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2 Educação como arte

2.5 Admiração e Envolvimento

2.5.1 A busca freireana de “ser mais"

“O que pretende a ação cultural dialógica, cujas características estamos aca- bando de analisar, não pode ser o desaparecimento da dialeticidade permanên- cia-mudança (o que seria impossível, pois que tal desaparecimento implicaria no desaparecimento da estrutura social mesma e o desta, no dos homens) mas superar as contradições antagônicas de que resulte a libertação dos homens” (FREIRE, 1987, p. 179).

Ao reconhecer que a duração de uma estrutura social se dá através do jogo entre os contrá- rios permanência e mudança, de modo que o que permanece não permanece jamais igual a si mesmo, uma vez que se desenvolve no tempo, Paulo Freire pensa a formação do homem como a constituição do sujeito que, “humanizado”, está em permanente busca de “ser mais” (FREIRE, 1987, p. 84).

Essa valorização da tensão entre permanência e mudança leva-nos, por um lado, a buscar ao máximo um enraizamento no aqui e agora, na situação atual e concreta das relações estabeleci- das entre os homens e deles com o mundo. Por outro demanda o rompimento com um fatalismo que mistifique e torne estática esta realidade. Um certo estado de imersão acrítica na realidade impede, segundo Paulo Freire, as possibilidades de aprofundamento de sua compreensão, de desvelamento de suas razões de ser, de percepção diferenciada dos múltiplos aspectos do real e

da forma como suas partes compõem relações estruturais que possuem uma história e, portanto, não são eternas. Porém, a constituição de um pensamento puramente abstrato, desconectado de nossa vivência “concreta”, não contribui para a necessária emersão e percepção objetiva do mundo, uma vez que tende a criar um hiato entre teoria e realidade e a enxergar a uma e outra não em sua construção histórica, mas como verdades inquestionáveis, imutáveis e alheias ao homem que, impotente e desumanizado, pode apenas esforçar-se ao máximo para adequar-se a elas.

O desafio que se coloca é a possibilidade de transformar o estado de imersão acrítica no mundo em uma inserção sempre problemática e dinâmica. Na medida em que o homem é capaz de ter não apenas sua atividade, mas a si mesmo como objeto de sua consciência (FREIRE, 1987, p. 104), é capaz de admirar-se de sua situação, de ver a si mesmo a certa distância,

em perspectiva, apreendendo a situação em que se encontra como campo de sua ação e de

sua reflexão, podendo assim agir conscientemente sobre ela e transformá-la. Dessa forma, é a

emersão reflexiva com relação à própria situação em que se encontra que permite ao homem

sua inserção crítica, seu engajamento:

“Esta reflexão sobre a situacionalidade é um pensar a própria condição de exis- tir. Um pensar crítico através do qual os homens se descobrem ‘em situação’. Só na medida em que esta deixa de parecer-lhes uma realidade espessa que os envolve, algo mais ou menos nublado em que e sob que se acham, um beco sem saída que os angustia e a captam como a situação objetivo-problemática em que estão, é que existe o engajamento. Da imersão em que se achavam,

emergem, capacitando-se para inserir-se na realidade que se vai desvelando”

(FREIRE, 1987, p. 119).

O estado de imersão acrítica, de submissão a um estado de coisas percebido como imutável, representa, para Paulo Freire, uma situação de desumanização. A desumanização, entretanto, não é natural, mas sim o resultado de uma construção histórica. A vocação histórica do homem, como ser capaz de refletir sobre si mesmo e sobre sua ação, é a de “ser mais”, de busca per- manente pela superação de seus limites e de criação de novas formas de ser no mundo. São as relações de opressão, de exploração do homem pelo homem a origem histórica dessa conduta fatalista. Por isso, a busca e a luta pela humanização é também sempre coletiva, sempre social. Isso não significa, porém, um descomprometimento do indivíduo; ao contrário, somos campo para a atuação transformadora exercida por nós mesmos. Como afirma Paulo Freire:

“Não acredito na auto-libertação. A libertação é um ato social” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 71).

A luta pela humanização, não se faz através de uma “dádiva” daqueles que supostamente possuem “pensamento crítico” e conhecimentos àqueles supostamente desprovidos desses atri- butos. Isto porque, por um lado, essa conduta apenas reforça a transformação do homem em

objeto inconsciente de si e dependente de uma ação messiânica exterior. Por outro porque, sendo de origem social, a situação de desumanização atinge, de formas diferentes, a todos, inclusive aos opressores, e a hipótese de que existem seres que conhecem as respostas e os ca- minhos que levam à superação dessa situação e, mais ainda, de que esse ser é o professor, não possui qualquer fundamento.

