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3 VIDA E OBRA DE HANNAH ARENDT

3.1 EICHMANN EM JERUSALEM E A BANALIDADE DO MAL

Como relatado anteriormente, “Eichmann em Jerusálem – Um relato sobre a banalidade do mal”, originalmente lançado em cinco seções pela revista The New Yorker e posteriormente no mesmo ano publicado em forma de livro, foi certamente o maior divisor de águas na carreira de Hannah Arendt, lançando-a em meio à grandes cartas de repúdio e também apoio. O alcance e a importância da obra podem ser medidos no livro “The Banality of Evil” de 1998 onde seu autor, o professor e psiquiatra Bernard J. Bergen, declara que, em seus anos como universitário, ápice da discussão acerca das publicações de sobre Eichmann ao redor do globo, a leitura da obra de Hannah Arendt era obrigatória entre todo o meio acadêmico (BERGEN, 1998, Prefácio).

“Eichmann em Jerusalém” retrata o processo de julgamento de Adolf Eichmann em Israel, evento este acompanhado por Hannah Arendt como, de acordo com a autora, uma forma de cumprir com uma obrigação que tinha com seu passado (EZRA, 2016) e conta com duras críticas não apenas ao regime nazista, mas ao ser humano, a sociedade, sua evolução e até mesmo à comunidade judaica, além também de condenar os responsáveis pelo processo de acusação de Eichmann. Para compreender as indagações de Arendt, é primordial entender brevemente a história de Adolf Eichmann e de sua prisão após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Adolf Eichmann acabou sendo, na Alemanha nazista, líder da seção IVB-4 da SS, organização paramilitar sob o comando de Hitler e ficava responsável por supervisionar a deportação de judeus para suas mortes nos campos de concentração. Após o fim da guerra, Eichmann fugiu para a Argentina onde viveu sob um nome fictício até maio de 1960 quando o Serviço de Segurança Israelense o raptou e o levou à Jerusalém para ser julgado pelas suas atividades do tempo de guerra, incluindo a morte de milhões de judeus e crimes contra a humanidade. O julgamento iniciou no dia 11 de abril de 1961 e terminou dia 31 de maio 1962 com a condenação e o enforcamento do acusado (EZRA, 2016).

Com o intuito de melhor compreender a ideia proposta e defendida por Hannah Arendt ao usar o termo “Banalidade do Mal” no caso de Eichmann, traz-se à tona a forma com que o caso foi tratado pela promotoria e por grande parte da população mundial, já com intenso sentimento de proximidade com as barbáries ocorridas durante o governo do Terceiro Reich na

Alemanha. A atenção em questão dava-se através da forte importância trazida pelos meios de comunicação e entretenimento ao evento, que passavam por forte processo de desenvolvimento tecnológico e ganhavam acesso cada vez mais próximo à população em geral. Ressalta-se que, no ano de 1943, no período conhecido como “Guerra Total”, a população já reivindicava a guerra como “um espetáculo cada vez mais grandioso, capaz de rivalizar mais uma vez com as superproduções hollywoodianas e com seus grandes cataclismos bíblicos” (VIRILIO, 2005, p. 143).

Destarte, para Hannah Arendt o cerne da crítica à acusação do caso Eichmann pode ser resumida em uma simples frase: “Essa acusação tem por base o que os judeus sofreram, não o que Eichmann fez” (ARENDT, 2015, p. 16), relatando que “se a opinião pública mundial (...) teimava e exigia que aqueles indivíduos fossem punidos, estavam inteiramente dispostas a agir, pelo menos até certo ponto” (ARENDT, 2015, p. 27), acusando a promotoria de conduzir o caso em alicerces errôneos desde seu início com a falsa pretensão de justiça através da pré- estabelecida punição à Eichmann. Reforça-se também que Hannah Arendt em momento algum duvida da culpa de Adolf Eichmann, assim como todos presentes no julgamento, mas destaca- se em ser a única presente que irá questionar os significados da Solução Final como um todo (BERGEN, 1998, p. 5).

Quanto aos diversos erros apontados por Arendt durante o processo de julgamento, frisa- se o fato de que “o grosso das testemunhas, 53, veio da Polônia e Lituânia, onde a competência e autoridade de Eichmann eram quase nulas” (ARENDT, 2015, p. 246) e que “o que logo se comprovou é que Israel era o único país do mundo em que testemunhas da defesa não podiam ser ouvidas, e onde certas testemunhas de acusação [...] não podiam ser interrogadas pela defesa” (ARENDT, 2015, p. 242).

