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5.2 Operadores/marcadores teóricos, padrões e recorrências

5.2.2 O processo de autopoiesis

Maturana e Varela nos ensinam que conhecer é viver, bem como viver é conhecer, no sentido de que a cognição-subjetivação está atrelada à atividade de um sujeito escaneando seu ambiente e dando a ele respostas efetivas engendradas por ele mesmo (MATURANA; VARELA, 2001). Essas respostas – esse complexo ato de interação-acoplamento com o meio – nos levam ao processo constante de auto-trans-formação. Assim, no coração da Biologia da Cognição está o conceito organizador de autopoiesis, que explica o funcionamento dos seres vivos como máquinas que se produzem a si mesmas ao operar (PELLANDA et al., 2017). A referida expressão é de origem grega e significa: auto – por si e poiése – produção, ―o que implica pensar que o viver sucede autoprodutivamente nos organismos vivos‖ (PELLANDA

et al., 2017, p. 140).

A autopoiesis, enquanto conceito criado por Maturana e Varela (2001) para dar conta do fenômeno do viver, serve para a finalidade de explicar os fenômenos moleculares e o operar em organismos moleculares. Os humanos vivem essa mesma dinâmica molecular (PELLANDA et al., 2017).

Concebendo o Paradigma da Complexidade como um conjunto de teorias que se interconectam na tecitura de uma forma holística de pensar e viver, temos na Teoria da

Autopoiesis subsídios para metaforizar a própria constituição de um ―eu‖ na ação de viver e,

neste caso mais específico, de pesquisar. Parte daí, inclusive, minha interpretação do narrar – que é sempre autonarrar – como uma prática autopoiética (o narrador se autoconstitui ao narrar-se). No caso da cartografia complexa, estou me referindo, com a noção de autopoiesis, à sensação vertiginosa da autoprodução oriunda da circularidade resultante da utilização do instrumento de pesquisa para pesquisar o próprio instrumento de pesquisa (MATURANA; VARELA, 2001).

As reflexões sobre o processo de autoprodução estiveram presentes ao longo de todo o curso online, mas principalmente nas autonarrativas finais, da última semana do curso, quando as professoras-cursistas foram provocadas a avaliar a ação extensionista e seu próprio percurso formativo. Dessa provocação emergem fragmentos autonarrativos como este:

―Depois de rever o material do curso e refletir para escrever essa última narrativa sobre o que aprendi e o que mudou na minha forma de pensar sobre os temas

abordados nos estudos, vejo que somos seres em constante construção‖ (Professora CS, #4).

Subjacente ao fragmento da narrativa da professora CS há uma correlação entre aprender e mudar, ou se auto-trans-formar. Esse processo parece ser contínuo no sentido de tal (re)invenção de si ser constante.

―Tem-se a ideia de que a formação do professor se dá em múltiplas esferas e é constituída por vários saberes. Levar em consideração estes princípios implica reconhecer que não existe um momento único de formação, mas que ela vai sendo construída e reconstruída durante toda a trajetória profissional e também pessoal do professor‖ (Professora CS, #2).

A ideia defendida pela professora CS remete à noção de formação contínua e inacabamento docente já registrada por Paulo Freire (1996). Para ele, a docência é constituída também do inacabamento do docente, haja vista que este está sempre ensinando e aprendendo. Tanto do ponto de vista democrático (isto é, dessa educação democratizada em que Paulo Freire se situa e que não coloca estudantes e professores em patamares distintos) quanto do ponto de vista da radicalidade metafísica de que decorre sua compreensão de indivíduos como seres históricos e inacabados, Freire (1996) vê a docência como um constante vir-a-ser. Nesse viés, essa docência é um processo contínuo de auto-constituição. Opinião parecida está na autonarrativa da professora AS, que aponta para essa auto-produção da docência em devir:

―Com a formatura a gente não sai pronto, mas, como meus colegas me falam, é na sala de aula, no dia a dia com os alunos é que a gente se constrói professor‖ (Professora AS, #2).

A professora AP, por sua vez, já havia avaliado sua própria aprendizagem antes da proposta de narrativa da semana final do curso:

―Antes mesmo de ver a proposta do trabalho final, já tinha pensando em como esse curso me fez refletir, através das autonarrativas e da escrita. Eu começava a escrever e mil coisas surgiam na minha cabeça sobre os assuntos. Finalizo minha narrativa afirmando que este curso ajudou e muito na minha formação, me ajudando a refletir sobre os temas abordados‖ (Professora AP, #4).

