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3 Ciência como arte

3.1 Ciência e beleza

3.1.1 Verdade como beleza

Cientistas célebres frequentemente referem-se à importância da noção de beleza no trabalho científico. De maneira geral, suas definições de beleza associam-na a uma sensação de harmonia entre as partes de uma construção teórica:

“Beleza é a conformidade própria entre as partes e das partes com relação ao todo” (HEISENBERG, 2008 apud KOSSO, 2002, p. 41).

“quando você vê duas leis que estão conectadas de tal forma que o raciocí- nio sozinho levará de uma a outra, você aprecia a beleza da relação entre os enunciados” (FEYNMAN, apud KOSSO, 2002, p. 41).

Poincaré, como vimos na epígrafe deste capítulo, associa a sensação de beleza à adequação das coisas percebidas à nossa inteligência. Dessa forma, a beleza, ao revelar uma sensação de harmonia entre as partes de um determinado todo, revela também um forte vínculo entre a estruturação do mundo exterior, objetivo, e a do mundo interior, subjetivo. É nesse sentido que Kosso (2002) defende a importância de se utilizar critérios estéticos a fim de estabelecer a distinção entre simplesmente saber e realmente compreender. Dessa forma, para este autor, a rejeição por exemplo do excesso de hipóteses ad-hoc pode ser justificada por uma avaliação estética de seu efeito na estrutura de uma teoria. O fato de essas hipóteses constituírem um vínculo mais acidental com o conjunto da teoria acaba por romper com a sensação de harmonia e beleza propiciadas pela teoria.

Nesse sentido, o estudante que sente-se insatisfeito pelo fato de a ciência, para ele, não con- seguir “realmente explicar os fenômenos” revela a insatisfação de saber, mas não compreender. E essa verdadeira compreensão é alcançada também por um desenvolvimento da percepção da dimensão estética da ciência, da harmonia de sua construção e da relação existente entre essa or- ganização e a própria estruturação de nossa subjetividade. Perceber na construção científica, ao invés dessa harmonia, apenas um amontoado monstruoso de equações não diz respeito necessa- riamente ao caráter do próprio objeto de apreciação (a construção científica) ou do sujeito que a aprecia, mas à relação que se estabelece entre os dois. Eventualmente, a sensação de incompre- ensão, de desgosto com a formulação da teoria, se suficientemente intensificados, podem evoluir até finalmente transformarem-se em compreensão e satisfação: a desarmonia aparente torna-se repentinamente harmônica. Outras vezes, evidentemente, não: e o que parecia monstruoso pode continuar parecendo igualmente monstruoso.

Cientistas tais como Einstein, Fermi e Dirac parecem ter atribuído importância fundamental à avaliação estética de modelos e teorias. Root-Bernstein (2002, p. 69) cita exemplos biográfi- cos de situações em que Einstein e Fermi chegam a recusar proposições científicas sem utilizar nenhum argumento racional, mas aludindo simplesmente ao desconforto intuitivo que sentiam frente a elas. Mesmo quando não podia negar a validade de uma proposição, Einstein, segundo esse autor, demandava sempre razões adicionais que pudessem convencê-lo de que ela fazia sentido, que lhe permitissem compreendê-la, para só então declarar-se “convencido”. O au- tor sintetiza o sentido das posturas desses cientistas ao afirmar que “apenas quando sentimos que sabemos e sabemos o que sentimos nós realmente compreendemos” (ROOT-BERNSTEIN, 2002, p. 70). Por reconhecer a dimensão intuitiva, emocional, sensível e intelectual dessa compreensão verdadeira, o autor atribui a essa forma de conhecimento o termo sinosia: uma combinação das palavras sinestesia (uma fusão de sentidos, de formas de percepção) e gno-

sis (do grego, conhecimento, em seu sentido mais amplo). Através deste termo, ele enfatiza

particularmente a conexão entre o pensamento científico e a percepção sensorial do mundo, “anterior” ao uso de palavras e da linguagem matemática. Root-Bernstein fornece exemplos que mostram a relevância de formas táteis e visuais de percepção e imaginação. Em especial, a referência à importância da imaginação visual no pensamento científico já foi destacada tam- bém por outros autores, tais como Gerald Holton, e encontramos evidência dela, por exemplo, na citação a seguir de Einstein:

“As palavras ou a linguagem, escritas ou faladas, não parecem desempenhar nenhum papel no mecanismo de meu pensamento. As entidades físicas que parecem servir como elementos de pensamento são alguns signos ou imagens mais ou menos claras que podem ser ‘voluntariamente’ reproduzidas e combi- nadas” (EINSTEIN, apud HOLTON, 1996, p. 189).

