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Nesta seção, apresento três justificativas para a proposição e a confecção desta tese, levando em consideração inúmeras questões de ordens sociais, políticas e epistemológicas no cenário educacional brasileiro.

A primeira justificativa diz respeito ao olhar que temos lançado, enquanto educadores e pesquisadores, sobre a modalidade EaD, a qual mais cresce no Brasil e no mundo hoje (COSTA et al., 2020b). Esse crescimento, contudo, não deve ser visto apenas por um viés quantitativo, ou por um viés que observe apenas as transformações reverberadas por esse crescimento, que é indissociável do advento da internet e das novas tecnologias-epistemologias digitais e em rede. Tudo isso leva a EaD a um patamar de ampliação de possibilidades de ensino e de aprendizagem (FIALHO, 2011).

Em outras palavras: a EaD não deve ser vista, no séc. XXI, como mera modernização da educação a distância de outrora (refiro-me ao ensino via rádio ou via correspondência, por exemplo). A EaD precisa ser interpretada como uma modalidade da qual emergem inúmeras ressignificações do tempo e do espaço, e, por conseguinte, das formas de ser e estar no mundo, o que indiretamente implica ressignificações do que entendemos por ―aprender‖ e ―ensinar‖, tais quais as ressignificações que Pierre Lévy (2010c) entende como inerentes à

sociedade conectada na qual estamos inseridos; essa modalidade se caracteriza por ser uma constante imersão do ser humano no intrínseco e complexo emaranhado de: 1) recursos tecnológicos e de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs); e de 2) epistemologias emergentes, novos paradigmas científicos e novas formas de compreender o espaço-tempo, a(s) interatividade(s) e a inteligência coletiva (LÉVY, 2010a). Essas emergências nos apontam para um caminho irrecusável de autoavaliação e reflexão sobre a EaD enquanto

lócus e conjunto de possibilidades de formação de educadores na cibercultura.

Nesse mesmo sentido, a UAB, consórcio de instituições públicas de Ensino Superior, criado para assegurar aos brasileiros maior acesso a este nível educacional, cresceu e se consolidou de forma significativa nos últimos anos, com novas ofertas em diferentes cidades de todo o território nacional (FIALHO, 2011). Tal consórcio busca ampliar e interiorizar a oferta de cursos e programas de Educação Superior, por meio da EaD, a dirigentes, gestores, docentes e demais profissionais da educação. Contemplando esse cenário de ações de promoção de formação docente na EaD, cabe questionar: essa formação docente seria a mesma que aquela concebida com a ―educação presencial‖ enquanto paradigma vigente, e meramente transportada para uma educação não-presencial? Ou precisamos estar sensíveis às especificidades da formação de educadores na referida modalidade e em ambientes virtuais, cujas características e potencialidades são distintas do ensino presencial em múltiplas dimensões?

Defendo que a formação docente da EaD não pode ser vislumbrada a partir de inteligibilidades produzidas academicamente e pensadas apenas para o ensino presencial e para uma sociedade de outrora, não tão vinculada às tecnologias digitais e em rede. É necessário pensar a formação docente na EaD a partir de reformulações e proposições de arcabouços teóricos complexos, rizomáticos, sensíveis ao humano e às acepções de ―aprender‖ como conhecer-viver no ciberespaço e em ambientes virtuais.

Corrobora essa primeira justificativa o atual contexto social do Brasil e do mundo, no ano de 2020, fortemente afetado pela atual pandemia em função do novo Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19). Essa pandemia levou professores de todos os países a reconfigurações e a adaptações significativas de suas práticas de ensino e de aprendizagem no ciberespaço, quando possível (a considerar a notória desigualdade social do país e a falta de infraestrutura de muitas famílias para o estudo online).

O cenário atual de isolamento social e de implementação de práticas de ensino remoto evidenciam, por um lado, a importância de políticas públicas de popularização de tecnologias e de recursos digitais fundamentais para a comunicação e a educação online; e, por outro, a

urgência de programas e ações de formação continuada e capacitação docente para o uso dessas tecnologias nos processos educacionais. Como exemplo disso, podemos voltar nossa atenção à modalidade EaD, que, de fato, não é o mesmo que ensino remoto, mas que, por caracterizar-se como uma modalidade fortemente atrelada ao uso de inúmeras tecnologias digitais em rede, propicia um possível olhar mais crítico quanto à tecnologia na educação.

