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4 IDEOLOGIA NO CINEMA

4.3 A BANALIDADE DO MAL, O HOLOCAUSTO E O CINEMA

A precária abordagem do cinema ao recontar casos históricos pode ser definida, de acordo com o conteúdo apresentado anteriormente, pela sua necessidade básica em criar roteiros que apresentam, na grande maioria das vezes, um grandioso embate entre o bem e o mal. Claramente, ao representar algum conteúdo histórico, as crenças, valores e ideais da sociedade que redige esta produção cinematográfica são inseridos em um cenário histórico que tem, na realidade, fatores desiguais desta comunidade, acarretando em outro forte afastamento da realidade nestas montagens. Como visto nos filmes apresentados anteriormente, outro fator bastante importante se dá no indivíduo responsável pelo trabalho, como Steven Spielberg no americano “A Lista de Schindler” e a alemã Leni Riefenstahl no nazista “O Triunfo da Vontade”.

Destarte, torna-se de grande interesse na presente pesquisa, após a análise buscada e realizada dos filmes escolhidos como centrais no tema, um olhar no cinema mundial em breve busca quanto o seu teor histórico, ideológico e político para encerrar-se o tema compreendendo onde e como a teoria de Banalidade do Mal pode ser encontrada nestes trabalhos ou, como em “A Lista de Schindler”, totalmente ignorada na sua construção.

O cinema alemão nazista, que recebeu bastante força e apoio governamental durante os anos de Adolf Hitler no poder, era utilizado como forma direta de propaganda ideológica, ação bastante reconhecida e utilizada em governos totalitários ao redor do globo e da história. Em questão de tais filmes, encontra-se bastante do debatido por Hannah Arendt e Zygmunt Bauman quanto a desumanização dos inimigos e da extrema burocratização da ideologia nazista. Em filmes como “O Eterno Judeu” (Fritz Hippler, 1940), o antissemitismo é claro e direto: A comunidade judaica não é confiável e possui valores deturpados que não vão ao encontro do que era necessário para a formação de uma nova Alemanha.

Mesmo que possua uma questão antissemita bastante ofensiva e preconceituosa, com o uso de dados incorretos ou inflados para a construção de seu pensamento, o filme concorda com a questão arendtiana frente o processo burocrático como grande causador da Solução Final Nazista. O polêmico documentário não trata da questão judaica como incentivo de barbáries ou assassinatos, mas sim na desconstrução da humanidade de um indivíduo judeu e sua incompatibilidade com os planos de salvação impostos e acreditados pelo Partido Nazista de Hitler. Ao perseguir uma desumanização judaica, os filmes antissemitas convergem com as maiores críticas de Arendt quando se busca uma segregação entre bem e mal que, somada à

burocratização de um governo totalitário, causou os horrores presenciados durante a Segunda Guerra Mundial na Alemanha de Hitler.

Outro grande exemplo cinematográfico antissemita nazista é o longa “Os Rothschilds” (Erich Waschneck, 1940), que conta a história da família Rothschilds entre os anos de 1806 e 1815, relatando seu enriquecimento próprio em via da deterioração dos valores arianos. Ainda, na obra, apresenta-se o indivíduo britânico como outro grande inimigo alemão, impregnado com o capitalismo voraz que, de acordo com a ideologia nazista era presente nas ações judaicas. Mais uma vez, entende-se o estabelecimento nítido de inimigos declarados e a segregação entre o bem e o mal como forma de conduzir o antissemitismo na mente da população alemã. Ainda no cinema nazista, ressalta-se o já citado “Judeu Süss” (Veit Harlan, 1940), que também apresenta, em sua moral antissemita que prega a ideia de enriquecimento judeu para o bem-estar político e econômico pessoal e não comunitário, (PEREIRA, 2012, p. 424) a segregação e o antissemitismo voraz interpretado por Hannah Arendt como uma etapa do governo totalitário para os fins vistos no Holocausto.

Como lembrado por Santos (2012, p. 5-6):

O objetivo principal desses filmes longa metragens, documentários, era enaltecer a imagem de Hitler como um herói da nação ariana, onde Berlim seria a cidade redentora de uma raça pura, um mundo sem “imperfeições”, onde ciganos, homossexuais, deficientes, doentes mentais, negros, estrangeiros e especificamente judeus não teriam um lugar, pois, para os nazistas, os judeus eram tratados como uma questão de saúde pública.