Já o posicionamento de Dirac a respeito da importância da beleza da expressão matemática de uma teoria é invocado por McAllister (1990) para contrapor-se à dicotomização que diversas doutrinas epistemológicas, associadas por exemplo ao positivismo lógico ou ao pensamento de Karl Popper, estabelecem entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação. Dentro do

contexto da descoberta, quando o cientista cria uma determinada teoria, não haveria, segundo

essas doutrinas, nenhuma regra ou norma que devesse necessariamente ser cumprida e motiva- ções “irracionais”, “subjetivas” poderiam jogar um importante papel na proposição da teoria. Porém, no contexto da justificação, deveria predominar apenas o confronto entre as previsões da teoria e os resultados de medições experimentais, não cabendo outras formas mais subjeti- vas de avaliação. Em contraste com essa concepção, Dirac, por diversas vezes, declarou sua convicção de que, se a expressão matemática de uma teoria manifestasse o que ele chamou de uma “beleza essencial”, mesmo que houvesse uma contraposição entre suas previsões e resul-

tados experimentais, isso não seria motivo para descartá-la, indicando mais provavelmente um problema menor associado à modelagem do fenômeno experimental ou à sua medida. Dessa forma, mesmo no contexto da justificação, a avaliação estética de uma teoria pode ser algumas vezes até mesmo mais relevante que a sua base empírica:

“É a beleza essencial da teoria [da relatividade geral] que eu sinto ser a verda- deira razão para acreditar nela (...)

Suponha que uma discrepância tenha aparecido, bem confirmada e substancial, entre a teoria e observações. Deveríamos considerar por isso a teoria errada? Eu diria que a resposta à última questão é um enfático não. (...) Qualquer pessoa que aprecie a harmonia fundamental que conecta a maneira como a na- tureza funciona e os princípios matemáticos deve sentir que uma teoria com a

beleza e a elegância da teoria de Einstein precisa ser substancialmente correta.

Se uma discrepância pode aparecer em alguma aplicação da teoria, ela deve ser causada por algum elemento secundário, associado a esta aplicação, que não foi adequadamente levado em conta e não por um defeito dos princípios gerais da teoria” (DIRAC, apud MCALLISTER, 1990, p. 95, destaques meus).

Estes exemplos parecem sugerir que, em alguns momentos, os cientistas se deixam guiar, em seus julgamentos, não apenas pelas “leis” da verdade, como também pelas “leis” da beleza. Utilizando as relações analógicas presentes na tabela 3.1, isso quereria dizer que eles se vale- riam, para isso, não apenas dos “códigos” do raciocínio, como também daqueles associados ao

gosto. Analisando a maneira como eles compreendem a beleza, porém, vemos que, longe de se

opor ao raciocínio, o seu gosto estético é profundamente racional e chega mesmo a sobrepor-se à dimensão lógica do raciocínio, como uma segunda camada desse raciocínio, permitindo dis- tinguir, entre diversos raciocínios igualmente válidos do ponto de vista estrito da lógica, aqueles que, devido à “beleza”, à “elegância” e à “harmonia” que revelam, parecem revelar uma verdade mais fundamental.

Não se trata, portanto, de opor um aspecto irracional a um racional, mas de identificar uma dimensão mais intuitiva da racionalidade, que não deriva da aplicação explícita de uma regra, mas advém do intenso e integral envolvimento do sujeito com o objeto de conhecimento. Uma dimensão da racionalidade que não é, também, tão rígida como os atributos verdadeiro e falso sugeririam, mas se mostra mais fluida e dinâmica, como sugere a percepção de beleza e harmonia. Enquanto uma sentença verdadeira pode ser pensada, em uma compreensão mais tradicional da palavra, como verdadeira mesmo na ausência de um sujeito que a verifique como verdadeira, um raciocínio dificilmente poderá ser imaginado como belo e harmônico, a não ser levando em consideração um sujeito que o perceba dessa forma.