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Jogos e reflexões a propósito do formato da Terra

4 Em busca de uma experiência estética do espaço e tempo físicos

4.2 A ordenação vertical do mundo

4.2.1 Jogos e reflexões a propósito do formato da Terra

Embora o sistema de mundo Aristotélico-Ptolomaico permita, como vimos, a estruturação de uma hierarquia vertical absoluta, no sentido de que é sempre possível comparar dois lugares, estabelecendo qual deles é o mais alto e qual é o mais baixo, a compreensão que ele oferece de uma Terra esférica, localizada no centro de um Universo também esférico – centro este que é associado ao lugar natural dos corpos compostos predominantemente pelos elementos terra ou água – representa uma sofisticada construção intelectual que envolve, entre outros elementos, a noção de uma direção vertical relativa.

Talvez fosse mais fácil ao homem antigo ou medieval observar um modelo de seu sistema de mundo e localizar-se nele, compreendendo que a direção que ele associa ao “para baixo” é, na verdade, uma direção radial, voltada sempre para o centro do universo. Com a multiplicidade de centros própria do sistema heliocêntrico, talvez a dificuldade em associar a direção “para baixo”, que a pessoa vê e sente, com uma direção radial voltada para um centro móvel, que gira ainda em torno de um segundo centro, seja maior. Nesse sentido, é, talvez, compreensível que uma pessoa observe um desenho ou mesmo uma maquete do sistema heliocêntrico e sobreponha a eles uma organização vertical do espaço, “exterior” ao modelo, não compreendendo, por exemplo, como é possível que ela possa ficar “de cabeça para baixo”.

Um dos motivos que me levou a dar um certo destaque, no presente trabalho e na disciplina

Oficina de Projetos, a essa questão da relatividade da direção vertical foi a percepção que fui

adquirindo aos poucos, em meu cotidiano de trabalho docente, de que questões como essas não constituem um substrato de compreensão comum a todos os estudantes de um curso de

licenciatura em física, ao contrário do que era minha expectativa inicial. O trabalho de Cristina Leite (2006) me mostrou que, com alguma frequência, professores de ciências tem concepções incompatíveis com a noção de uma Terra esférica, aproximando-se da noção de uma Terra plana. Não deve ser uma surpresa, portanto, que haja também estudantes de um curso de licenciatura em física com dúvidas a propósito dessas questões. No contexto altamente desorganizado da educação brasileira, os estudantes são levados a percursos formativos altamente não-lineares e frequentemente travo contato com estudantes com conhecimentos mais avançados em uma área específica e algumas dúvidas em temas considerados muito mais fundamentais e elementares.

Quando um adulto sente-se desconfortável com “fatos” considerados, em nossa cultura, óbvios e auto-evidentes – como estes associados à esfericidade da Terra e também ao heliocen- trismo – ele sente vergonha de suas dúvidas. A tendência à formação, então, de uma relação mais dogmática com o conhecimento se fortalece. Afinal: quem nunca viu uma foto da Terra, vista do espaço? Como é possível ter dúvidas de que ela é “redonda”? Claramente, mais difícil do que evocar evidências empíricas que “demonstrem” a esfericidade (ou ao menos o caráter não-plano) da Terra, é constituir uma compreensão do mundo capaz de abarcar a possibilidade de uma Terra esférica e móvel. E quão pouco evidente, ou melhor, quão evidentemente falsa é a proposição de que “massa” atrai “massa”? Se não estiver inserida no sistema simbólico associ- ado à mecânica clássica, essa afirmação levanta uma infinidade de contestações, tais como: “por

que então não observamos a atração entre dois corpos quaisquer?”; “como pesar a Terra?”;

etc.

Dedicar assim um esforço considerável a propósito de questões consideradas “óbvias” visa desconstruir uma relação dogmática com o conhecimento, valorizar a atitude epistemológica de questionamento a propósito dos fundamentos de nossas convicções. De resto, sem esse tipo de atitude, temos poucas esperanças de rever todo um entulho de conhecimentos equivocados ou mal assimilados que aprendemos ao longo de nossa vida escolar e não-escolar3.

Como as demais formas de relatividade, a da direção vertical se opõe à experiência ime- diata. A abordagem aqui proposta vai na direção de explorar ao máximo essa tensão com o imediatamente evidente. Mais do que simplesmente negar o imediato, brincar com suas contra- dições e explorá-las poeticamente.

Com esse objetivo, propus um jogo de improvisação teatral em que os participantes deve- riam “subverter a direção vertical”. Deveriam fazer-nos crer que a direção vertical deles não era a mesma que a nossa e, a partir daí, explorar as potencialidades dessa situação (quadro 7). Nas 3Posso encontrar registros dos efeitos desse trabalho por exemplo nas reflexões que estudantes publicaram no blog da disciplina a que fiz referência ao discutir a constituição de debates / julgamentos como forma de constituição de uma relação de estranhamento com relação ao conhecimento físico, na seção 2.5.2 na página 90.