A questão ideológica americana quanto ao holocausto da Segunda Guerra Mundial, ainda que já comentada anteriormente, oferece também grande interesse em sua análise. Como exemplo da intensa e distorcida maneira com que Hollywood tratou, e ainda trata, o holocausto e o nazismo da Segunda Guerra Mundial, tem-se o documentário americano “Imaginary Witness: Hollywood and the Holocaust” de 2004, que demonstra a necessidade dos grandes estúdios americanos em representar os acontecimentos do Terceiro Reich da forma mais sanguinária, forte, assustadora e triste possível. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o número de trabalhos de entretenimento acerca do Holocausto e principalmente da comunidade judaica como aparente única vítima dos terrores nazistas atingiu altíssimos níveis e, quanto maior audiência traziam, maior era o número de projetos que visavam retratar os acontecimentos históricos do Terceiro Reich.

De entrevistas em talk-shows a filmes de grande orçamento, o cinema hollywoodiano que retrata o nazismo possui inúmeras obras em suas listas, que irão dos mais diversos temas e atingirão os mais diversos público-alvo.

Dentre razões para justificar o interesse e o fascínio hollywoodiano na questão judaica, interesse este não apenas nos acontecimentos reais dos campos de concentração, mas sim em um enredo sempre pautado na criação de vilões irreais, pode-se apontar o grande número de judeus no comando dos estúdios e produções em Hollywood. Em 1984 o jornalista, historiador e crítico de cinema Neal Gabler lançou o livro “Um império próprio: como judeus inventaram Hollywood” onde o autor conta não apenas sobre o nascimento do cinema como arte, mas também – e mais importante – os motivos que levaram essa forma de arte a forma internacional que ela ganhou ao chegar em solo americano (BOYERO, 2016).

De acordo com Boyero (2016):

Gabler não só apresenta dados como também possui teorias sobre o envolvimento dos judeus no cinema norte-americano – não apenas com a intenção de enriquecer, mas ainda de conquistar a respeitabilidade e de satisfazer sua ânsia de integração no novo mundo, criando através de seus filmes o American way of life, orientando a venda de sonhos para as classes média e baixa [...] Essa exibição permanente sobre os princípios, os ideais e os valores que definiam o estilo de vida norte-americano era inventado por gente que provavelmente falava o inglês com dificuldade e cujos pais se comunicavam em ídiche; que tinham vivido na Europa os massacres, o medo e a discriminação; que haviam atravessado realidades muito duras antes de vender aos nativos nas telas a América que eles imaginavam.

Para Gabler, os judeus, já em Hollywood, criaram um forte conjunto de ideias e imagens capazes de colonizar a imaginação americana. Durante a era de ouro do cinema americano, ninguém conseguia pensar no país sem pensar em seus clássicos e famosos filmes. De acordo com o autor, surge então um paradoxo, onde os filmes eram totalmente americanos enquanto seus diretores, produtores e idealizadores não eram. Por fim, os valores americanos foram largamente definidos pelos filmes feitos por judeus e, criando a idealização americana nas telas, os judeus reinventaram o país na imagem de suas ficções (GABLER, 1989).

Ainda, de acordo com o autor, nos anos vinte a quase totalidade dos escritores de Hollywood eram judeus, as mais poderosas agências de talento eram também comandadas por judeus, assim como os advogados judeus transacionavam a maioria dos negócios da indústria. Acima de tudo, os judeus produziam os filmes, onde dos oitenta e cinco nomes engajados na produção, cinquenta e três eram judeus (GABLER, 1989). Destarte, afirma-se que os judeus americanos que comandavam a indústria hollywoodiana, também sob grande número de protestos conservadores, se apresentavam sempre como cidadãos americanos e esforçavam-se

para pertencer àquela comunidade, por mais que seus ideais, como vistos anteriormente, iriam sempre de encontro em suas produções.

