• Nenhum resultado encontrado

3.3 Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar

3.3.1 Educação sem Distância

―EaD‖ é sigla usual na agenda do dia e nos debates sobre a educação nacional (e internacional). ―Seu uso recorrente e o crescente número de publicações acadêmicas adotando-a como objeto de estudo, entretanto, não isentam o conceito de talvez ainda ser hermético e gerar dúvidas20‖ (COSTA et al., 2020a, p. 64). Desse modo, neste subcapítulo, apresento minha concepção de EaD, à luz do Paradigma da Complexidade (MORIN, 2005; 2011) e da Biologia da Cognição (MATURANA, 2014). Nessa perspectiva, estão implicadas também minhas próprias experiências no curso de Letras - Espanhol e Literaturas EaD (UFSM-UAB), bem como leituras de pesquisas recentes na área de LA sobre o tema (FIALHO, 2011; LEFFA; FREIRE, 2013; FONTANA, 2015). Proponho, a partir de tais estudos, pensar a EaD como uma ―Educação sem distância‖ (LEFFA; FREIRE, 2013).

De acordo com Leffa e Freire (2013), a EaD contemporânea, que se caracteriza principalmente pelas tecnologias online e em rede, pode ilustrar um possível descompasso entre os mundos falado e vivido. Em melhores palavras: nem sempre a língua acompanha a

20 Exemplo cabal disso é a confusão conceitual entre ―EaD‖ e ―Ensino Remoto Emergencial‖ em função do novo coronavírus (Covi-19), que se popularizou em alguns setores da sociedade o longo de 2020.

evolução das tecnologias e, portanto, do mundo. É possível argumentar que o mundo é constituído pela (e na) língua, no sentido de que ela o produz e o modela em suas teias lexicais e sintáticas. Contudo, é necessário perceber quando o mundo transborda da língua, indo muito além dela (LEFFA; FREIRE, 2013). Destarte, ―O que permanece é o desafio de dar conta de um mundo novo com palavras antigas: a EaD não cabe nas palavras que usamos para descrevê-la‖ (LEFFA; FREIRE, 2013, p. 13).

Como exemplo disso, precisamos pensar, por exemplo, se de fato um termo altamente polissêmico como ―distância‖, do modo como o concebemos originalmente, caracteriza a (e confere um desfalque à) EaD (COSTA et al., 2020a). Para Leffa e Freire (2013), essa distância não existe mais, nem é obstáculo para a aprendizagem, na medida em que mecanismos de mediação (ferramentas, tecnologias, recursos variados) são capazes de propiciar interação simultânea e aprendizagem entre agentes geograficamente distantes.

Evidentemente, em momentos anteriores, como no ensino por correspondência ou por rádio, havia uma distância notória entre os indivíduos. Na atualidade, contudo, essa distância física-espacial já pode dar lugar a discussões outras, como aquelas sobre outras distâncias, talvez muito mais importantes para uma educação no viés da Complexidade (MORIN, 2005; 2011) e da Biologia da Cognição (MATURANA; VARELA, 1998). Refiro-me às distâncias sociais, culturais e cognitivas (LEFFA; FREIRE, 2013; COSTA et al., 2020a).

Recorro à ilustração de Leffa e Freire (2013) sobre a aprendizagem tradicional, na qual se presumia que devesse haver distância entre a sabedoria do professor (o detentor do conhecimento) e a ignorância do aluno (a tábula rasa na qual seria depositada informação). Nessa aprendizagem tradicional, o papel do professor – que professa seu saber – seria o de tentar suprimir essa distância por meio de lições e exercícios. Na EaD atual, na qual está implicada a autonomia do aprendiz, não podemos supor que este não saiba nada, sobretudo quando consideramos a máxima freireana sobre não haver um ―saber mais‖ ou um ―saber menos‖, mas, sim, saberes diferentes.

