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Na presente seção, retomo e avalio meu objetivo geral e meus objetivos específicos de estudo. Meu objetivo geral com a presente tese foi o de contribuir com uma cartografia complexa da ontoepistemogênese na formação de professores de línguas na modalidade EaD, a partir das autonarrativas de educadores licenciados pelo curso de Letras - Espanhol e Literaturas EaD (UFSM-UAB). Acredito que esse objetivo foi alcançado na medida em que o referido curso serviu para cartografar o processo complexo de auto-trans-formação das professoras-cursistas a partir de suas autonarrativas. Com as experiências desse curso de

extensão, permito-me tecer considerações sobre (i) as autonarrativas e (ii) a cartografia complexa.

No que tange (i) às autonarrativas, vale lembrar: cada época conta com determinadas formas narrativas (SCHOLES; KELLOG, 1977; PICCININ, 2012; MOTTA, 2013), e as sociedades narram e são narradas em razão de seu contexto sócio-técnico-discursivo. Dessa forma, é imperativo situar o que se entende por ―narrar‖ em (1) um determinado lugar-tempo e em (2) uma determinada perspectiva teórico-metodológica (abordagem científica). No aqui e agora, na atual sociedade em rede, contamos com inúmeras ferramentas (tecnológicas, digitais, semióticas, multimodais...) e estratégias para a complexificação do ato de narrar-se. E, na perspectiva teórico-metodológica da Biologia da Cognição, no viés da Complexidade enquanto paradigma científico emergente, as autonarrativas são instrumentos autopoiéticos, pela possibilidade de desestabilização e reinvenção de si do narrador incluído, implicado no processo, que reinventa a si constantemente na e pela narrativa.

No que tange (ii) à cartografia complexa, enquanto método qualitativo e transdisciplinar de fazer ciência em sintonia com o Paradigma da Complexidade, concordo com Iop (2020):

A cartografia, como uma atitude investigativa a ser praticada e experienciada no processo de pesquisar, mostrou-se uma ferramenta muito potente nessa investigação devido às suas características de estar sempre em construção, uma vez que é fundada na experimentação e na prática de manter o pensamento sempre aberto. [...] Ou seja, cartografar possibilitou perceber as conexões, articulações e seus movimentos permanentes, construindo e reconstruindo saberes coletivos (IOP, 2020, p. 62). Nessa lógica, a partir deste estudo, defendo que, no método cartográfico, o pesquisador (cartógrafo) também é ator na realidade pesquisada e está implícito no observar, sendo seu papel exatamente este: observar onde o fluxo o leva, adaptando-se às realidades que lhe são expostas, e buscando produzir mapas que evidenciem essas experiências vivenciadas junto aos demais participantes da pesquisa (LIMBERG et al., 2017).

Ademais, a experiência com a cartografia complexa afetou-me positivamente de tal modo que, após essa primeira experiência com um curso online no final de 2019, outros cursos e espaços de formação (implementados ao longo de 2020, também com a participação de professores de línguas) foram estudados a partir dessa mesma metodologia. Refiro-me a cursos online ministrados ao longo do período de pandemia por Covid-19, em 2020, nos quais adotei a prática de provocar a tecitura de autonarrativa aos professores participantes. Considero tais experiências como propulsores da confecção da práxis e, por isso, pretendo seguir estudando o método cartográfico à luz do Pensamento Complexo, visando a contribuir constantemente, e, sobretudo, com a prática da cartografia vivenciada no ciberespaço,

tentando mostrar como, nessa práxis, ―pode emergir subjetividade/conhecimento através do uso das tecnologias‖ (PELLANDA et al., 2017, p. 130).

Registrados tais apontamentos quanto ao meu objetivo geral, passo aos objetivos específicos. O primeiro deles foi o de estudar as autonarrativas de professores de línguas na EaD como instrumentos da abordagem de ontoepistemogênese, contemplando, assim, o processo complexo de auto-trans-formação desses educadores na referida modalidade. Acompanhei o processo de confecção das autonarrativas das professoras-cursistas ao longo de cada uma das quatro semanas do curso, assim como escrevi minhas próprias autonarrativas, perpassadas por minhas leituras e interpretações. A partir dessa experiência, compreendo hoje as autonarrativas como limitadas (mas não limitantes) do humano em suas múltiplas dimensões. Quero dizer com isso que as autonarrativas não abarcam o todo, pela impossibilidade disso. Quando o filósofo francês Edgar Morin (1977) versa sobre a consciência da Complexidade, ele nos faz entender que jamais poderemos ter um saber total, pois a totalidade é a não verdade. Penso, hoje, as autonarrativas nesse mesmo viés. A própria extensão da autonarrativa mostra que ela é, em alguma medida, limitada, assim como seus possíveis formatos (como o limite da página e/ou a duração do vídeo). A impossibilidade de fixar as significações das palavras na autonarrativa é outro aspecto que me permite pensá-la como limitada.