Quadro 7Proposta de jogo: “subversão” da direção vertical.

objetivos: “Estranhar” a distinção entre vertical e horizontal.

orientação: Construir um jogo de improvisação em que o “onde” ficcional tenha a direção vertical girada.

foco: Tornar real (fisicalizar) o lugar e a direção vertical ficcionais.

exemplos: Uma pessoa está sobre um banco, trocando uma lâmpada; o banco cai, mas a pes- soa segue flutuando até ser salva por um anjo voador. Um halterofilista levanta com grande tranquilidade grandes pesos, mantendo-os inclusive suspensos no ar, se mostrando para uma moça que lê uma revista.

observação: A possibilidade de “brincar” com o caráter fantástico ou absurdo associado à cons- trução dessa segunda verticalidade, se não surgir naturalmente, pode ser proposta em uma segunda repetição do jogo, constituindo assim, de forma mais explícita, as relações de estranhamento pretendidas.

avaliação: Conseguimos ver e crer no lugar e na direção vertical propostos? ref. vis.: figura 4.4.

figuras 4.4, estão expostas fotos extraídas do registro em vídeo dessa atividade (a operação da câmera e seu posicionamento também ficou a cargo dos alunos-jogadores). Ao longo do semes- tre, outras explorações dessa proposta foram realizadas autonomamente por alguns estudantes e postadas no blog da disciplina. Nas figuras 4.5 e 4.6, vemos a montagem de uma fotografia e a criação de um vídeo que brincam com a subversão da direção vertical. Para dialogar com essas produções dos estudantes, eu postei registros de obras do artista plástico brasileiro Ti- ago Judas e da bailarina americana Trisha Brown que também criam a partir do jogo com essa mesma questão (figuras 4.7 e 4.8). Enquanto o vídeo de Tiago Judas trabalha com a mesma ilusão criada pelas imagens dos alunos, realizando movimentos que parecem impossíveis de- vido à ilusão criada, a bailarina Trisha Brown propõe o contrário, ou seja, não cria uma ilusão, mas realiza um deslocamento que seria uma simples caminhada não fosse pelo fato de que ela é realizada trocando, de fato, a vertical pela horizontal. Na figura 4.9, vemos a referência à “Casa Maluca”, trazida por um aluno, instalação do Museu Catavento que, pela organização das pa- redes e objetos, cria ilusões com relação a verticalidade. Por fim, na figura 4.10, vemos uma colagem realizada por uma estudante que questiona o sentido da noção de vertical em escala astronômica. O seguinte texto acompanha as imagens:

“Quem foi que disse que o céu está acima de nós? Ou que estamos abaixo de um céu inteiro? Estamos de pé ou de ponta cabeça?

Quem decide isso somos nós! Afinal, tudo depende do referencial. E o seu referencial, qual é?”

Figura 4.4: Instantâneos extraídos de vídeos realizados em aula a partir da proposta de operar uma subversão da direção vertical.

Figura 4.5: Foto elaborada por aluno da disciplina, intitulada “Vertical ou horizontal?” e foto mostrando os “bastidores” da montagem.

Figura 4.6: Instantâneos extraídos de vídeo elaborado por aluno da disciplina, intitulado “De horizontal a vertical"

Figura 4.7: Instantâneos extraídos do vídeo da instalação “Matiz vertical” do artista plástico Tiago Judas.

Figura 4.8: Fotos de trabalhos da bailarina Trisha Brown. A esquerda “Man Walking Down the Side of a Building” (1970).

Figura 4.9: Fotos tiradas por aluno na “Casa Maluca” do Museu Catavento.

Figura 4.10: Colagem realizada por estudante a partir da imagem de Galáxia e boneco, com- pondo as fotografias de nome “Norte, sul, para cima, ou para baixo?"

(a) (b) (c)

Figura 4.11: Conjunto de imagens postadas por estudante em reflexão intitulada "Quase todas as imagens são baseadas em algum engano”.

Entre os comentários que foram feitos a respeito dessa postagem, cito um:

“É uma discussão interessante, pois a Terra gira constantemente, então se o céu esta acima e o inferno abaixo, nós ficamos de dia no céu e à noite no inferno, que dureza. Porém o que é céu e o que é inferno?, não temos uma explicação clara sobre isso e por isso não há como relacionar a nossa posição espacial a coisas imaginarias. A montagem foi bem interessante, o fundo preto fez parecer que era uma imagem fotográfica da galáxia e que o boneco tinha sido inserido na imagem, mas até a imagem foi construída no fundo preto. Muito bem montado”.