Um dos maiores exemplos da forma invasiva e apropriadora de Hollywood frente ao Holocausto está nas adaptações do clássico diário de Anne Frank, publicado na Alemanha em 1950 e nos Estados Unidos em 1952. A primeira e mais reconhecida adaptação cinematográfica americana, dirigida por George Stevens em 1959, foi vencedora de incontáveis prêmios, entre eles o Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor. Entretanto, para Hannah Arendt, a forma com que a história da jovem garota judia e sua família foi tratada pela mídia e pelos estúdios soava como uma barata sentimentalidade em frente a enorme catástrofe (o holocausto) que ela representava (GRAVER, 1995, p. 130). Em contraste com o livro, nota-se o uso da linguagem americana no lugar da língua original da família (holandesa) e a exclusão das comemorações de datas judaicas no anexo onde a família se escondia. Outro fator que chama a atenção é o fato de a história de Anne ter sido adaptada para o cinema ou TV (longa-metragem para cinemas, longa-metragem para TV ou documentário) vinte e uma vezes, sendo oito delas produções americanas e grande parte do restante realizada por aliados aos Estados Unidos, como Reino Unido e Israel. O primeiro longa-metragem alemão sobre a história da família Frank estreou apenas em 2016.

Para Anderson (2010, p. 159), o diário de Anne Frank, ao conquistar o coração de não-judeus ao redor do globo, foi fortemente utilizado para americanização da memória do Holocausto, privatizando e sentimentalizando o evento histórico, apagando as memórias das vítimas reais com o intuito de uma dramatização efetiva. Como lembra também a historiadora israelense Dina Porat (2016), que acusa o processo de transformação de Anne Frank em uma garota americana pela mídia. Citando Eleanor Roosevelt durante seu discurso acerca do diário de Anne, a autora lembra que a primeira-dama afirmou que o livro toca a todos justamente por dizer muito sobre si mesmos e suas crianças – americanas -, aproximando todos das experiências de Anne Frank. Porém, ressalta-se a indagação: A experiência daqueles que liam o diário de Anne Frank em suas confortáveis casas sob um governo democrático realmente condiziam com os de uma jovem garota judia e sua família que viviam em um anexo durante o governo totalitário nazista?

Ainda em busca de trabalhos cinematográficos que vão contra as ideias e asserções de Hannah Arendt, nota-se um incontável número de filmes de ação que não tentam passar a imagem de recontagens históricas, mas são claros exemplos de como a maldade nazista foi tirada do contexto histórico e os reais perigos do governo de Hitler foram jogados para fora da história do cinema. Na adaptação do clássico dos quadrinhos, X-Men: O Filme (Bryan Singer,

2000), somos, logo na primeira cena, apresentados à história do grande vilão Magneto, uma vítima do regime nazista que assassinou sua família e o traumatizou para o resto de sua vida. A história do grande vilão é novamente apresentada em X-Men Apocalipse (Bryan Singer, 2016), onde campos de concentração são mostrados em memórias para relembrar o espectador dos horrores ocorridos no holocausto, onde nazistas eram seres unidimensionais com a única finalidade de destruir, assassinar e humilhar a comunidade judaica, assim como um vilão de uma história de super-heróis. Em uma comparação com o trabalho de Hannah Arendt, Lopes (2014, p. 19) relembra os principais fatores que chamam atenção no relato da autora, como o fato de Eichmann não possuir nenhuma das características dos vilões de televisão ou cinema, como esperado pela população e como evidenciado pelos filmes de mais diversos gêneros. Eichmann não tinha tiques, manias, excentricidades ou qualquer característica que se usa na criação dos antagonistas dos heróis e super-heróis, ou até mesmo na criação dos grandes gênios do mal. Muito menos se parecia com um chefão do crime: nem arrogância, nem onipotência.

Outro grande exemplo encontra-se no aclamado Bastardos Inglórios (Quentin Tarantino, 2009), uma mistura de comédia, drama e aventura que acompanha um grupo fictício de soldados judeus americanos infiltrados na França ocupada com o intuito de “pagar com a mesma moeda” os horrores nazistas, buscando, um a um, soldados nazistas e torturando-os, assassinando-os e tentando armar um grande plano para dizimar seus líderes. O longa contraria básicas premissas apresentadas por Bauman ao tratar da questão nazista-judaica, em especial quando apresenta, de forma equivocada, as duas principais maneiras com que o Holocausto pode ser perigosamente descontextualizado, sendo elas a concepção do evento como algo isolado e próprio apenas da história judaica, como um produto direto do antissemitismo e também como algo extremo e produto de abominável e repulsivo preconceito (BAUMAN, 1998, p. 19-20).