A questão filosófica arendtiana presente no livro encaminha o leitor ao esquecimento de todas suas convicções pré-estabelecidas referentes ao holocausto, muitas delas adquiridas através do vasto e reconhecido trabalho cinematográfico mundial acerca da questão. Se torna necessário desvestir-se do véu que inconscientemente vestimos que nos faz crer na brutalidade impensável e de repetição impossível no holocausto. A Banalidade do Mal citada por Hannah Arendt encontra suas bases na forte burocratização dos meios na sociedade em crescimento e desenvolvimento alemã. Para a autora, Adolf Eichmann “não entrou para o Partido (nazista) por convicção nem jamais se deixou convencer por ele – sempre que lhe pediam para dar suas razões, repetia os mesmos clichês envergonhados sobre o Tratado de Versalhes e o desemprego” (ARENDT, 2015, p. 44), afirmando que Eichmann não era o monstro facínora pintado pela mídia internacional durante sua captura na Argentina, mas sim um membro nazista

e um cidadão alemão que havia abdicado de sua capacidade de reflexão em frente a um governo totalitário. Isto posto, as ideias defendidas por Hannah Arendt irão firmar-se na necessidade em confrontar todas as explicações conhecidas para a Solução Final com a lealdade de quase toda uma nação frente à um regime que fez a intenção e a operação de uma máquina de morte possíveis (BERGEN, 1998, p. 1-2).

Figura 11 – “Eichmann em Israel”, ilustração por Daniel Zender.

Fonte: THE NEW Yorker, 1963. Disponível: <http://www.newyorker.com/magazine/1963/02/16/eichmann-in- jerusalem-i> Acesso: 02 set. 2016.

No consciente popular mundial, acredita-se no fator inexplicável frente às atrocidades nazistas como advindas de algo maléfico que causou nos soldados e apoiadores do partido um verdadeiro prazer pelo assassinato. Até onde Arendt se faz presente, a trajetória de Eichmann acaba por conflitar com estas definições pré-estabelecidas no imaginário popular e até mesmo acadêmico, já que demonstrará como o acusado chegará ao seu alto nível de proximidade e envolvimento com o programa de genocídio através de repetidos fracassos pessoais e profissionais em sua vida ou ausência de suas capacidades de pensar e julgar (YAR, 2016). Para melhor exemplificar a forma com que a crença diante um evento histórico é conduzida em grande parte pela ideologia imposta através dos meios de comunicação e entretenimento, traz- se como amostra reconhecidos e aclamados filmes como “O Pianista” de 2002, uma co-

produção entre França, Reino Unido, Alemanha e Polônia dirigida pelo judeu Roman Polanski, que irá acompanhar as adversidades e atrocidades vividas pelo pianista judeu-polonês Wladyslaw Szpilman e sua família durante o comando nazista sob a Polônia ocupada, com grande ênfase em brutais cenas de inumanidade.

Vários são os exemplos cinematográficos que apontam as atrocidades nazistas em fim de dividir a história entre grandes vilões e todas as suas desumanidades, lembrando que “de qualquer maneira, os filmes sempre têm necessariamente uma ligação com as relações sociais, independentemente do modo como elas se dão” (VALIM, 2012, p. 284). Ainda, para Pereira (2012, p. 387), a necessidade de entretenimento nos filmes propagandísticos é suprida pela criação de vilões, promovendo o ódio ao inimigo na propaganda política, em especial nos tempos de incerteza e insegurança, servindo também para a necessidade do cinema como forma de entretenimento na divisão entre “nós” e “eles”, afastando a real interpretação arendtiana onde “eles” são “nós”, assim como “nós” podemos nos tornar “neles”.

