático. Ao revés, os direitos fundamentais têm caráter mutável e histórico, o que permitiu que uma concepção classicamente liberal de Estado de Direito evoluísse para abarcar o Estado social, justamente porque a base de sustentação do modelo do Estado de Direito – legalidade constitucional e garantia (inclusive jurisdicional) dos direitos

453

ALEXY, Robert. Op. Cit.. p. 489.

454

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional... Op. Cit.. p. 586.

455

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição... Op. Cit.. p.74.

456

FERRAJOLI, Luigi. Direito... Op. Cit.. p. 693.

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fundamentais – impõe a sua constante ampliação, efetivação e proteção por meio de mecanismos legais de tutela458.

Uma Lei de Abuso de Autoridade, nesse contexto, desponta como meio para a preservação não somente de cada um dos direitos individuais tutelados nos tipos penais individualmente considerados. Trata-se a norma como um todo de um instrumento de defesa do próprio Estado Democrático de Direito e, portanto, desse bem jurídico a que se chama, no presente trabalho, de democracia substancial. A tutela penal das liberdades mostra-se como atuação necessária do Estado e deve ser efetiva, sob pena de esgotamento dos fundamentos da própria organização social.

Em virtude disso, considerando-se a natureza do bem jurídico protegido pela norma em comento, deve-se exigir que a satisfação de sua tutela seja efetiva e que a reprovação das condutas que atentem contra a democracia substancial seja proporcional à importância do bem jurídico tutelado. Necessário se faz, portanto, para analisar a efetividade da Lei de Abuso de Autoridade, que se debruce especificamente sobre as hipóteses de ilícito e as formas de responsabilidade nela previstas.