Além dos trabalhos do cinema já citados, chama-se atenção para o longa “Alemanha, Mãe Pálida” de 1980, produção da Alemanha Ocidental que demonstra as dificuldades do front interno alemão ao acompanhar a história de Lene, alemã que sofre os impactos físicos e psicológicos da guerra enquanto tenta criar sua filha recém-nascida. Com o nazismo como pano de fundo, o filme também personificará o mal ao retratar as famílias simpatizantes do nazismo como más enquanto Hans, marido de Lene, mesmo lutando pelo lado Alemão na guerra, mostra- se adverso às barbáries e ideologias do conflito.

Por fim, apresenta-se uma coprodução estadounidense e alemã que anda em concordância com a Banalidade do Mal de Hannah Arendt, ressaltando, de acordo com Schickel (2008), ser um dos únicos exemplos encontrados no cinema internacional, em especial o norte-

americano. O longa “O Leitor” (Stephen Daldry, 2008), contará a história do jovem Michael Berg10 que se apaixona por uma trabalhadora alemã mais velha após ser salvo pela mesma em 1958. O breve romance proibido chega a um fim e, anos após, Michael, agora estudante de direito, encontra sua antiga paixão no banco de réus do tribunal, acusada de deixar trezentas prisioneiras judias morrerem queimadas em uma igreja em chamas no ano de 1944. Assim como Eichmann, a protagonista do filme é também uma cidadã de pouco conhecimento e que entra no Partido Nazista após a ascensão em um antigo trabalho, acabando por ver sua própria imagem ser transformada em um monstro digno de grandes filmes em frente a todo um tribunal. Simples, de personalidade destoante e aparentemente bondosa, Hannah Schmitz11 é analfabeta e possui problemas de personalidade ao tentar esconder este fato.

Em seu julgamento, Eichmann insistia que era culpado “apenas de ajudar e instigar a realização dos crimes de que era acusado” (ARENDT, 2015, p. 268), e sua inserção no Partido Nazista se dava pela busca de ascensão na carreira. Diferente de Eichmann, a personagem Hannah Schmitz não apresentava, em sua defesa, grande interesse nas questões nazistas, mas entra em concordância com Eichmann ao afirmar que apenas aderiu ao regime em busca de emprego e consolidação financeira. A personalidade da personagem também remete a Adolf Eichmann e a interpretação arendtiana nas cenas de julgamento apresentadas no longa. Schmitz, assim como Eichmann, também respondia facilmente as perguntas dirigidas pela acusação e não aparenta ver problemas ao afirmar que fazia parte do Partido Nazista e que também teve ação no processo levado pela política nazista, diferente das outras acusadas do mesmo crime. Além de assumir sua parte no processo, Schmitz também conta para o júri como aconteciam as contagens e as escolhas das vítimas, comprovando seu caráter que abdicava das questões morais e de autorreflexão e pautava-se na burocracia do regime, fator resultante na Banalidade do Mal do caso Eichmann. Parafraseando Hannah Arendt, em ambos os casos se percebe que não se tratava de um crime comum, e a natureza do criminoso não era a mesma de um criminoso comum (ARENDT, 2015, p. 268).

Por fim, a defesa para o crime de Hannah no longa é encontrada explicitamente no que foi chamado por Hannah Arendt de “Banalidade do Mal” e, ainda com divergências na construção dos personagens e sua romantização típica, fatores que parecem necessários para a

10 Na fase avançada do longa, Michael é interpretado pelo ator Ralph Fiennes, o mesmo que deu vida ao

monstruoso e unidimensional Goeth de “A Lista de Schindler”.

construção de um roteiro, o filme é ainda um dos únicos exemplos saídos dos Estados Unidos que mostra a visão da Banalidade do Mal de Arendt.