(Comentário de estudante, publicado no blog da disciplina).

É interessante que os jogos em torno à relatividade da verticalidade tenham levado os estu- dantes, nessa última contribuição e comentário, a refletir justamente a respeito da representação da verticalidade em escala astronômica e de suas repercussões no universo simbólico associado às representações religiosas, mostrando como o o espaço simbólico que se expressa n’A divina

comédia de Dante mantém-se presente – embora não na mesma forma – em nossas representa-

ções espaciais atuais.

Outra contribuição que podemos remeter às reflexões associadas à relatividade da vertica- lidade intitulava-se “Quase todas as imagens são baseadas em algum engano” e mostrava, entre outras, as figuras 4.11. A apresentação de uma imagem “invertida” do mapa múndi leva ao questionamento da associação entre “norte” e “sul” e “acima” e “abaixo”, correspondência que ilustra os “enganos” em que são baseadas “quase todas as imagens”, segundo o título. Um texto acompanhava a contribuição, do qual extraio um fragmento:

“Se refletirmos apenas um pouco ao observar essa imagem [figura 4.11b], podemos tirar várias conclusões, como por exemplo, que a versão [de mapa múndi] que conhecemos seja apenas uma forma de enxergar o mundo e que po- dem existir muitas outras, como os exemplos de mapas abaixo [figura 4.11c]. Mas será que é só um acaso o mapa nos ser apresentado desde crianças tal como o conhecemos? Ou será que também é o que o ‘autor’ quer nos transmi- tir?”

Quadro 8Proposta de jogo: Debate sobre o formato da Terra

objetivos: desenvolver a percepção a respeito dos fundamentos de nossas convicções; exerci- tar a escuta de argumentos lógicos e a elaboração, em tempo presente, de contra- argumentos; estabelecer vínculos entre a representação abstrata do espaço astronô- mico e a percepção concreta do espaço vivencial.

orientação: os jogadores dividem-se em três grupos e preparam uma argumentação inicial: os defensores de uma Terra plana, os defensores de uma Terra esférica e um grupo de jurados. No jogo, cada grupo será representado por um jogador, que poderá, a qualquer momento ser substituído, por solicitação própria, de algum membro de sua equipe ou por sinalização do professor. Os demais jogadores permanecem em um público, prontos para realizar a substituição indicada a qualquer momento. O diálogo entre os três representantes das equipes se desenvolve no espaço de acordo com a seguinte dinâmica: o jogador que deseja falar se desloca pelo espaço até uma nova posição (explorando os planos baixo, médio e alto), da qual ele fala e na qual ele permanece até a próxima vez em que for se manifestar. Ao final do debate, os jurados, que a todo tempo puderam formular questionamentos, dão o seu parecer, definindo a tese vencedora.

foco: na convicção associada ao grupo a que pertence (na crença no caráter plano da Terra, ou em seu caráter esférico ou na ausência de posicionamento prévio, mantendo-se em um estado de indecisão); na escuta dos demais grupos e no desen- volvimento de contra-argumentos.

avaliação: Em que medida os grupos conseguiram permanecer convictos na posição que de- veriam defender ou, no caso dos jurados, conseguiram se manter sem um posicio- namento prévio?

(Fragmento de contribuição de estudante, publicada no blog da disciplina).

Debate sobre a esfericidade da Terra. Ao longo dos semestres em que desenvolvi a dis-

ciplina “Oficina de Projetos”, experimentei diferentes formas de organização de debates, bus- cando utilizar as ferramentas propiciadas pela dinâmica de jogos teatrais. O risco que procurei evitar nessas proposições é o de transformar o debate em uma disputa passional em que o exercício da escuta e da argumentação fosse substituído por uma simples repetição mecânica e enfática das teses que deveriam ser defendidas por cada grupo, sem uma progressiva quali- ficação do debate. Ao mesmo tempo, um objetivo mais difícil do qual procurei me aproximar – não só nessa atividade, como também na grande maioria dos jogos propostos – refere-se ao estabelecimento de relações entre um espaço abstrato, teórico, associado, nesse caso, à repre- sentação astronômica da Terra e o espaço mais próximo de nossa vivência corporal. Apresento no quadro 8 a última forma em que experimentei a proposição deste jogo. Por compreender a capacidade de manter-se em um estado de atenção, escuta e contra-argumentação não apenas

como um estado “mental”, mas como um estado no qual o corpo está envolvido integralmente, as regras do debate procuraram provocar este estado de envolvimento integral dos jogadores na ação de debater. Para isso, ao invés de todo o grupo participar ao mesmo tempo do debate, a dinâmica envolvia a participação de três jogadores a cada vez. A possibilidade de a qualquer momento substituir os jogadores visa criar em todos um estado de prontidão e de envolvimento com o debate. Além disso, a adoção de uma regra que intercala a movimentação do jogador até um ponto e uma posição de sua escolha e a emissão de discurso e posterior escuta dos demais, em pausa nessa posição, pretendia de alguma forma aproximar a argumentação teórica da parti- tura de movimentação criada. Como o uso da lousa não era previsto, as imagens envolvidas na discussão precisavam ser criadas com o corpo, “no espaço”.