Assim como a professora AP, a professora Z também considerou positiva a oportunidade de produzir autonarrativas, por ser esta uma técnica de si, uma técnica de autoconhecimento:

―[...] tive a oportunidade de me auto conhecer e fazer poesia com meu aprendizado através de narrativas para mim mesma‖ (Professora LC, #4).

Em alguns casos, conforme o trecho da autonarrativa da professora G, a seguir, é possível notar, ainda, a correlação entre o processo de autopoiesis e o acoplamento

tecnológico, em função de a tecnologia perturbar e disparar mudanças e transformações no indivíduo. Nem sempre tal processo é fácil, pois, como a própria professora G destaca, há ―riscos‖ quanto ao uso de novas tecnologias, mas estas reverberam novas experiências, o que afeta a autoconstituição em devir do indivíduo:

―Todas essas experiências, presenciais e virtuais, colaboraram para a construção da pessoa que sou e serei. Por isso, sou uma entusiasta das novas tecnologias, mesmo sabendo que há ―riscos‖, mas penso que riscos há em todo lugar‖ (Professora GS, #1).

Assim como vem sendo demonstrado nos estudos do GAIA, o processo autopoiético se dá pelo caos, pelo ruído e pela desestabilização-reorganização recursiva (CHAGAS, 2019; GUSTSACK; PELLANDA; BOETTCHER, 2017). Isso se mostra no repensar de si, que configura a aprendizagem, conforme pode ser lido na autonarrativa da professora A: ―Como disse acima, eu nem tinha me dado conta que era possível formar grupos no Facebook para estudar‖. Ou seja, tomar consciência de algo pode significar, em grande medida, uma aprendizagem sobre algo até então desconhecido e, logo, uma mudança (transformação) do indivíduo.

Outro caso em que a auto-constituição docente (autopoiesis) deu-se também pelas perturbações disparadas pelas tecnologias digitais e, por conseguinte, com a processualidade do acoplamento tecnológico, é o da professora EG:

―Foi na Universidade Federal de Santa Maria que tive primeiro contato com computador e internet e esse foi a grande engrenagem para a transformação da aquisição e produção de conhecimentos‖ (Professora EG, #1).

Para ela, o computador e a internet contribuíram significativamente em sua formação no sentido de levá-la a um processo constante de transformação para a aquisição e a produção de saberes. Esse é um indicativo da conexão entre operadores teóricos na perspectiva da ontoepistemogênese, neste caso, dos operadores ―acoplamento tecnológico‖ e ―autopoiesis‖.

Essa correlação também pode dar-se no que diz respeito ao despertar de um interesse neste tema: as tecnologias na educação. Conforme pode ser visto a seguir:

―Concluo destacando que estou me preparando para o Doutorado e vou investigar práticas de integração das TDIC no ensino de língua espanhola. Amadurecendo a ideia e em busca de um/a orientador/a em uma universidade pública‖ (Professora EG, #1).

No caso da professora Z, ela demonstra interesse em pesquisar sobre a área, o que interpreto como uma continuidade da constituição de sua docência, uma vez que não há docência sem pesquisa (FREIRE, 1996). Não concordo com a fragmentação entre o professor

e o pesquisador, e pela minha própria vivência, entendo que a pesquisa implica diretamente em constante transformação da docência e, nesse sentido, auto-constituição do educador. Contudo, entendo que a visão hegemônica possa ser ainda, e infelizmente, a de separação entre o ―trabalhar‖ e o ―pesquisar‖ no que diz respeito à vida docente.

Concluo esta seção enfatizando a perspectiva das professoras-cursistas de que estamos continuamente ―nos formando‖. O processo de formar-se é, com base em minhas leituras das autonarrativas das professoras participantes da pesquisa, dinâmico, contínuo e perpassado por essa capacidade de cada indivíduo de produzir a si próprio (no caso, docentes se autoconstituirem enquanto docentes ao passo que constituem sua docência). Ademais, destaco as ressonâncias entre o processo de autopoiesis e o acoplamento tecnológico, sobretudo no que tange à ideia de a tecnologia propiciar desestabilização, trans-formação e auto-produção de si e da docência.