Apesar de limitada, porém, a autonarrativa não é limitante, no sentido de que, ao narrar-se, o narrador incluído pode mostrar-narrar-se, expor-narrar-se, caminhar por caminhos que julga pertinente àquele momento da processualidade de narrar, (re)conhecer-se em devir, reinventar-se no viver, e registrar na autonarrativa uma parte que é integrada a um todo. Na autonarrativa docente, tal docente está em parte-todo, de forma complexa, e a ação de narrar pode perpassar por todas as dimensões desse docente e de sua docência.

Embora as autonarrativas produzidas no curso online tenham se limitado quase que exclusivamente ao registro verbal-escrito, reitero que outros meios-modos de narrar-se podem servir ao cartografar complexo. Imagens, vídeos, diários de bordo, conversas informais, poesias, músicas, questionamentos e registros de todas as ordens podem compor essa cartografia complexa. Por todos esses formatos possíveis – interpretados à luz do princípio hologramático da Complexidade, que aponta para a recursividade (ou fractalidade) da relação todo-partes –, o indivíduo pode ir se narrando e, assim, redesenhando seu viver. Portanto, concordo com o apontamento de Pellanda et al. (2017), de que, num relatório final, o que aparece é uma verdadeira cartografia de emergências que adquirem sentido à luz dos operadores/marcadores. Ainda que outros formatos de autonarrativa não tenham sido

amplamente explorados e empregados pelas professoras-cursistas, o registro verbal-escrito já serve ao propósito da cartografia complexa, por ser uma parte inscrita no todo, ao passo que o todo está inscrito na parte.

Com relação ao meu segundo objetivo específico – isto é, mapear e estudar padrões, recorrências e indicativos de operadores/marcadores da ontoepistemogênese que emergem nas autonarrativas dos professores de línguas –, destaco (1) o acoplamento tecnológico (conceito oriundo da noção de acoplamento estrutural) e (2) o processo de autopoiesis. Tais operadores/marcadores já haviam sido abordados em estudos prévios do GAIA (PELLANDA

et al., 2017) e emergiram nas autonarrativas das professoras-cursistas durante a pesquisa.

O acoplamento tecnológico, enquanto operador/marcador teórico, permite pensar um movimento contínuo em direção à superação de uma visão mais ingênua de tecnologia como mero recurso ou máquina usada para um certo fim. A superação dessa noção pragmática de tecnologia, por parte das professoras-cursistas, ocorre na medida em que emerge uma perspectiva que concebe a tecnologia como inseparável do humano e, consequentemente, de sua prática pedagógica. Não posso afirmar, evidentemente, que essa complexificação aconteceu de forma igual e explícita em todas as professoras-cursistas, mas acredito que o curso online contribuiu para desestabilizações e ruídos que podem caracterizar condições iniciais de acoplamento tecnológico por parte das docentes. Espero, inclusive, que isso possa ter reverberado em contribuições para o contexto de pandemia por Covid-19 e de ensino remoto que se deu no ano de 2020, após o curso online, e que exigiu de todos os professores do Brasil reinvenção de suas práticas pedagógicas a partir de tecnologias digitais em rede.

O processo de autopoiesis, como operador/marcador referente aos fluxos de constituição dos humanos, máquinas criadoras de si mesmos (ATLAN, 1992), esteve subjacente ao processo de confecção da autonarrativa, que se confunde com o próprio ―processo de autoprodução do vivo‖ (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 49). Mais do que o mapeamento desse marcador nas autonarrativas, fico feliz pela possibilidade de as professoras-cursistas, mesmo após o curso online, seguirem pensando em modelos educacionais com práticas de autoria nos quais cada uma delas ―tenha a consciência plena de sua autoconstituição‖ (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 69).

Estes modelos implicariam em técnicas sobre si mesmos de tal maneira que o processo cognitivo não se separa do processo de subjetivação. Em outras palavras, conhecer é sempre experiência vivida. Uma dessas técnicas de si, que nos constitui, é a autonarrativa, pois, ao narrarmos a nossa vida, vamos inventando e configurando o estilo de existir que escolhemos para nós (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p. 69).