Realizei debates a propósito do formato da Terra, com grupos distintos, por três vezes consecutivas, alcançando algumas vezes um envolvimento maior, outras menor, com o jogo. Uma parcela dos estudantes permanece pouco confortável com esse tipo de proposição, não compreendendo bem o sentido de realizar um debate entre uma doutrina “errada” e uma “certa”. Uma outra parcela, em compensação, costuma envolver-se com o desafio – especialmente se ele se associa à defesa da doutrina “errada” – e esforça-se bastante na construção da argumentação. Alguns elementos gerais que pude identificar nesses debates estão sintetizados a seguir:

• Foi frequente a construção de uma defesa relativamente ingênua da doutrina de uma Terra esférica. Em particular, a justificação da existência de uma força de atração gravitacional entre “corpos com massa” foi algumas vezes pressuposta como verdadeira e evidente, sem nenhuma justificação, e outras vezes foi justificada como uma conclusão evidente que se pode obter da queda de um objeto na Terra. Além do mais, algumas vezes, também os defensores da Terra plana se deixaram convencer por esse tipo de demonstração.

• Na única vez em que a doutrina da Terra plana saiu vitoriosa do debate, o grupo que a defendia (em particular, uma integrante desse grupo), aderiu com bastante veemência não apenas a argumentos empíricos em defesa da doutrina, como também e principalmente a uma visão de mundo que a justificasse.

• Em alguns momentos, o juri já apresentava de antemão uma preferência pela doutrina da Terra esférica, mas, de maneira geral, ele conseguiu manter uma postura não-tendenciosa. • Argumentos empíricos em defesa da Terra esférica tais como a forma gradual de desapa- recimento de um barco no horizonte, ou a sombra da Terra na Lua em um eclipse foram utilizados com pouca frequência.

frequente em defesa da Terra esférica.

• A adoção de um modelo em que o sol, como um poste em uma rua, iluminasse distinta- mente diversas partes da Terra devido ao fato de algumas partes estarem mais próximas e outras mais distantes foi um modelo comum em defesa da Terra plana e em resposta ao tipo de questionamento evocado no item acima.

• A impossibilidade de perceber a curvatura da Terra em um experimento in loco foi um argumento frequente em defesa da Terra plana.

• A possibilidade de dar uma volta ao mundo foi também bastante utilizada em defesa da Terra esférica. Entretanto, os defensores da Terra plana responderam dizendo que também em um plano é possível descrever um círculo.

• Compreender como não caímos de uma Terra esférica e, por outro lado, porque a água da Terra não escorre pelo “fim do mundo” em uma Terra plana foram desafios para os dois grupos.

• Modelos “mistos”, tais como uma Terra plana de um lado e “redonda” do outro (um hemisfério) ou uma Terra plana e circular foram eventualmente propostos.

Uma postura frequente nesses debates, especialmente entre os mais resistentes a essa proposta de jogo, envolvia a crença de que era “óbvia” e evidente a esfericidade da Terra e o desprezo a priori por qualquer argumentação em sentido contrário. Isso, evidentemente, não impedia que esses jogadores eventualmente “se traíssem”, demonstrando modelos de mundo incompatíveis com uma Terra esférica. Por exemplo, ao invocar o “experimento” de Eratóstenes, frente à solicitação de explicá-lo, certa vez, os jogadores, um pouco inseguros sobre como proceder, fizeram um desenho análogo ao da figura 4.1c na página 171, explicando as diferentes inclina- ções observadas da incidência solar através de uma imagem análoga à de um poste em uma rua plana, modelo que se mostra incompatível com a esfericidade da Terra. Tornar mais explícitas essas incongruências associa-se assim à intenção de combater uma relação dogmática com o conhecimento, relação que, em alguma medida, está presente em todos nós.

Ao mesmo tempo, mostrar o caráter “difícil” da argumentação envolvida na demonstração de um fato aparentemente tão banal vincula-se ao desejo de mostrar que não é apenas a física do século XX que se revela complexa e sofisticada, mas que essa é uma característica de todo o pensamento científico (e também do não-científico). Como discutiremos a seguir, as diferenças e as semelhanças entre planos e esferas revela uma sutileza muito maior do que a que transparece à primeira vista.

4.3

Retas e círculos como elementos de estruturação do es-