Da Itália, em 1997, tem-se “La Vita è Bella”, que acompanha o italiano Guido e seu filho no trabalho forçado de um campo de concentração nazista. No holandês “A Espiã”, de 2006, uma cantora judia acompanha de perto as atrocidades da Gestapo enquanto se infiltra como espiã a favor da resistência holandesa. A adaptação do best-seller “A Menina que Roubava Livros”, de 2013, coprodução americana e alemã, mostra a vida da pequena Liesel, que sofre com a morte da mãe comunista e também pelas crueldades nazistas enquanto esconde um judeu no porão de sua nova casa. Outra coprodução entre Estados Unidos e Reino Unido de grande repercussão é “O Menino do Pijama Listrado” de 2008, que representa os alemães como um povo submisso diante o medo das brutalidades nazistas enquanto os membros do partido demonstrarão prazer no grande número de mortes. O soviético “Vá e Veja” de 1985 acompanha um jovem garoto da Bielorrúsia enquanto o mesmo presencia horrores intermináveis causados pelo exército nazista. Apesar de não retratar o holocausto judeu, acaba por influenciar na demonstração dos nazistas como um povo impiedoso e sanguinário. Por outro lado, em conformidade com os ideais de Hannah Arendt, o filme francês “Adeus, Meninos” de 1987 possui sua ênfase no orgulho nazista em ser um exército que é firme e sempre segue as ordens dadas pelos seus comandantes.

No julgamento de Eichmann, Arendt então conclui que, longe de exibir um ódio maléfico contra a comunidade judaica, o que poderia ter relatado sua participação entusiasta no holocausto, Eichmann era, na verdade, um indivíduo extremamente inócuo que operava de forma automática, seguia ordens de forma eficiente sem consideração pelos efeitos que as mesmas trariam em seus alvos. As dimensões humanas de suas atividades não causavam

entretenimento, ou seja, o extermínio de judeus se tornou algo indistinguível de qualquer outra atividade burocrática e dispensava Eichmann e seus parceiros da responsabilidade contida em suas ações (YAR, 2016).

Ao levar em consideração o caráter não-maléfico de Eichmann, Arendt aborda, acerca da forte burocratização do governo hitlerista, a facilidade em que alguém como Eichmann, não muito brilhante, pode cair nas mãos de um sistema governamental burocratizado, complexo e que afasta as ordens dadas das reais atrocidades que elas causam do lado oposto, distante. Em suma, para Arendt, “sua culpa provinha de sua obediência, e a obediência é louvada como virtude. Sua virtude tinha sido abusada pelos líderes nazistas. Mas ele não era membro do grupo dominante, ela era uma vítima, e só os líderes mereciam punição” (ARENDT, 2015, p. 269).

Ainda, de acordo com Perrone-Moisés (2013), Arendt não considerava Eichmann um monstro e atenta-se para as frases feitas pronunciadas em suas últimas palavras, sentenças estas que levaram Hannah Arendt a adotar a expressão “banalidade do mal”:

Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou – a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos. Apesar de concordar com a pena de morte aplicada, ela nos deixa um alerta: faz parte da própria natureza das coisas humanas que cada ato cometido e registrado pela história da humanidade fique com a humanidade como uma potencialidade muito depois da sua efetividade ter-se tornado coisa do passado. Nenhum castigo jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração de crimes. (PERRONE-MOISES, 2013)

Ainda quanto à personalidade de Eichmann como cerne da definição de “Banalidade do Mal”, Arendt afirma que sr. Hausner (procurador-geral representando o governo de Israel no julgamento) tentava de diversas maneiras julgar Eichmann como o monstro mais anormal que o mundo já vira e, ao mesmo tempo, julgar nele muitos outros como ele, até mesmo todo o movimento nazista e todo o movimento antissemita. Para a autora, ficava clara a inconsistência e a incoerência em tal discurso, uma vez que o correto e incontestável problema com Eichmann era exatamente o fato de que muitos eram como ele, ou seja, muitos não eram pervertidos ou sádicos, mas sim assustadoramente normais, normalidade esta que acaba por ser muito mais apavorante do que todas as atrocidades combinadas (ARENDT, 2015, p. 299).

De acordo com Bergen (1998, Prefácio), a guerra acadêmica e ideológica que se formou com a publicação de “Eichmann em Jerusalém” possuía um núcleo bastante claro: O direito de definir o que Arendt queria dizer ao associar as palavras “banalidade” e “mal” no contexto da maior falha moral do século: O que os nazistas chamavam de “Solução Final do problema judeu”. Ainda, para Perrone-Moisés (2013):

A expressão banalidade do mal foi outro foco de discórdia por ter sido vista como trivialização do ocorrido. Para alguns, Arendt havia traído a idéia do mal radical defendida anteriormente passando a considerá-lo apenas como banal. Ocorre que Arendt nunca abandonou a idéia do “mal radical”, mas o que presenciou em Jerusalém não se enquadrava na definição. A banalidade do mal estava ligada à incapacidade de pensar e à execução automática de tarefas do burocrata moderno. (PERRONE- MOISES, 2013)

