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3 VIDA E OBRA DE HANNAH ARENDT

3.2 ZYGMUNT BAUMAN E A MODERNIDADE

Para firmar os alicerces acerca da Banalidade do Mal de Hannah Arendt, traz-se uma análise mais profunda do trabalho de Zygmunt Bauman, em especial de seu livro “Modernidade e Holocausto” de 1989, que argumenta em conjunto com a teoria arendtiana e, além de evidenciar, também esclarece cabalmente as concepções acerca das verdadeiras conclusões do Holocausto durante o governo Nazista da Alemanha. Ambos autores “encontram seu fundamento nas reorganizações ideais da modernidade e na substituição dos precedentes recursos de reflexões normativas que constituíam a religião e a ética pelo discurso da ciência” (RABINOVITCH, 2003). Em relação ao Holocausto, Zygmunt Bauman o define como “um subproduto do impulso moderno em direção a um mundo totalmente planejado e controlado, uma vez que esse impulso deixe de ser controlado e corra à solta” (BAUMAN, 1998, p. 117)

A implicação de que os que perpetraram o Holocausto foram uma ferida ou uma doença de nossa civilização – e não seu horrendo, mas legítimo produto – resulta não apenas no conforto moral da auto absolvição, mas também na terrível ameaça do desarmamento moral e político. Tudo aconteceu “lá” – em outra época, em outro país. Quanto mais culpáveis forem “eles”, mais seguros estaremos “nós” (BAUMAN, 1998, p. 14)

Bauman, nascido na Polônia em 1925, é renomado sociólogo, catedrático emérito de Sociologia nas Universidades de Leeds e Varsóvia com diversos ensaios publicados, entre eles: Globalização: as consequências humanas (1999), Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria (2008), Em busca da política (2000), Modernidade líquida (2001) e Vidas desperdiçadas (2005). Os trabalhos do autor contribuíram para a “edificação de um complexo e completo instrumental conceitual em torno da sociedade moderna” (PORCHEDDU, 2009), além de utilizar seu conhecimento sociológico para, em concordância, somar fortes argumentos na teoria de Hannah Arendt quanto ao holocausto. Ressalta-se também que o sociólogo possui, assim como Arendt, uma vida que demonstra seus estudos, já que passou pela ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, pela militância em prol do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista (OLIVEIRA, 2016).

Assim sendo, Bauman não se aprofunda na questão antissemita, focando na análise da modernidade e nos fatores da sociedade moderna, que deram espaço para os acontecimentos vividos durante o Holocausto na Alemanha. De acordo com Rabinovitch (2003), “o que Bauman se propõe a estabelecer é a ideografia moderna que contribuiu com a realização criminosa do holocausto”.

A soma de fatores que tornou possível o holocausto redigido por nazistas na Segunda Guerra Mundial conta com a presença do antissemitismo radical, exemplificado tanto em trechos da autobiografia de Adolf Hittler quanto nas propagandas antissemitas nazistas encontradas durante a ascensão do chefe nazista ao poder, porém o objeto não pode ser avaliado como fator determinante ou único na causa dos horrores sofridos por aqueles que se encontravam nos campos de concentração ou nas miras nazistas. A transformação do antissemitismo em politicagem dentro de um forte Estado com poder centralizado, somado ao intenso e poderoso aparato burocrático nazista, são sim os fatores que devem receber a atenção necessária. Atenta-se também a não interferência, além da aceitação passiva, da população em geral (GORDON, 1984, p. 48 - 49). A então soma de todos estes fatores, leva os homens a serem capazes de “fazer coisas que sua natureza de outro modo os impediria de fazer” (BAUMAN, 1998, p. 119).

Em conta da burocratização nazista, Bauman afirma:

O processo civilizador teve êxito em substituir os impulsos naturais por padrões artificiais e flexíveis da conduta humana e, portanto, tornou possível uma escala de desumanidade e destruição que foi inconcebível enquanto as predisposições naturais guiaram a ação humana (BAUMAN, 1998, p. 119)

Ainda quanto à burocratização nazista e tendo em mente a autobiografia de Hitler, lembra-se que, independente da já comprovadamente fértil mente de Adolf Hitler, poucos de seus planos teriam se concretizado caso não fossem assumidos pelo grandioso e racional aparelho burocrático, traduzindo-os em termos de processo e rotina para solução de problemas. Em suma, o que a burocracia precisava era de uma definição para sua tarefa, definição esta encontrada e alimentada durante o governo nazista (BAUMAN, 1998, p. 130).

Na visão de Bauman, para a burocratização surtir o efeito facilmente demonstrado durante o Holocausto, necessita-se de um projeto de desumanização, utilizado fortemente pelo partido nazista na Alemanha. Para a desumanização do objeto burocrático, visa-se o distanciamento do objeto a um conjunto de medidas quantitativas, ação confirmada ao destacar- se que toda a operação do Holocausto foi gerenciada pelo departamento financeiro alemão

Reichsicherheithauptamt. Por fim, ao ligar a questão do Holocausto à questão numérica, os

soldados passam a atirar em alvos, que caem quando são atingidos, e não seres humanos, que perdem suas vidas ao serem submetidos aos tiros ou câmaras de gás nazistas, permitindo aos apoiadores e aos soldados nazistas a isenção do peso moral de suas ações, onde servir o partido com lealdade e atingir suas metas transforma-se em uma consciência individual e moral intacta (BAUMAN, 1998, p. 127-128)

Ressalta-se que “a maioria dos que executaram o genocídio eram pessoas normais, que passariam facilmente em qualquer peneira psiquiátrica conhecida” (BAUMAN, 1998, p. 39), o que acaba por refutar a crença de que todo e cada alemão participante do Holocausto judeu é passivo de psicopatia ou sadismo extremo. Encontra-se então a grande questão acerca do genocídio judeu durante a Segunda Guerra Mundial, que se dá na compreensão e análise dos meios burocráticos das instituições nazistas durante o regime totalitário de Adolf Hitler e a forma com que tamanha burocratização consumou o Holocausto de cerca de seis milhões de judeus. Como exemplo dos meios burocráticos do regime, encontra-se a “exigência para obedecer a ordens superiores acima de quaisquer outros estímulos à nação, para colocar a devoção ao bem-estar da organização” (BAUMAN, 1998, p. 41).