A EaD conta com uma metodologia própria de funcionamento, cargos específicos e todo um respaldo de ampla documentação elaborada ao longo de décadas de trabalho sério e comprometido com a modalidade. O ensino remoto não conta com isso; ele é, em poucas palavras, um conjunto de práticas contingenciais implementadas de modo forçoso e em um tempo tão exíguo que pouco permitiu reflexões ou interpretações mais profundas por parte dos docentes sobre o que fazer e como. Não digo, evidentemente, que alguém poderia prever a situação vivida ao longo do ano de 2020, nem mesmo os professores com vasta experiência em EaD; no entanto, arrisco-me a defender que, por sua familiaridade com as tecnologias digitais e com outras metodologias de ensino, em rede, o professor da EaD talvez tenha passado por uma transição para o ensino remoto menos traumática.

A segunda justificativa para a proposição deste estudo diz respeito às preocupações atuais do GAIA: a urgência de pensar o indivíduo como complexo, a partir de abordagens teórico-metodológicas em consonância com a perspectiva da Complexidade. Quanto a isso, conforme já explicitado em linhas prévias, ao GAIA interessa o estudo da ontoepistemogênese, abordagem focada no fluxo do viver-conhecer do humano em seu constante processo de auto-trans-formação – neste caso, particularmente, o enfoque recai sobre a ontoepistemogênese na EaD. Sendo o acoplamento com o meio de grande importância para o estudo dos processos cognitivos-subjetivos, e considerando ainda que esse acoplamento perpassa o acoplamento tecnológico, mostra-se necessário tal estudo na EaD, notoriamente afetada pelas tecnologias e pelas ressonâncias entre o virtual e a cognição-subjetivação. Assim, entendo como uma justificativa mais pontual para a presente pesquisa a própria constatação do GAIA, a partir de investigações anteriores (PELLANDA et al., 2017; OLIVEIRA, 2017), da necessidade de cartografar, em uma perspectiva complexa, o redesenho das práticas pedagógicas de professores quanto às tecnologias digitais sob o prisma desse princípio operador de cognição-subjetivação que integra o conhecer e o viver do humano à luz do Pensamento Complexo.

Uma terceira e última justificativa para esta pesquisa é concernente às narrativas enquanto instrumento de subjetivação-cognição humana e, consequentemente, enquanto técnica de invenção de si, através das significações que podem levar a autocontituições

recursivas. Tais narrativas (que são, de forma equipotente, autonarrativas) estão sempre conectadas à sociedade na qual são produzidas: elas são próprias do tempo-espaço em que se situam e com o qual se correlacionam.

As autonarrativas orais anteriores à invenção da escrita, por exemplo, contam com elementos e arranjos diferentes daquelas narrativas registradas em papiro. A invenção da imprensa é um marco na modificação das formas de narrar de antes e de depois do século XV. No último século, a popularização dos relatórios de estágio supervisionado nos cursos de licenciatura, pela escrita de si e de suas práxis, implicou mudanças epistemológicas e pedagógicas nos cursos de formação docente. Além disso, o advento e a popularização das

selfies nos últimos anos, com o auxílio de smartphones e tablets, redesenhou as formas de

autonarrar-se e marcar-se nas narrativas. Todos esses exemplos levam a indagações sobre o que pensamos ser ―narrar-se‖ na atualidade e, mais especificamente, no fazer científico hoje.

Valendo-me de investigações do GAIA uma vez mais, enfatizo a necessidade de mais debate sobre a potência das autonarrativas enquanto método de pesquisa (VIÇOSA et al., 2019) que dá conta ―de nossas próprias operações ao operar sobre a realidade‖ (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 63). Nessa mesma direção, concordo com Oliveira (2017, p. 99): ―As narrativas biográficas são especialmente importantes no âmbito da educação, já que elas condensam significações atribuídas ao longo da vida e nem sempre consciencializadas‖. A partir disso, vou além ao indagar: de que formas e meios tais autonarrativas estão sendo produzidas e compartilhadas na atual cibercultura? Quais as reverberações desses modos e meios em nós e no nosso fazer científico e educacional?

No GAIA, ao adotarmos as autonarrativas como instrumentos metodológicos complexos que permitem e facilitam essa tarefa de pensar sobre nossos processos e nossas reconfigurações (PELLANDA; BOETTCHER, 2017), assumimos, com isso, um compromisso de estudo e vigilância constante do próprio método em si. Espero, então, que esta tese contribua com a reflexão sobre as autonarrativas como instrumento de uma cartografia complexa da ontoepistemogênese na EaD, ou como metodologia que incorpora tanto ―o subjetivo e a experiência‖ no devir humano quanto ―uma pedagogia voltada para a invenção de si e do mundo‖ (GUSTSACK; PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 24).