Porém, ao ler e compreender as afirmações feitas por Arendt em seu livro e as questões filosóficas levantadas pela autora, conclui-se que banalizar o mal é também acreditar que o holocausto foi algo único, cruel e feito por insanos, como um sujo capítulo passado no livro da sociedade. A importância histórica é analisar todo o contexto e inserir o holocausto na história moderna, como forma de entender seus reais perigos na sociedade. Comprovando esta crença, Bauman afirma que se acreditava, mais por omissão do que por deliberação, que o holocausto fora “uma interrupção do curso normal da história, um câncer no corpo da sociedade moderna” e que tal crença terminava em “pintar um quadro de uma sociedade normal, sadia, deixando a história do holocausto para os patologistas profissionais” (BAUMAN, 1998, p. 10).

A polêmica situação enfrentada por Hannah Arendt após a publicação de suas interpretações acerca do caso Eichmann, com acusações quanto a sua aparente traição frente à comunidade judaica, pode ser melhor vista ao analisar que:

Morando em Berlim, no início dos anos 1930, Hannah Arendt descobriu-se judia pela segunda vez, por meio dos sionistas. Impaciente com os intelectuais, que não pareciam compreender o progressivo agravamento da situação política, por caírem nas armadilhas de suas próprias construções, ela se engajou na resistência ao regime recém-instaurado. Como indicou mais tarde, não se podia estar surpreso ou chocado com a ascensão do nazismo em 1933, apoiado grande parte do povo alemão, pois havia pelo menos quatro anos, desde as eleições para o Parlamento, que isso era uma evidência absoluta. (CORREIA, 2007, p. 21-22)

As oposições de Arendt frente ao governo hitlerista, assim como suas raízes judaicas, sempre foram claras em sua trajetória, invalidando as ávidas críticas recebidas após o julgamento de Eichmann. Como exemplo, Gideon Hausner, promotor israelense, ao afirmar em um discurso de maio de 1963, que Hannah Arendt estava, na verdade, em defesa de Adolf Eichmann, perdendo-se dos importantes levantamentos feitos da autora em sua análise do caso. Maria Syrkin, do jornal The Jewish Frontier, chegou a acusar Arendt de causar uma polêmica vulgar. Já Gertrude Ezorsky, filósofa da Universidade do Brooklyn, escreveu para o jornal New Politics indagando as afirmações de Arendt quanto ao estado psicológico de Eichmann, acusando-o de ser não a definição de “Banalidade do Mal”, mas sim um monstro em si, com urgência e necessidade de assassinato e brutalidade, em uma tentativa de desqualificar a

abrangente definição arendtiana quanto às razões e impulsos do Holocausto na sociedade (EZRA, 2007 p.144). Vale lembrar que para Hannah Arendt a importância não estava pautada no caráter de apenas um indivíduo (no caso, Eichmann), mas sim em toda a sociedade confrontada pelas ações do partido nazista.

Ainda, ao firmar a introdução da autora, ressalta-se que os pensamentos de Hannah Arendt são vistos até hoje como transgressores, que atravessam o totalitarismo, a revolução, a natureza da liberdade e as faculdades de pensamento e capacidade crítica (YAR, 2016). Apesar de suas imensas contribuições para a área filosófica, Hannah Arendt fez questão de atestar sua recusa pela condição de filósofa, preferindo a condição de teórica política após ver colegas da filosofia aderirem ao nazismo durante o governo de Adolf Hitler (CORREIA, 2007, p. 15).

Ao finalizar a abordagem quanto à teoria da Banalidade do Mal, levanta-se a atenção para os reais perigos apresentados através do Holocausto executado pelo governo totalitário de Adolf Hitler, aprendizado este que diversas vezes foi e ainda é ocultado e coberto através da ideologia midiática focada em encontrar reais vilões sanguinários para algo não tão distante como acreditado em muitos estudos, mas sim bastante próximo. Ao pensar na população alemã não como “eles” e não como grandes vilões, mas sim como seres como nós, entende-se a real importância e força do pensamento de Hannah Arendt. Não uma afronta à comunidade judaica, mas sim um problema da população mundial e uma adversidade que representa ainda hoje um perigo para quem abdica de sua capacidade de reflexão.