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4 IDEOLOGIA NO CINEMA

4.2 A LISTA DE SCHINDLER

O longa “A Lista de Schindler”, lançado em dezembro de 1993 e dirigido pelo judeu Steven Spielberg, é uma adaptação cinematográfica do livro “Schindler’s Ark” do novelista australiano Thomas Keneally e que reconta a história verídica de Oskar Schindler, industrial alemão membro do Partido Nazista que usa sua fábrica para ajudar na fuga de judeus durante o Holocausto na Segunda Guerra Mundial. Sob o pretexto de trabalho escravo, subornou oficiais, que liberaram judeus que seriam mandados aos campos de concentração para trabalharem em sua fábrica de armamentos.

Ambientado na Polônia ocupada, o filme foi um sucesso de crítica e bilheteria9 e é reconhecido até os dias atuais como uma obra prima do cinema norte-americano, sendo ainda

9 Com uma produção de vinte e dois milhões de dólares, o filme arrecadou, mundialmente, cerca de trezentos e

vinte e um milhões, além de garantir a estatueta do Oscar de melhor filme e direção dentre outras cinco vitórias e

mais cinco nomeações. Fonte: Box Office Mojo. Disponível em:

considerado um dos mais famosos longas a retratar o Holocausto nos campos de concentração nazistas.

Em questão de seu posicionamento como documento histórico para análise, o longa metragem se diferencia do documentário anteriormente analisado, “O Triunfo da Vontade”, já que sua produção retrata não sua época, mas uma época anterior à sua. Para Nova (1996), este modelo de filme também pode ser considerado documento histórico, porém é necessária uma análise atenta uma vez que sua avaliação leva em conta diferentes questões fundamentais. Em destaque, o primeiro questionamento deve se dar na relação entre o passado representado no filme e o presente onde o filme foi produzido, montado e finalizado, já que, como visto anteriormente, qualquer representação do passado existente em um trabalho cinematográfico estará diretamente relacionada com o período atual de sua produção. Ainda, um filme nunca poderia contar um acontecimento histórico de forma a resguardar a verdade plena, mesmo que este seja o desejo do responsável (NOVA, 1996).

Destarte, o trabalho de Steven Spielberg, além de representar a difundida visão de grande parte da comunidade judaica, deve também ser analisado pela visão atual de um evento que ocorreu no passado, no caso durante o governo do Terceiro Reich na Alemanha nazista, de 1933 a 1945.

Para Nova (1996), “em muitos casos, o retorno ao passado funciona como um instrumento de ocultação de um conteúdo presente que se deseja passar para o espectador” e o sucesso do filme comprova que a mídia é cada vez mais responsável por influenciar a apresentação da história, mais mesmo que os próprios historiadores (HEUER, 2012, p. 197).

Ainda, para Zelizer (1997, p. 18), de tempos em tempos surge um filme que parece criar um elo entre cultura, história e memória coletiva, assim como foi o caso de “A Lista de Schindler”. O longa captou grande parte da audiência cinéfila internacional com uma versão cativante e emocionante dos aterrorizantes eventos do Holocausto, tido como parte da história contemporânea. O próprio diretor, Steven Spielberg, saudou-se por conseguir realizar o melhor trabalho de direção de sua carreira, enquanto o filme era ovacionado como o melhor do ano.

Entretanto, ao submeter o longa a uma análise pautada nos ensinamentos arendtianos, ficam claras diversas problemáticas encontradas na condução de sua história e na maneira com que os eventos são apresentados por Spielberg. À primeira vista, o filme responsável por recontar para muitos os eventos “reais” do Holocausto apresenta a clara divisão entre bem e mal, resumindo a questão à parâmetros rasos e que pouco poderiam inspirar no entendimento de suas motivações e razões. Leibovitz (2011) relembra que o oficial nazista Goeth, grande vilão da película, é apenas um monstro, podendo ser comparado à criatura alien

do filme de 1979 dirigido por Ridley Scott ou até mesmo o tubarão sanguinário do filme de 1975 dirigido pelo próprio Steven Spielberg, demonstrando a notável falta de profundidade do personagem. Para o autor, o personagem não se parece nada com o assassino real em que ele foi baseado, representando o real perigo em sua concepção, que nos faz temê-lo como um grande vilão apenas visto nas telas de cinema, não um ordinário e maligno ser humano que vive na casa ao lado esperando sua chance de poder.