Um exemplo pessoal. Encontro-me, neste momento, escrevendo uma tese que busca re- fletir a respeito de novas possibilidades para a formação de professores de física, que atuarão, em princípio, predominantemente em escolas de nível médio, públicas ou privadas. A princi- pal acusação que se faz a estes docentes é justamente a sua “má-formação” e, em particular, o seu desconhecimento a respeito “de física”, o que os torna incompetentes para “ensinar” seus alunos, que ficam, dessa forma, “abandonados”. Refiro-me aqui a um “senso comum”, soci- almente difundido. Muitas vezes, licenciandos e licenciados compartilham desse sentimento, assim como as diversas instâncias que lidam com a questão educacional, tanto na esfera gover- namental quanto nas universidades.

Entretanto, a conquista de uma “melhor formação”, de “mais conhecimento”, e um maior envolvimento com a reflexão, seja a respeito “de física” ou de “ensino de física”, representa também a conquista de novas possibilidades de atuação profissional, longe das salas de ensino médio, algumas vezes continuando a atuar ainda em salas de aula, mas em níveis em que essa atividade é social e economicamente mais valorizada, como no nível superior e, algumas vezes, como é o meu caso, em cursos de licenciatura, formando os professores que atuarão neste nível mais desvalorizado. Há evidentemente exemplos de pessoas que optam por continuar a trabalhar no nível médio de ensino e em escolas públicas. São exceções que confirmam a regra de que o conhecimento e a formação adquirida representam, ao invés de novas e mais potentes formas de compreensão e transformação da realidade social e profissional em que o indivíduo se encontra, novas e mais potentes formas de ascensão social e abandono da antiga profissão. A tese de doutorado que estou escrevendo neste momento me “capacitará”, talvez, a trabalhar nos mais valorizados cursos de pós-graduação, onde poderei ajudar a formar aqueles que atuarão na formação dos professores que atuarão no nível médio de ensino. E, nessa espécie de “fuga para o alto”, discuto a formação de pessoas que farão aquilo que já não desejo mais para mim.

Ainda que a partir de uma perspectiva diferente, sinto-me tão desumanizado quanto meus alunos por essa situação de opressão, em que alunos de diversos níveis são compreendidos como vítimas passivas e incapazes da auto-consciência, em que o conhecimento é visto como arma de ascensão social individual, de “ter mais” ao invés de “ser mais”, e em que a profissão que tem como objetivo justamente a socialização do conhecimento é estigmatizada. E, apesar do esforço de reflexão que venho desenvolvendo, continuo sentindo-me frequentemente mais imerso que

inserido nessa realidade.

Ao procurar, entretanto, observar mais distanciadamente as contradições internas à própria situação em que me encontro, noto que o maior desafio envolvido nessa ação cultural em que me insiro é a superação da compreensão do conhecimento como algo que se adquire, algo de que alguém se apropria. Compreendido nessa dimensão individual e reificada, em nossa suposta “sociedade do conhecimento”, o conhecimento, esvaziado de sentido, torna-se o instrumento ideológico através do qual justificamos o maior valor social daqueles que o têm sobre aqueles que não o têm e a escola, através do massacre de conhecimentos a respeito dos quais alunos e professores são supostos, respectivamente, desconhecedores e mal-conhecedores, torna-se local privilegiado para a reprodução dessa ideologia. Evidentemente, a superação desta “compreen- são” do conhecimento não pode se realizar simplesmente no universo das ideias, desvinculada da superação de uma estrutura social, econômica, política e cultural maior na qual ela se insere. Mesmo assim, procuro agir e refletir, dentro do pequeno universo no qual consigo atuar, pro- curando colocar em tensão essa estrutura. Por isso, ao invés do conhecimento como aquisição, opto pelo conhecimento como leitura e a leitura como tradução, como transporte, como relação entre diferenças, como multiplicação de sentidos, como diálogo. Por isso, o esforço de leitura poética a propósito do conhecimento sobre o mundo.

O esforço de reflexão que procuro desenvolver nessa tese e em minha relação com o grupo de licenciandos com que trabalho não visa desenvolver formas mais eficientes de “introjeção” de conhecimento ou mesmo de “pensamento crítico” nestes estudantes. Ao contrário, trata-se de um esforço de construção de situações que potencializem as nossas possibilidades de estra- nhamento com relação a essa realidade espessa que nos envolve e de criação de novas formas de leitura e inserção nessa mesma realidade que, entretanto, torna-se outra frente a nossos novos olhos e mãos. Neste singelo encontro entre seres que se reconhecem na interminável busca em comum pela humanização, sou capaz de dar sentido ao meu trabalho. Como afirma Shor:

“O estudo situado apresenta os objetos sociais como desafios aos dados de nossas vidas. Esses limites, ou dados, são re-percebidos, finalmente, como membranas em torno de nós, limites históricos, grandes muros construídos politicamente, que contactamos para descobrir pontos vulneráveis, por onde atravessar. Mesmo o reconhecimento de que estamos rodeados de membranas políticas já é um progresso. Então, encontrar os meios para ir além desses limites é uma tarefa do diálogo” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 68).