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5.2 Operadores/marcadores teóricos, padrões e recorrências

5.2.1 O acoplamento tecnológico

Viver é uma ação efetiva42, que implica em invenção de saberes-acontecimentos-devires, e essa invenção ―é emergência dos acoplamentos humanos em seus devires consigo mesmos e com o meio de forma dinâmica e criadora‖ (GUSTSACK; PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 21). Para explicar esse fenômeno, há o conceito de acoplamento estrutural, que remete a um conjunto de mudanças que o meio possibilita na estrutura cognitiva de um organismo, e que esse mesmo organismo possibilita no meio, em uma relação recursiva.

Essa noção de acoplamento estrutural é resgatada por nós, pesquisadores do GAIA, de leituras que remetem a von Foerster (2003) e Maturana e Varela (1998; 2001). Em comum, tais pensadores têm uma vertente epistemológica complexa que possibilita pensar o viver sempre como constante invenção de conhecimento-realidade-sujeito, de forma inseparável.

42 Ou seja, ―uma efetividade operacional no domínio de existência do ser vivo‖ (MATURANA; VARELA, 2001, p. 35).

―Essa construção é resultado de experiência do sujeito em seu acoplamento com o meio de forma dinâmica e criadora‖ (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 38), e é a esse fenômeno que chamamos ―acoplamento estrutural‖.

O acoplamento estrutural sempre nos transforma e essa transformação se dá anatômica, fisiológica e subjetivamente devido à plasticidade de nosso sistema nervoso e psíquico. A dimensão rede do funcionamento dos seres vivos nos mostra o papel das conexões em seu desenvolvimento. A vida tem como modelo a rede que está presente não somente no nível relacional com o mundo externo, mas, também, internamente com as redes de conexões orgânicas (GUSTSACK; PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 38).

Chagas (2019), ao abordar essa noção de acoplamento, adverte que os avanços na produção de tecnologias cada vez mais intuitivas têm proporcionado mudanças significativas nos grupos sociais. Consequentemente, não dá para retroceder esse movimento de um mundo mais conectado, de menos distâncias nos modos de comunicação e, principalmente, de inúmeras alternativas para se pensar a educação (CHAGAS, 2019). Em outras palavras: nossa educação, acompanhando a tendência da cibercultura, caminha rumo às conexões e às interações múltiplas, cada vez mais rizomáticas, entre humanos-tecnologias-aprendizagens.

Com tudo o que foi registrado até aqui, é possível correlacionar o acoplamento estrutural com a nova cultura de uma sociedade informatizada, que passou por uma inegável mutação antropológica e que, por isso mesmo, mudou as condições de acoplamento estrutural sujeito-meio (PELLANDA; BOETTCHER, 2017).

Temos que nos habituar a pensar a cognição e a realidade a partir do acoplamento estrutural que se dá hoje sobre novos suportes e novos sujeitos. Portanto, esse acoplamento pode se dar com pessoas, coisas, máquinas ou natureza (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 51).

Nesse sentido, o ―acoplamento tecnológico‖ (ver PELLANDA et al., 2017; PELLANDA; BOETTCHER, 2017; LIMBERGER et al., 2017) é um conceito inspirado pelo acoplamento estrutural. O acoplamento tecnológico, no âmbito educacional (seja ele escolar, universitário, formal ou não formal etc.), pode operar na integração da realidade técnica à cultura social, fundando uma educação mais complexa, inserindo, assim, a tecnologia em suas dimensões social, política e pedagógica (CHAGAS, 2019).

Considerando essa concepção de acoplamento tecnológico, passo às autonarrativas, que apontaram para as experiências das professoras participantes da pesquisa com relação às tecnologias, principalmente no curso de licenciatura em Letras EaD. Muito possivelmente essa correlação se dá por tal modalidade, a EaD, ser fortemente balizada pelas tecnologias educacionais digitais, e por propiciar nos acadêmicos ruídos e perturbações que

complexificam o próprio acoplamento tecnológico. Exemplo disso é o trecho a seguir da autonarrativa da professora CS:

―Percebi no decorrer do curso que é fundamental para um professor manter-se atualizado nas diversas áreas do conhecimento e para isso é inevitável estar em contato com a tecnologia43‖ (Professora CS, #144

).