Figura 15 – Pôster oficial do filme “A Lista de Schindler”.

Fonte: IMPA Awards. Disponível em: <http://www.impawards.com/1993/schindlers_list.html>. Acesso em 10

set. 2016.

Na realidade, o filme de Spielberg se diferencia em todos os aspectos essenciais do trabalho de Hannah Arendt, em especial sua maior contribuição para o entendimento dos acontecimentos durante o holocausto: O total colapso moral da sociedade alemã no governo totalitário de Adolf Hitler (HEUER, 2012, p. 191).

Ainda utilizando o vilão como objeto de análise, ressalta-se que Goeth era impiedoso, brutal, arbitrário e corrupto, aceitando suborno, álcool, mulheres e violência como paixão além dos limites (HEUER, 2012, p. 192). Eichmann, por outro lado, não possuía inclinações sadistas e não sentia prazer em suas visitas aos campos de concentração, como lembra Hannah Arendt ao afirmar que o acusado não possuía fibra para os tipos de ação tomados pelos soldados, até mesmo por nunca ter pertencido ao batalhão, nunca ter frequentado o front e nunca visto as ações com seus próprios olhos. Eichmann, quando em Minsk, na Rússia

Branca, a mando de um superior, foi designado para conferir a forma com que o fuzilamento era conduzido e mostrou-se bastante aliviado em não ter vivenciado muita coisa. Por fim, Eichmann foi enviado para comprovar que todas as complexas precauções que se tomavam no campo para enganar as vítimas até o final fossem cumpridas (ARENDT, 2015, p. 104).

Figura 16 – Do alto de sua varanda, Goeth brinca de tiro ao alvo com judeus no campo de concentração.

Fonte: KARE, Karsten, 2015. Disponível em: <https://karstenkares.wordpress.com/2015/11/12/schindlers-list- review-the-power-of-film/>. Acesso em: 10 set. 2016.

Ainda, Arendt (2015, p. 122) afirma que os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza e, ao contrário do que muito enfatizado no longa, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que faziam. Para inverter a direção dos instintos que pesavam os soldados nazistas, relata-se ainda a existência de uma tentativa de trazer estes instintos para o próprio indivíduo, frisando que, “em vez de dizer ‘Que coisas horríveis eu fiz com as pessoas! ’, os assassinos poderiam dizer ‘Que coisas horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa sobre os meus ombros! ’ (ARENDT, p. 122), pensamento este que desmancha a crença de prazer individual nas ações nazistas.

Sendo assim, o vilão de Spielberg não representa os membros de um sistema totalitário como Adolf Eichmann, sistema este dominado por ideologia e uma disciplina partidária que excluía preferências individuais e paixões. O que o filme falha em contar é o fato de que a SS prendeu o homem que inspirou o personagem de Goeth justamente por seus subornos e estava prestes a levá-lo ao tribunal quando a guerra chegou ao fim. Em outro caso parecido, o ex-comandante do campo de concentração de Buchenwald, Karl Koch, foi

condenado à morte e executado por seu esquema de suborno. Portanto, enquanto a SS não tolerava enriquecimento privado, o sistema nazista demonstrado por Spielberg soa como um sistema de individualistas irrestritos. O cerne da questão levantada por Hannah Arendt e descontruída erroneamente pelo filme “A Lista de Schindler” pode ser resumida ao se reiterar que o sistema era baseado em regras e não na ausência delas (HEUER, 2012, p. 192).

