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Três instrumentos e técnicas de pesquisa foram empregados para o estudo da ontoepistemogênese no fluxo do curso de formação docente por meio das autonarrativas: (1) a observação participante; (2) a experiência de escrita e de leitura dessas autonarrativas; e (3) o estudo da dinâmica das conversações.

Começo tratando da observação participante, na qual ―o investigador participa do evento que está sendo estudado‖ (LEFFA, 2006a, p. 20). Interpreto que essa participação ativa do pesquisador é coerente com minha tese, e que, dentre os procedimentos metodológicos possíveis em uma pesquisa, é ilustrativo de duas das características da investigação qualitativa: o viés fenomenológico e prisma interpretativista das ocorrências.

Minha primeira experiência com a observação participante em um curso online com professores de línguas foi com a pesquisa que originou minha dissertação de Mestrado (COSTA, 2016) e, desde então, acredito na potência dessa técnica de investigação científica,

que me parece estar em sinergia com o movimento de transição dos ―sistemas observados‖ para os ―sistemas observantes‖, uma das perspectivas centrais da Biologia da Cognição (MATURANA; VARELA, 1998; MATURANA, 2001).

Sendo a observação um instrumento típico de qualquer estudo, a observação participante assume um caráter mais complexo, funcionando recursivamente como técnica e, ao mesmo tempo, como método da própria pesquisa. Em resumo, a observação participante é aquela desenvolvida em contato direto, habitual e longitudinal do pesquisador com o fenômeno estudado e os atores sociais envolvidos (no caso, professoras-cursistas), implicando no processo de observar a capacidade neurofisiológica do próprio observador de produzir distinções (OLIVEIRA, 2017). Ou seja, na observação participante:

[...] o observador deve identificar o pano de fundo ao qual ele contrapõe uma conclusão observacional. Este pano de fundo não será sempre de nível conceitual (nele inclusive também a rede de crenças na qual o observador se move e que foi gerada na sua história de vida, a ética na qual se move e na qual acredita, bem como os fatores de tipo emotivo, volitivo, sensorial, como também o paradigma científico cultural no qual o observador atua), e poderá, pois, referir-se diretamente ao organismo que observa. [...] As suas conclusões observacionais deverão também ter em conta o contexto a partir do qual a distinção observacional emergiu. Daí a importância de tentarmos conhecer a história de vida das pessoas, de as ouvir contar a sua própria interpretação das ocorrências das suas vidas, estudar a história e o contexto social, político, econômico… do surgimento das comunidades, etc. (OLIVEIRA, 2017, p. 93).

As autonarrativas servem, nesse contexto do curso, não apenas como tecnologias autopoiéticas e instrumentos de subjetivação-cognição, mas também como ferramentas de conexão e interação entre os atores envolvidos nesse grande SAC que é o próprio curso. Assim, passo a tratar da técnica de confecção e de leitura de autonarrativas dos professores.

Conforme apontado em Costa e Piccinin (2020, p. 245), de pouco serve o registro de experiências docentes sem a produção de uma subjetivação rumo a uma intersubjetivação complexa, em rede, porque isso não passaria de continuidade de práticas de escrita reducionistas enquanto status quo na sociedade (COSTA; PICCININ, 2020, p. 245) e no meio acadêmico, que, por tempos, reduziu a potência do narrar-se. É necessário que os atuais espaços formativos sejam permeados de interações e perturbações que propiciem emergências de autonarrativas, que são também emergência da subjetividade de falar de si e, por conseguinte, de recursivas auto-trans-formações do docente e de sua práxis.

Sobre a produção de autonarrativas enquanto técnica de pesquisa, concordo com as palavras de Oliveira (2017):

A construção e comunicação orais de narrativas pode ajudar-nos na inter-relação com um público com baixo nível de literacia, a qualquer nível de educação. A

escrita de narrativas possibilita, por seu lado, um certo distanciamento observacional que pode revelar-se muito útil para o favorecimento de situações de aprendizagem. Este distanciamento prende-se com a dimensão observacional subjacente às linguagens articuladas, e que se acentua na linguagem escrita, já que ela emerge, e constitui, uma rede imensamente complexa de distinções de distinções de distinções… que são as estruturas sintáticas e semânticas de qualquer tipo de linguagem escrita. Daí que ela vincule uma dimensão observacional a quem escreve, mesmo que o faça sobre a sua própria vida (OLIVEIRA, 2017, p. 99).

Em consonância com a escrita das autonarrativas (das participantes da pesquisa), busquei subsídios teórico-metodológicos para pensar a (minha) leitura das autonarrativas (enquanto pesquisador). Tudo o que foi apresentado até aqui não poderia ser validado a partir de uma concepção de leitura enquanto mera decodificação, ou, daquilo que critica Roland Barthes: a redução do ato de ler (e/ou ouvir) uma narrativa a simples ―passar de uma palavra a outra‖, ignorando que a leitura ―é também passar de um nível a outro‖ (BARTHES, 2011, p. 27). Em relação ao meu posicionamento teórico-metodológico, busco respaldo na obra de Paulo Freire, que não via a leitura como ato individual, mas como uma prática socialmente construída. Para a teoria freireana, os sentidos não estão somente no texto, nem estão apenas no leitor: são construídos em conjunto entre os saberes do texto e os saberes do leitor (COSTA et al., 2020a). Apontava Freire que:

A leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou e cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito. Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua autora (FREIRE, 1996, p. 27).