Para a professora CS, então, o ―contato com a tecnologia‖ – uma forma de conceber o acoplamento tecnológico – leva ela à atualização constante, o que parece aludir a uma noção de contínua reinvenção do indivíduo. Esse trecho de autonarrativa pode ser lido sobre a égide da concepção freireana de inacabamento do docente, na medida em que o acoplamento com o mundo está atrelado ao acoplamento tecnológico, reverberando num fenômeno de mudança mútua. A frase ―Se mudo o mundo muda‖, de Leffa (2009) também sumariza essa ideia.

Em outros casos, uma maior consciência de si e de seus entendimentos sobre as tecnologias é o que motivou o próprio ingresso no curso de extensão ofertado via projeto interinstitucional (UNISC-UFSM), conforme pode ser visto na autonarrativa a seguir, escrita na primeira semana do curso:

―O meu interesse pelo curso vem de acreditar que posso e devo usar melhor os recursos tecnológicos em minhas aulas, mas de entender que não sei bem como fazê-lo. Acredito que o primeiro passo seja discutir e estudar o assunto como fazemos aqui, por isso estou muito feliz em participar desta formação‖ (Professora NC, #1). Essa ideia de um aprimoramento de si, no sentido de buscar participar de cursos e espaços de compartilhamento, diálogo e autorreflexão, sugerem uma percepção de aprendizagem contínua, inacabamento contínuo e auto-trans-formação em devir da professora NC. Não só dela, mas das demais participantes que registram em suas autonarrativas um interesse pelo estabelecimento de diálogos para fins de olhares mais complexos sobre a tecnologia. Entendo que esse olhar mais complexo não começa no (muito menos termina com o) curso online, mas se insere dentro de um percurso maior, um sistema complexo mais amplo, que é o próprio viver de cada indivíduo. Prova disso está no seguinte trecho da autonarrativa da professora GA, que remete ao seu primeiro contato com o computador, ainda na infância:

―Quando eu tinha aproximadamente nove anos de idade um dos ambientes da minha residência ganhou um novo aspecto, uma nova dimensão. Lembro exatamente

43 Este e os demais grifos nos trechos das autonarrativas são empregados por mim para sinalizar aos leitores o motivo para tal excerto ter sido selecionado em minha pesquisa, para a reflexão sobre determinados tópicos. 44 A partir daqui, quando apresento diretamente um trecho ou fragmento de autonarrativa de cada professora, uso o seguinte código ilustrativo: ―Professora GA, #3‖, por exemplo. Tal etiqueta indica que se trata da terceira autonarrativa (#3, ou: referente à semana n° 3 do curso) produzida pela Professora GA. Neste caso, ―Professora CS, #1‖ é indicativo da autonarrativa n° 1 (da primeira semana do curso) da Professora CS.

daquele dia, quando o meu pai chegou com um computador amarelo, composto de uma caixa bem grande chamada CPU, um microfone, uma tela enorme e uma impressora gigante que não funcionava e ocupava quase metade do corredor onde foram instalados‖ (Professora GA, #1).

Para a professora GA, muitos anos atrás, conhecer o computador, essa tecnologia em ascensão à época, significou um acesso a uma ―nova dimensão‖, uma expansão de seus horizontes. Esse exemplo me parece remeter à ilustração apresentada por Lévy, em sua obra

Semantic Sphere I. Computation, cognition, and information economy (2011b) sobre a

conexão humano-tecnologia e a radical transformação dos processos cognitivos do indivíduo nesse acoplamento. Registra Lévy (2011b): ―Eu descobri que o computador não era apenas um instrumento, ele era sobretudo uma tecnologia intelectual cuja utilização metamorfoseava os processos cognitivos‖45

.

Ademais, não só o computador serve ao acoplamento tecnológico. Não tenho dúvidas de que outras tecnologias e técnicas e conexões (humanas ou não) poderão levar a professora GA, no futuro, a novas dimensões, pois essa é uma das formas de compreender a própria vida sob o prisma da Biologia da Cognição. Nas palavras de Limberger et al. (2017, p. 187), ―o fluxo do viver é dinâmico e caracterizado por perturbações, que perturbam e são perturbadas, num círculo ascendente de interações‖, não só, mas também, pelas muitas tecnologias.