Assim, segundo Leffa e Freire (2013), o educando conhece muitas coisas que ele aprendeu vivendo, sentindo, olhando e ouvindo o mundo à sua volta, e isso pode ser ainda mais notório no contexto da EaD, em que ele depende menos do educador e está mais livre para navegar pelo ciberespaço e viver-conhecer a partir desse mundo que se amplia para muito além da sala de aula presencial e do campo de ação do educador. Nesse mesmo viés, se há de fato uma ―distância entre ignorância e conhecimento‖, envolvendo os atores implicados no processo educacional (educando e educador), esta pode ser ressignificada: quanto a alguns tópicos, o aprendiz talvez tenha aprendido-vivido aquilo que o educador não aprendeu-viveu

ainda, ―em áreas de conhecimento que até podem ser diferentes, mas não menos relevantes para sua educação‖ (LEFFA; FREIRE, 2013, p. 17).

Também cabe mencionar a ―distância social‖ (LEFFA; FREIRE, 2013). Esta se dá: envolvendo inúmeros aspectos na relação do sujeito com os outros, conferindo prestígio a um indivíduo e desqualificando outro. Pode envolver questões de hierarquia (general versus soldado raso), de uso da língua (norma padrão versus dialeto caipira), de posse de bens materiais (rico versus pobre), de endereço residencial (bairro nobre versus favela), entre tantas outras possibilidades (LEFFA; FREIRE, 2013, p. 17).

Para os autores (LEFFA; FREIRE, 2013), a redução da distância social tem sido um dos grandes desafios da educação contemporânea, por dois motivos: o primeiro, por tal distância existir em sentido vertical, de cima para baixo, exigindo para sua mudança um esforço notório, o qual as pessoas que estão lá em baixo nem sempre têm condições de fazer; o segundo, porque as pessoas que ocupam as posições mais elevadas oferecem resistência em abrir mão de seus privilégios e permitir o acesso dos outros que tentam subir.

A ressignificação dos papeis clássicos de ―professor e aluno‖ na EaD admitem a interpretação de que a modalidade denota um avanço na diminuição da distância social entre os envolvidos. ―A simples suspeita de que a EaD tenha a mínima possibilidade de reduzir, também, a distância social, ampliando, assim, o acesso à cidadania, é, por si só, um bom motivo para investigar sua potencialidade‖ (LEFFA; FREIRE, 2013, p. 18).

Todas essas distâncias antes mencionadas, ou seja, as distâncias ―entre sabedoria-ignorância, a distância social, e várias outras, podem existir ainda no ensino presencial, assim como na EaD e em qualquer modalidade de ensino‖ (COSTA et al., 2020a, p. 66). Considerando isso, e lançando mão das atuais tecnologias digitais telemáticas, que rompem com as noções clássicas-euclidianas de ―distância‖ e ―tempo‖ (no sentido de permitirem interação simultânea entre os indivíduos), chegamos a um impasse na educação. Conforme destacam Leffa e Freire (2013).

Estamos diante de um aparente impasse, mas com duas opções de saída: ou toda educação é presencial, incluindo a educação distante, ou toda educação é distante, incluindo a presencial. A opção por uma ou outra das alternativas é meramente uma questão terminológica; pode-se postular tranquilamente que não há qualquer possibilidade teórica de haver dois tipos de educação (LEFFA; FREIRE, 2013, p. 33).

Por hora, ainda sem uma postura mais consensual da academia sobre a EaD, faço minha as palavras registradas no livro Transformación en la Convivencia (MATURANA, 2014). Em tal obra, uma coletânea de textos organizados à luz dos principais pressupostos teóricos da Biologia da Cognição, a EaD contemporânea é vista como uma modalidade que permite

modificações do escutar, do ver e do fazer na convivência. Isto é: a EaD permite a superação de distâncias e barreiras culturais, de classe e econômicas, entre outras. Conforme assinalado na obra:

En fin, la educación a distancia, aunque fue concebida como una solución a un problema técnico de educación masiva, abre la posibilidad de experiencias semejantes a personas que de otra manera permanecerían para siempre separadas por barreras culturales o económicas (MATURANA, 2014, p. 150).

É nessa lógica que adoto, aqui, uma concepção de EaD sem distância (LEFFA; FREIRE, 2013; COSTA et al., 2020a), quero dizer, uma EaD que amplia o espaço experiencial e conversacional dos aprendizes com a diversidade de temas que oferece, e que valida a dignidade e valoriza os saberes e os conhecimentos de cada estudante (MATURANA, 2014). Em outras palavras, a EaD online, hoje, permite ampliar a realização de um viver democrático (MATURANA, 2014), propício à educação como um todo.