Para além da inegável correlação entre linguagem e realidade, entre texto e contexto, subjaz à concepção de leitura de Freire a acepção de interpretação do mundo. É essa leitura que Freire entendia como pertinente a toda prática educativa, por ser necessário o educador saber ler/compreender a significação de um silêncio, ou de um sorriso, ou de uma expressão de dúvida no rosto do outro (o legítimo outro, como consta na Biologia da Cognição). De modo geral, essa perspectiva freireana é traduzida, nas palavras do Patrono da Educação Brasileira, pelo axioma "a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não pode prescindir da continuidade da leitura daquele" (FREIRE, 1989, p. 9). É com essa perspectiva que interpreto a leitura das autonarrativas como um ―trabalho complexo de leitura de processos cognitivo/afetivos‖ (PELLANDA et al., 2017, p. 30).

Todo o exposto me leva à terceira técnica de pesquisa em fluxo: o estudo das conversações. A partir de leituras de pesquisas prévias do GAIA (PELLANDA, 2003), também empreguei como técnica de pesquisa o estudo da Dinâmica das Conversações, que, à maneira de um fractal, é um processo de investigação desenvolvido com base em um dos mais

importantes pressupostos de Maturana (2014): a realidade se constitui nas conversações (PELLANDA, 2003). Aponta o biólogo chileno: ―Tudo o que nós, seres humanos, fazemos como seres humanos, o fazemos nas conversações. E aquilo o que não fazemos nas conversações, de fato não o fazemos como seres humanos36‖ (MATURANA, 2014, p. 47).

Pellanda (2003, p. 1378), em muitos de seus trabalhos, com base na Dinâmica das Conversações, se propõe a ―refletir sobre o processo das conversações no grupo, em termos de como constituímos conhecimento e a nós mesmos numa perspectiva autopoiética‖. Vale reiterar que a autopoiésis é um conceito central da Biologia da Cognição produzido por Maturana e Varela (2001) e com o qual ―esses cientistas explicam a circularidade dos seres vivos em que produtor e produto se constituem mutuamente‖ (PELLANDA, 2003, p. 1379).

Enquanto procedimento metodológico, o estudo da Dinâmica das Conversações é uma prática que ―não segue nenhuma escola já consagrada, como a conhecida por Conversational

Analysis, por exemplo‖ (PELLANDA, 2003, p. 1380). Diferente de outros métodos de estudo

das interações, no GAIA, entendemos o estudo da Dinâmica das Conversações a partir de Maturana, o qual lembra que ―conversar‖ vem do latim cum (com) e versare (dar voltas); portanto, o que o GAIA faz é dançar modulando emoções, palavras e corporalidade, entrando numa harmonia de muitas vozes (PELLANDA, 2003, p. 1383).

A lógica subjacente a um grupo com conversações é uma lógica caótica, complexa, não linear, pois o que um diz no grupo tem consequências em todos os outros de maneira singular e, ao mesmo tempo, as reações do grupo voltam ao autor da primeira mensagem numa atitude de retroação, pois ―todos nós somos seres emocionais que existimos no linguajear, nas redes consensuais de conversação nas quais sou legitimada e legitimo o outro como outro na relação‖ (SILVA, 2018, p. 64). Com isso, todos no grupo no qual se dá a conversação se reconfiguram, e o grupo se reconfigura como um todo (PELLANDA, 2003), o que nos permite pensar em mudanças cognitivas-subjetivas de cada participante do processo de conversação. De igual forma, as conversações reverberam em consequências sociais, e temos estudado isso em intervenções com docentes em oficinas autopoiéticas do GAIA, bem como em cursos de auto-trans-formação, como este registrado na presente tese. No GAIA, vamos ―registrando as recursividades e transformações das diversas falas‖ nesses espaços formativos (PELLANDA, 2003, p. 1384).

36

Tradução minha para ―Todo lo que nosotros, los seres humanos, hacemos como tales, lo hacemos en las conversaciones. Y aquello que no hacemos en las conversaciones, de hecho no lo hacemos como seres humanos‖ (MATURANA, 2014, p. 47).

5 OBSERVAÇÕES, INTERPRETAÇÕES, EXPERIÊNCIAS

Neste capítulo, apresento os resultados do meu percurso investigativo, que são as minhas próprias experiências, as observações e as interpretações tecidas no fluxo do curso

online de formação docente a partir da leitura das autonarrativas das professoras-cursistas.

Vale lembrar que meu objetivo geral foi o de contribuir com a cartografia complexa da ontoepistemogênese na formação de professores de línguas na EaD. Para tanto, elenquei três objetivos específicos, que pautam a divisão deste capítulo em subcapítulos, visando à organização da apresentação dos resultados da pesquisa. Dessa forma, cada subcapítulo a seguir é correspondente a um objetivo específico proposto para esta tese.