Cumpre reiterar que o curso proposto e implementado, bem como a cartografia complexa enquanto método de estudo desse curso, não dá conta de analisar formalmente e quantitativamente o grau de conhecimento sobre as tecnologias das participantes, tampouco um dito ―nível de desenvolvimento‖ de acoplamento tecnológico. Em primeiro lugar, essa sequer é uma pretensão por trás da proposta do curso; em segundo lugar, o acoplamento tecnológico não pode ser medido ou verificado de forma cartesiana, por seu viés complexo, por ser pautado na relação humano-tecnologia, que é complexa no sentido de estar em constante dinamismo. Sobre essa questão, destaco a autonarrativa a seguir:

―É necessário muitas vezes ter a ousadia de explorar as TICs, que estão disponíveis no cotidiano do ensino e da aprendizagem. E essa ousadia pode chegar aos professores nos mais diferentes momentos de sua vida pessoal e/ou profissional. Ninguém é dono do saber, este é adquirido na prática de atividades inerentes aos procedimentos de ensino, e, assim, podemos adquirir na prática letramentos digitais ou conhecimentos fundamentais para o uso de tecnologias no processo de mediação de aprendizagem‖ (Professora LC, #4).

Desse fragmento de autonarrativa, extraio 3 ideias principais: 1) O acoplamento tecnológico é próprio e inerente a cada indivíduo. O que a professora LC entende como

45 Tradução minha para ―I discovered that the computer was not ―just a tool‖: it was above all an intellectual technology whose use transformed cognitive processes‖ (LÉVY, 2011b, p. 6).

―ousadia‖, interpreto como ―autonomia‖, isto é, aquilo que é próprio do indivíduo e tem relação com suas escolhas, motivações, atitudes e entendimentos da vida e do mundo. 2) A autonomia (ou ―ousadia‖) de cada professor pode efetivar-se em qualquer momento ―de sua vida pessoal e/ou profissional‖ (entendo as duas como inseparáveis, mas manterei as palavras da professora LC). Ou seja, os ruídos, as perturbações que podem efetivar o acoplamento tecnológico (esse movimento de interação e feedback constante com o meio e com as tecnologias, que a professora LC pode conceber como desenvolvimento de ―letramentos digitais‖, ou ―conhecimentos fundamentais para o uso de tecnologias‖) não estão apenas neste curso online, nem há garantia que se efetivem enquanto ele ocorre, por ser esse operador teórico inerente a cada indivíduo e sua prática; assim sendo, 3) o acoplamento tecnológico referente a cada professora-cursista se dá no fluxo vital de sua docência, na ―prática‖, segundo a professora LC. É impensável conceber, portanto, que todas as professoras tenham ―aprendido‖ sobre as tecnologias em um mesmo grau ou medida. Em lugar disso, o que é concebível nessa experiência de curso de auto-trans-formação docente é um conjunto de perturbações e desestabilizações que podem operar na complexificação de cada docente (e, portanto, aprendizagem) no que tange às tecnologias.

Em geral, as autonarrativas indicam que as professoras-cursistas concordam que as tecnologias digitais contemporâneas são muito importantes no fazer educacional atual. ―A educação atualmente, não mais é a mesma, sendo imprescindível que a internet e o cyber

espaço sejam incorporados em nosso dia-a-dia‖, segundo palavras da professora JW. Afora

isso, uma das ideias mais comumente mapeadas nas narrativas é a de ―oportunidade de aprender muito com as tecnologias‖, como apontou a professora LB. Esse parece ser um aspecto mapeado que é potente, pela mediação de um aprender não apenas sobre as tecnologias, mas com elas.

Com relação ao operador acoplamento tecnológico, nesta minha cartografia complexa, eu pude confirmar o que já foi apontado por Pellanda et al. (2017) e notado em outros espaços formativos proporcionados pelo GAIA: vivenciamos, em muitos casos, a ultrapassagem de uma visão ingênua que delega à tecnologia um valor diferente que não o de auxiliar nas formas de aprendizagem e nas interações dos seres humanos. O operador acoplamento tecnológico serviu, na minha cartografia complexa, para a reflexão sobre a tecnologia como inseparável da constituição dos seres humanos. Portanto, acredito que a contribuição do curso

online quanto ao acoplamento tecnológico, assim como em Pellanda et al. (2017), deu-se de

forma mais acentuada pelo compartilhamento de experiências concretas no processo de utilização das tecnologias e, a partir da reflexão sobre essas experiências (num espaço virtual

online entre professores), pela oportunidade de levar a novos olhares docentes sobre como, na práxis, pode emergir subjetividade-conhecimento por meio das tecnologias digitais em rede.