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3.2 O Paradigma da Complexidade

3.2.1 A Biologia da Cognição e a Teoria da Autopoiesis

A Biologia da Cognição, como se denomina o conjunto da obra de Humberto Maturana sobre o viver, orienta de outro modo nossa compreensão dos sistemas vivos (ARAGÃO, 2005, p. 104). Podendo ser denominada também ―Biologia do Conhecer‖, ou ―Biologia do Amor‖ (ARAGÃO, 2005; SILVA, 2018; COSTA et al., 2020b), de acordo com o escopo do debate e a abordagem teórico-conceitual estruturada, a Biologia da Cognição é, em suma, a proposição de explicações complexas sobre a ―cognição como fenômeno biológico‖ (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 44). É, pois, um mecanismo explicativo dos sistemas vivos, ―tratados como seres em constante transformação no viver e em permanente

acoplamento estrutural com o meio‖ (ARAGÃO, 2005, p. 104). Nas palavras de Maturana: Esto significa que como sistemas determinados por estructura, nosotros, los seres humanos, estamos constituidos de tal modo que nada externo que nos afecte puede especificar lo que nos sucede, y que los agentes externos que nos afectan sólo nos pueden gatillar cambios estructurales determinados en nosotros (MATURANA, 2014, p. 39).

Nesse sentido, a vida de cada humano é uma história de suas interações organismo-meio (PELLANDA; BOETTCHER, 2017).

O meio, como já vimos várias vezes, não determina o que acontece mas dispara mudanças que estão determinadas estruturalmente. Essa história é a própria ontogenia do sujeito que, para a perspectiva que estamos estudando é inseparável da cognição que, por sua vez, se expressa em condutas adequadas (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 44).

Essa ―conduta adequada‖, na obra do biólogo chileno (MATURANA, 2001; 2014), seria a conduta que é congruente com as circunstâncias nas quais ela se realiza. A conduta é algo que se vê, ela é a mudança de estado de um organismo em seu meio; ela é vista por um observador, esse sujeito ativo que enxerga e descreve essas mudanças de estado do organismo em seu meio como conduta (PELLANDA; BOETTCHER, 2017).

Recentemente, a seara da LA tem repensado seus horizontes epistemológicos, sobretudo no que tange ao caleidoscópio sistêmico de variáveis envolvidas nos complexos processos de aquisição, ensino e/ou aprendizagem de línguas e linguagens, em sala de aula ou fora dela (ARAGÃO, 2005; LEFFA, 2009; COSTA et al., 2020b). É visível o sentimento de renovação da LA que se abre à tecitura conjunta de saberes em alinhamento com a perspectiva da Biologia da Cognição (SILVA, 2018; COSTA et al., 2020b), cujo modelo nos leva a:

a) compreender cognição e linguagem como atividades mutuamente imbricadas, realizadas por agentes que co-constroem e coordenam ações de maneira recursiva em domínios consensuais operacionais e contextos relacionais, os quais envolvem a distinção de objetos e relações entre objetos, a distinção de si mesmo (autoconsciência) e de outras pessoas na convivência; b) dirigir nosso foco de observação para a dinâmica operacional histórica, situada e relacional de fenômenos distintos em reciprocidade, mútua constituição, afetação recíproca, sem colapsá-las e sobrepô-las; c) em conformidade com isso, apontar a reciprocidade de dois domínios não intersectantes e não redutíveis – a fisiologia e o comportamento; d) entender que é o aluno, e não o meio, que especifica em suas interações o que pode ser ensinado/ aprendido/compreendido: cognição e comunicação não dependem ―daquilo que se entrega‖, mas do que ocorre com aquele ou aquela que comumente se diz que ―recebe‖ [...] (ARAGÃO, 2005, p. 104-105).

Conforme registrado em Costa et al. (2020b), nesses apontamentos de Aragão (2005), é possível notar interpretações complexas sobre concepções (como ―língua‖ e ―linguagem‖) e processos (como ―ensino‖ e ―aprendizagem‖). Ou seja, tais concepções e processos contam

com as características próprias de um SAC, na mesma linha do que já apontam autores como Paiva (2005a) e Leffa (2009) em seus estudos. Para exemplificar, Aragão (2005) registra que:

aprender uma língua estrangeira significa, sobretudo, estar disposto a conviver com outros numa rede de conversações, num linguajar constituído numa lógica processual, numa racionalidade e numa emoção distintas, com as quais estamos acostumados a conviver no nosso cotidiano (ARAGÃO, 2005, p. 106).

Concordo com as ideias de Aragão (2005) no que tange aos processos de aprender e de se auto-trans-formar na docência, sobretudo por estar subjacente a esses processos uma noção complexa de ―conhecer‖, ou de ―cognição-subjetivação‖ (COSTA et al., 2020b). Lembrando mais uma vez o que nos ensina a Biologia da Cognição, entendo que conhecer é viver, bem como viver é o conhecer, no sentido de que a cognição-subjetivação está atrelada à atividade de um sujeito escaneando seu ambiente e dando a ele respostas efetivas engendradas por ele mesmo (MATURANA; VARELA, 1998; 2001). Essas respostas – esse complexo ato de interação e acoplamento com o ambiente – nos leva ao constante ajustar-se, ou auto-regular-se. Por isso, no cerne da Biologia da Cognição está o conceito organizador de

autopoiesis, que explica o funcionamento dos seres vivos como máquinas que se produzem a

si mesmos ao operar (MATURANA; VARELA, 1998; 2001; MARIOTTI, 2002; PELLANDA, 2009; PELLANDA; BOETTCHER; PINTO, 2017b).