Ademais, a crueldade nazista retratada na obra de Steven Spielberg não pode ser depositada inteiramente no diretor ou apenas no filme aqui retratado, uma vez que a emblemática luta simplista entre o bem e o mal será uma receita validada em quase todos os grandes sucessos de Hollywood (HEUER, 2012, p. 194), dando a abertura necessária para a distorção histórica nas grandes produções que irão retratar momentos históricos. Outro grande exemplo encontra-se no longa “O Pianista” de Roman Polanski, lançado em 2002 e que trará impactantes cenas inumanas de ações nazistas, como a cena de invasão a um pequeno apartamento no gueto de Warsaw onde toda uma família judia é assassinada a sangue frio e o patriarca idoso é jogado de sua janela ainda em sua cadeira de rodas.

A contribuição de Hannah Arendt, pautada em fatos apresentados ao decorrer de seu livro e com importante reflexão filosófica, chegou à conclusão de um colapso moral comum não apenas para os criminosos, mas de grande parte da população alemã, enquanto o filme “A Lista de Schindler” trata da narrativa pautado na história judaica, narrativa esta usada em exaustão pelo promotor público do caso Eichmann, Hausner. A diferença entre as narrativas utilizadas será extensamente abordada por Arendt ao tratar do caso Eichmann e a mensagem deturpada de Spielberg não se trata sobre o colapso da moralidade, mas sim sobre um egoísmo pronunciado que não poupa o uso da guerra e da exploração da força de trabalho. Mesmo com os significativos levantamentos de Arendt, o filme norte-americano ainda trata do assunto como uma simples questão de “se você quiser salvar alguém, basta querer fazer isso” (HEUER, 2012). Arendt, mesmo não sendo um ator oficial no drama legal do julgamento, posicionou-se na contra narrativa, apontando a história que deveria ter sido tomada pela corte, mas que, infelizmente, não o foi (BILSKY, 2001, p. 232). Tendo esta narrativa da corte bastante aproximada da escolhida por grande parte das grandes produções cinematográficas norte- americana, é importante também lembrar que, dentro da narrativa de Arendt, a história tradicional do judaísmo e do antissemitismo não expunha as explicações necessárias para o entendimento do novo fenômeno vivenciado durante o Holocausto. A autora afirma que as ações de Eichmann só podem ser compreendidas quando o acusado e suas ações são colocados como peças de seus tempos, os tempos de burocracia, ciência e ideologia (BILSKY, 2001, p. 241).

Por fim, os estudos de Arendt comprovam que em sua observação o mal é despersonalizado e inserido no sistema totalitário, enquanto Spielberg traz de volta o mal para o nível do individual (LEVY, 2007 apud HEUER, 2012, p. 192), portanto, pode-se dizer que o longa A Lista de Schindler, mesmo sendo baseado em fatos reais, muda a perspectiva histórica e remove o Holocausto de seu contexto histórico. No trabalho do diretor, salvadores e vítimas correspondem aos cidadãos de democracias liberais, com suas morais de julgamento intactas e prontas para julgar uma dominação tirana (HEUER, 2012, p. 195). Entende-se também que grande parte do cinema é um produto de seu tempo, mesmo quando tenta reconstruir eventos históricos (NOVA, 1996).

Figura 17 – Steven Spielberg durante as gravações de “A Lista de Schindler”, 1993.

Fonte: HUFFPOST Entertainment, 2015. Disponível em: <http://www.huffingtonpost.co.uk/2015/01/26/sc hindlers-list-steven-spielberg-krakow-auschwitz-20-anniversary_n_3050239.html>. Acesso em: 21 set. 2016.

Portanto, ao assistir A Lista de Schindler, encontra-se a si mesmo nos julgamentos e nos acontecimentos, tendo entendimento do seu mundo e sua conjuntura, não as ressalvas de um mundo totalitário. Hannah Arendt dá forma a seu pensamento através do mundo totalitário enquanto Spielberg o faz através de uma lente democrática liberal (HEUER, 2012, p. 196). Para a filósofa política, Eichmann não era estulto e suas ações são justificadas ao analisar sua completa falta de reflexão, e a importância única de sua análise é a percepção e o entendimento de que a distância entre a realidade e o desapego vistos no Holocausto podem causar devastação muito maior do que todos os maus instintos juntos (ARENDT, 2015, p. 311).