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Criatividade como forma de sensibilidade e de envolvimento com o ambiente

2 Educação como arte

2.1 Docência como criação

2.1.1 Criatividade como forma de sensibilidade e de envolvimento com o ambiente

Como entender o papel da criatividade na docência? Precisamos, primeiro, construir uma compreensão comum do que seja a criatividade. Há uma forma talvez demasiadamente superfi- cial de entender a criatividade como uma capacidade ilimitada de fazer coisas novas, indepen- dentemente de qualquer experiência ou contexto anterior. Dessa forma, a capacidade de criação fica parecendo um dom incompreensível e inatingível e a criação um gesto “gratuito”, sem sig- nificado. Não é esse o ponto de vista que assumo aqui. Para construir uma visão alternativa a esta, apoio-me na concepção desenvolvida por Fayga Ostrower (1977), que abordamos a seguir. Se imaginarmos a criação como uma faculdade ativa, de construção, e a sensibilidade e a percepção como faculdades passivas, de recepção, será a primeira vista surpreendente ler a definição dessa autora, para quem “a criatividade não seria então senão a própria sensibilidade” (OSTROWER, 1977, p. 17). Como é possível tal equivalência? Como é possível que perceber o mundo como é possa ser equivalente a criar o que ainda não existe? Uma chave para a compreensão dessa definição da autora será adotar uma abordagem que não dicotomize tão esquematicamente faculdades ativas e passivas.

Comecemos percebendo o caráter ativo das faculdades aparentemente passivas da sensibi- lidade e da percepção. Fayga define a sensibilidade como a própria condição de abertura para e de troca energética com o mundo, que não só o homem, mas todo ser vivo precisa ter para manter-se vivo. Evidentemente porém, nem tudo que nossa sensibilidade “capta” torna-se cons- ciente para nós. Nesse sentido, a percepção seria a dimensão consciente da sensibilidade. Como dimensão consciente, ela não se identifica com supostas sensações elementares e independentes do sujeito, mas já é uma certa ordenação em uma forma específica, “uma elaboração mental das sensações"2. Dessa forma, a percepção delimita o que somos capazes de sentir e compreender e “cria uma barreira entre o que percebemos e o que não percebemos”. Ela:

“articula o mundo que nos atinge, o mundo que chegamos a conhecer e den- tro do qual nos conhecemos. Articula o nosso ser dentro do não-ser” (OS- TROWER, 1977, p. 12-3).

Esse limite estabelecido pela percepção, essa forma específica que ela dá ao nosso ser, não é inato ou estabelecido a priori, mas o resultado de nossa história pessoal e cultural. A maneira como nos percebemos e como percebemos o mundo é o resultado de nossa longa história de construção de formas simbólicas que nos permitem ver, sentir e pensar o mundo.

2Comparar com a discussão, na mesma direção, que Cassirer constrói a respeito da percepção, conforme co- mentamos na página 130.

A associação entre criação e sensibilidade se dá porque, ao invés de ser uma fabricação de algo novo a partir “do nada”, a criatividade é, para Fayga, a capacidade de dar forma, de formar algo novo. Formar a partir do quê? De nossa sensibilidade e de nossa percepção sobre o mundo e sobre uma materialidade, uma linguagem específica. Essa formação, essa ordenação de uma certa materialidade não é distinta da ordenação que a percepção realiza. Ato intencional e consciente – mas em grande medida intuitivo – a criação estabelece, a partir de materialidades diversas, formas que convertem “a expressão subjetiva em comunicação objetivada”:

“Se a fala representa um modo de ordenar, o comportamento também é orde- nação. A pintura é ordenação, a arquitetura, a música, a dança ou qualquer outra prática significante. São ordenações, linguagens, formas; apenas não são formas verbais, nem suas ordens poderiam ser verbalizadas” (OSTROWER, 1977, p. 24).

Por ser consciente e intencional, a criação não é gratuita, mas movimentada por sucessivas escolhas. Cada escolha, por um lado, destrói uma infinidade de potencialidades não realizadas e, por outro, cria uma tensão que ativa um novo conjunto de potencialidades que animarão a próxima escolha. Um exercício proposto por Ostrower (2003, p. 20-1) ilustra esse processo: em uma aula de arte para uma turma de operários, a autora solicita que um aluno vá a lousa e desenhe uma linha qualquer; a seguir, solicita que uma segunda pessoa vá ao quadro e desenhe uma segunda linha que complemente a primeira; a cada etapa, ela comenta com os estudantes sobre os possíveis sentidos de suas contribuições. Cada escolha elimina uma multiplicidade de opções de desdobramento possíveis em função de uma, que efetivamente se realiza e se abre em novas possibilidades, que motivarão novas escolhas. Dois exemplos desse processo estão expostos na figura 2.1.