Autopoiesis é um conceito criado por Maturana e Varela (1998; 2001) para dar conta do

fenômeno do viver, para explicar fenômenos moleculares, o operar em organismos moleculares. Os humanos vivem essa mesma dinâmica molecular (PELLANDA et al., 2017).

A referida expressão é de origem grega e, segundo Mariotti (2002, p. 71), apareceu pela primeira vez na literatura internacional em 1974, num artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe. Autopoiesis, em suma, significa: auto – por si e poiése – produção, ―o que implica pensar que o viver sucede autoprodutivamente nos organismos vivos‖ (PELLANDA et al., 2017, p. 140). Segundo Pellanda e Demoly (2014):

Autopoiesis refere-se à dinâmica circular autoprodutiva dos organismos vivos, diferenciando-os dos não-vivos. A vida se mantém pela dinâmica autopoiética e pela congruência ao meio; a perda de uma ou outra pode levar a processos destrutivos (PELLANDA; DEMOLY, 2014, p. 75).

Nesse sentido, é bastante coerente que o primeiro postulado da Teoria da Autopoiesis seja justamente o aforismo ―aprender é viver‖ (OLIVEIRA, 2017, p. 88), enunciado por Maturana e Varela pela primeira vez no ano de 1972, na obra De máquinas y seres vivos

(1998)19.

Uma das imagens mais icônicas quanto à ilustração do conceito de autopoiesis (Imagem 3) é a arte Drawing Hands (ou ―Mãos que Desenham‖), que figura em obras como A Árvore

do Conhecimento (MATURANA; VARELA, 2001).

Imagem 3 – Drawing Hands, de M. C. Escher

Fonte: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10742/10742_3.PDF>. Acesso em: 21 jul. 2019.

Produzida em janeiro de 1948, a litografia de Maurits Cornelis Escher (1898-1972),

artista gráfico holandês, apresenta uma folha de papel da qual emergem duas mãos que, frente a frente, produzem-se mutuamente. As mãos simbolizam o paradoxal ato de se desenhar e, nesse viés, autoproduzir-se, a partir do contexto, razão pela qual a obra serve como ilustração do processo de autopoiesis. Todavia, é possível ir além às interpretações: com base em Maturana e Varela (2001, p. 30), é possível refletir, a partir da arte, sobre a esquiva de ―conhecer como se conhece‖, tão arraigada à cultura ocidental, ―centrada na ação e não na reflexão, de modo que nossa vida pessoal é cega para si mesma‖.

Nessa mesma linha de pensamento, destaco: a Teoria da Autopoiesis é empregada, na presente tese, de modo a metaforizar ao menos dois aspectos que me parecem mais notórios da formação docente. O primeiro deles é a própria auto-constituição do meu ―eu‖ e da minha ―experiência de pesquisar‖. Se, por um lado, a imagem me provoca essa sensação vertiginosa oriunda da circularidade resultante da utilização do instrumento de pesquisa para pesquisar o

19 O segundo postulado da teoria, também muito caro para a presente tese, é o seguinte: tudo o que é dito, é dito por um observador (MATURANA; VARELA, 1998).

próprio instrumento de pesquisa (MATURANA; VARELA, 2001), por outro lado, ela também me permite interpretar a mim como meu próprio autor e produtor, no fluxo do viver. Eu me autoconstituo nesse processo ontoepistemogênico que, na perspectiva autopoiética, nos força ―a pensar em termos de autoconstrução como inseparável dos processos de fluxo vital e imbricamento contínuo do ser‖ (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 30). O segundo aspecto metaforizado a partir da Teoria da Autopoiésis é a autoconstituição do humano, corroborada pela contraposição estabelecida entre sistemas autopoiéticos e sistemas alopoiéticas. Nas palavras de Maturana e Varela:

Una máquina autopoiética es una máquina organizada como un sistema de procesos de producción de componentes concatenados de tal manera que producen componentes que: i) generan los procesos (relaciones) de producción que los producen a través de sus continuas interacciones y transformaciones, y ii) constituyen a la máquina como una unidad en el espacio físico. Por consiguiente, una máquina autopoiética continuamente especifica y produce su propia organización a través de la producción de sus componentes, bajo condiciones de continua perturbación y compensación de esas perturbaciones (producción de componentes) (MATURANA; VARELA, 1998, p. 69).

Pellanda et al. (2017) observam que o conceito organizador de autopoiesis, na Biologia da Cognição, explica o funcionamento dos seres vivos como máquinas que se produzem a si mesmos ao operar (MATURANA; VARELA, 1998; 2001). Os biólogos chilenos denominam tais máquinas de autopoiéticas porque seu produto não é diferente dos próprios seres vivos. ―Em contraposição a este tipo de máquina eles denominaram de alopoiéticas aquelas cujo produto é diferente da própria máquina como, por exemplo, uma máquina de Coca-Cola, que produz um produto que não é a própria máquina‖ (PELLANDA et al., 2017, p. 132).

Busco subsídios da Teoria da Autopoiésis para pensar o autonarrar-se como experiência autopoiética, isto é, experiência imbricada em um processo de autoconstitução. Quando o humano narra, ele organiza os sentidos, o que foi vivido (fisicamente ou no plano da subjetivação), e, portanto, se transforma. Ou seja: nos complexificamos e constituímos também quando escrevemos ―sobre‖ e ―para‖ nós, por nos repensarmos e ressignificarmos (COSTA; PICCININ, 2020, p. 247).