Os assassinos nazistas, portanto, cometiam seus crimes de maneira mecânica e monótona, sem o estímulo de emoções humanas e muito menos ódio. As vítimas foram mortas por não se encaixarem no novo plano de sociedade perfeita do governo e suas mortes não foram um trabalho de destruição, mas sim de criação de uma sociedade idealizada e alimentada durante o Terceiro Reich e dada como única alternativa para fuga dos males que assolavam a população (BAUMAN, 1998, p. 116).

Quando se trata da questão de entretenimento, forte após o fim da Segunda Guerra Mundial e fortemente interessada em representar suas ideologias através da recontagem da história, Bauman também afirma o caráter pouco histórico e majoritariamente ideológico presente nestes meios. Como exemplo apresentado pelo autor, tem-se a telenovela americana “Holocausto”, que mostrou:

Doutores bem-educados e suas famílias (exatamente como os vizinhos do leitor no Brooklyn), dignos, honrados e de moral ilibada, sendo levados para a câmara de gás pelos nazistas degenerados e revoltantes com a ajuda de camponeses eslavos incultos e sedentos de sangue (...) os mortos judeus eram absolutamente bons, os nazistas e seus colaboradores, absolutamente maus (BAUMAN, 1998, p. 12)

Ao aplicar a lente cinematográfica para enxergar o Holocausto, entende-se que as tentativas nazistas em transformar o antissemitismo em espetáculo que conquiste as massas muitas vezes foi “incompetente e falho” (BAUMAN, 1998, p. 51) e o antissemitismo está presente há milênios na sociedade, confirmando que o antissemitismo “não pode ser responsabilizado pela singularidade do Holocausto” (BAUMAN, 1998, p. 52). Observando os filmes de propaganda antissemita nazistas, identifica-se que apenas o longa “Judeu Süss” de 1940 recebeu boa atenção do público, sendo assistido por cerca de 19 milhões de espectadores na Europa ocupada, porém, o grande número de espectadores não consegue ser fator determinante na análise de impacto do antissemitismo embutido nas cenas do filme. Ao serem indagados sobre a ligação entre os crimes de guerra e as mensagens disseminadas em filmes como “Judeu Süss”, os Tribunais de Nuremberg falharam em obter uma resposta clara e, adicionado a isto, surgem os relatos de pessoas envolvidas neste tipo de filme que afirmam os efeitos mínimos do tipo de produção, declarando que os efeitos de trabalhos dramáticos são apenas isto – trabalhos de imaginação humana (PEREIRA, 2012, p. 427).

À vista do sucesso de bilheteria de “Judeu Süss”, outros filmes foram idealizados e filmados com a intenção ideológica do governo nazista em disseminar suas ideias entre a população, porém, como lembra Pereira (2012, p. 439), estes filmes não obtiveram o sucesso esperado e foram, na realidade, recusados pelo espectador comum com números que

despencavam rapidamente após as primeiras exibições nos cinemas. De acordo com o autor, apenas os militantes nazistas e os espectadores politicamente interessados apreciaram tais trabalhos, entre eles o filme “O Judeu Eterno” de 1940, um “documentário educacional sobre os problemas do judaísmo internacional” (PEREIRA, 2012, p. 428)

Já tendo debatido quanto às aplicações de Hannah Arendt e Zygmunt Bauman, entende- se que, por mais impactante que seja, não se deseja tirar o triste perfil das vítimas do holocausto, pertencentes à comunidade judaica ou não, mas sim abranger o pensamento quanto a demonização nazista frente ao aparato burocrático de um governo totalitário.

Outro ponto debatido por Bauman é a separação do Holocausto frente à história da sociedade. Para o autor, as obras acadêmicas especializadas na história do Holocausto continuam sempre crescendo e se aprimorando, porém o mesmo não acontece com a atenção que o mesmo recebe em textos gerais de história moderna (BAUMAN, 1998, p. 13). Na verdade, “o Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura” (BAUMAN, 1998, p. 12)

Outro ponto abordado tanto por Bauman quanto por Hannah Arendt é o papel da ciência e de sua modernização durante a Segunda Guerra Mundial. De acordo com Bauman, o lema da ciência desde os primórdios se dá pela “emancipação da razão face às emoções, da racionalidade ante as pressões normativas e da eficiência em relação à ética” (BAUMAN, 1998, p. 133).

Em suma, Bauman confirma as filosofias e ideias de Hannah Arendt e também direciona seu trabalho para a preocupação com que o objeto é tratado não apenas pela indústria de entretenimento com ideologia estatal, mas também pela forma com que é visto pela população em geral e pela comunidade acadêmica. O autor lembra também que o Holocausto apresenta claros ensinamentos e claras informações quanto a sociedade em que vivemos, além de afirmar que o evento foi, na verdade, um choque advindo da negligência em frente as tensões trazidas pela modernidade (BAUMAN, 1998, p. 16), ainda assim, “mesmo que seu choque tenha sido único e exigisse uma rara combinação de circunstâncias, os fatores que se reuniram nesse encontro eram, e ainda são, onipresentes e “normais” (BAUMAN, 1998, p. 16).