Um estado de tensão psíquica, uma espécie de tônus criativo, é necessário para alimentar o processo de criação e dar sentido às escolhas realizadas. A capacidade de manter esse estado tonificado e de realimentá-lo com a própria criação é parte essencial do processo, garantindo a vitalidade da criação. Mais do que uma descarga de energia e tensão, criar representa:

“uma intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer; e, em vez de substituir a realidade, é a realidade; é uma realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de nos articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos. Somos, nós, a realidade nova” (OSTROWER, 1977, p. 28).

Vemos aqui a mesma vocação humana de “ser mais” conceituada por Paulo Freire, a mesma consciência da própria incompletude e a mesma busca por nossa humanização. Evidentemente, cabe ressaltar que não se trata aqui de propor qualquer solução mágica do tipo: “tornemos os alunos criativos e eles deixarão de ser oprimidos”. Ao contrário, a concepção de criatividade

(a) (b)

Figura 2.1: Exercício proposto por Fayga Ostrower (2003, p. 20-1) no qual estudantes vão sucessivamente ao quadro e desenham uma linha, dialogando com o conjunto de linhas já dese- nhado anteriormente. A cada momento, uma escolha que destrói potencialidades não realizadas e cria novas tensões no espaço, abrindo novas possibilidades de criação.

aqui apresentada aborda a forma como lidamos com um certo estado de percepção, que é cons- tituído histórica, social e culturalmente e não dado a priori, a respeito do mundo, das relações sociais e de nós mesmos neste mundo; a criação remete à forma como colocamos em tensão essas formas de percepção e como buscamos re-ordená-las, re-formá-las em nossas representa- ções simbólicas.

O caráter social, coletivo deste processo de criação, embora esteja sempre presente (uma vez que a nossa própria percepção é constituída socialmente), é particularmente acentuado em fazeres eminentemente coletivos como são o teatro e a sala de aula. Nesse sentido, vale a pena complementar a abordagem sobre a criatividade exposta até agora com contribuições da diretora teatral e arte-educadora Viola Spolin, sistematizadora de uma forma de improvisação teatral fundamentada em jogos teatrais, que discutiremos em maior detalhe um pouco adiante.

Ao valorizar aquilo que chama de experiência criativa, Spolin compreende a noção de ex- periência de maneira semelhante a como Ostrower entende a sensibilidade, mas enfatizando a noção de troca com o ambiente em todos os níveis, de penetração no ambiente, envolvendo-se totalmente com ele nos níveis intelectual, físico e intuitivo. Parece-me que essa diferença de ênfase deve-se ao interesse de Spolin estar associado a uma criação que se dá no exato aqui e

agora de uma troca, em um jogo de improvisação teatral, entre os jogadores e destes com o

público, através das relações que se estabelecem no espaço entre todos estes corpos expressi- vos. O ato de criação continua sendo um ato consciente de múltiplas escolhas em que a intuição joga um papel fundamental, mas o caráter não mediado deste envolvimento com o ambiente, em que o ritmo da cena não pode ser interrompido pela indecisão dos jogadores, em que qual- quer ação que se realize, qualquer movimento, qualquer respiração, é necessariamente parte do jogo criativo construído, leva Spolin a buscar a atitude de espontaneidade que advém de um envolvimento total com o imediato, com o aqui e agora do mundo em constante transformação:

“Através da espontaneidade somos reformados em nós mesmos. A esponta- neidade cria uma explosão que por um momento nos liberta de quadros de referência estáticos, de memória sufocada por velhos fatos e informações, de teorias não digeridas e técnicas que são na realidade descobertas de outros. A espontaneidade é um momento de liberdade pessoal quando estamos frente a frente com a realidade e a vemos, a exploramos e agimos em conformidade com ela. Nessa realidade, as nossas mínimas partes funcionam como um todo orgânico. É o momento da descoberta da experiência, da expressão criativa” (SPOLIN, 1998, p. 4).

E tal como ocorre segundo Fayga, esse momento de liberdade associado à expressão criativa tem como resultado não uma mera descarga ou a criação de uma substituição do real, mas a criação de uma realidade nova, associada a um novo nível de percepção e consciência:

“Em qualquer forma de arte procuramos a experiência de ir além do conhecido. Muitos de nós ouvimos os movimentos do novo que está para nascer, mas é o artista que deve executar o parto da nova realidade que nós (plateia) impaci- entemente esperamos. É a visão desta realidade que nos inspira e regenera. O papel do artista é dar a visão” (SPOLIN, 1998, p. 14).