Para exemplificar esse contínuo movimento de autoprodução de si (e, no caso, da docência), faço minhas as palavras da professora AS, em sua última autonarrativa: ―Nossa caminhada de aprender não se encerra, seguimos sempre na busca de novos conhecimentos, agregando novas aprendizagens‖ (Professora AS, #4).

Por fim, meu terceiro e último objetivo específico com a presente tese foi verificar se há outros padrões e operadores/marcadores ontoepistemogênicos emergentes das autonarrativas desse contexto de formação docente. Primeiramente, ressalto as afecções e as relações de afetividade registradas nas autonarrativas. Em segundo lugar, destaco a autonomia.

No que tange às afecções, vale lembrar: por muitos anos, na LA e, mais precisamente, nas teorias de ensino e de aprendizagem de línguas estrangeiras, as variáveis afetivas ocuparam um lugar secundário se comparadas às variáveis cognitivas (ARAGÃO, 2005). Hoje, contudo, após uma guinada dos estudos linguísticos e de sua forma de pensar o humano, já temos um número considerável de pesquisas que tratam das afecções e das relações de afetividade inerentes à formação de professores de línguas, sobretudo na EaD (FONTANA, 2015; COSTA et al., 2020b). As autonarrativas produzidas pelas professoras-cursistas dão conta das afecções enquanto operadores/marcadores complexos, sobretudo os afetos positivos, que foram aludidos pelas participantes da pesquisa. A UFSM, enquanto instituição, e o curso de Letras - Espanhol e Literaturas EaD (UFSM-UAB), enquanto lócus formativo e de interações alegres foram elementos de afecções positivas mencionados pelas professoras-cursistas em suas autonarrativas. Relacionadas a estes elementos, também foi possível mapear as menções a professores (formadores e tutores), a colegas de curso de graduação e a alunos (dos estágios supervisionados e dos espaços educacionais em que algumas das professoras já trabalham) como elementos de afecções positivas.

Em segundo lugar, destaco a autonomia como operador/marcador subjacente à autonarrativa. Assim como em estudos prévios (PAIVA, 2005a; 2006), nas autonarrativas das professoras-cursistas foi possível mapear indícios de autonomia como um SAC na formação docente em EaD. A autonomia pode ser compreendida como SAC, por um lado, por não caracterizar um processo linear, e, por outro lado, porque o humano, enquanto sistema complexo, vai inventando e configurando o viver que escolhe para si, alimentando sua ―autonomia para conduzir sua vida‖ (PELLANDA; BOETTCHER, 2017, p.69). De modo geral, a maioria das professoras-cursistas interpretou esta autonomia como necessária e inerente à prática discente e à invenção da docência na EaD.

A partir desses operadores/marcadores teóricos, proponho a imagem a seguir (Imagem 13), como uma interpretação minha da abordagem da ontoepistemognênese na formação docente na EaD:

Imagem 13 – Operadores/marcadores teóricos na abordagem da ontoepistemogênese na EaD

Fonte: do autor.

Adaptado de: <https://pixabay.com/pt/illustrations/verde-espiral-fractal-com-fio-2486675/>.

Proponho esse fractal em que constam os operadores/marcadores teóricos ―Acoplamento tecnológico‖, ―Autonomia‖, ―Processo de Autopoiesis‖ e ―Afecções‖, aqueles que me pareceram mais notórios na experiência do curso online de formação docente e nas autonarrativas produzidas pelas professoras-cursistas. Na imagem, fiz questão de salientar a conexão entre esses operadores/marcadores, haja vista eles não operarem de forma individual e isolada, mas com implicações mútuas. Em muitos casos, por exemplo, o processo de auto-constituição da docência (autopoiesis) foi disparada e amplificada pelas afecções inerentes ao curso de Letras - Espanhol e Literaturas EaD (UFSM-UAB). Em outros casos, a autonomia do acadêmico de graduação na atual EaD online quanto às tecnologias digitais levou a processos de acoplamento tecnológico, que, por sua vez, reverberaram também na auto-trans-formação da docência (novamente, processo de autopoiesis). Desse modo, esses operadores/marcadores teóricos pertinentes à Biologia da Cognição, assim como outros tantos não estudados nesta

pesquisa, estiveram implicados de forma complexa e recursiva, configurando a abordagem da ontoepistemogênese da formação de professores de línguas estrangeiras na EaD.