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2 Educação como arte

2.1 Docência como criação

2.1.2 Criatividade docente

“[Ira Shor -] A ruptura criativa da educação passiva é um momento tão esté- tico quanto político, porque exige que os alunos “re-percebam” sua compreen- são anterior e que, junto com o professor, pratiquem novas percepções como aprendizes criativos. Talvez nos possamos considerar dramaturgos, quando reescrevemos os roteiros dramáticos da sala de aula, e reinventamos roteiros libertadores. O programa de estudo é tanto um roteiro quanto um currículo. A sala de aula é um palco para representações, tanto quanto um momento de educação. Ela não é só um palco e uma representação e não é só um modelo de pesquisa, mas também um lugar que tem dimensões visuais e auditivas. Lá ouvimos e vemos muitas coisas” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 74).

Fará sentido pensar na criatividade docente como uma faculdade consciente e intencional, associada à sensibilidade e ao envolvimento com o ambiente nos níveis físico, intelectual e

intuitivo? Pensá-la como uma faculdade de formação de uma “realidade nova que adquire

dimensões novas por nos articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos”? Quais os desafios envolvidos na defesa da docência como criação? Quais os gestos e as ações cujo valor criativo devemos reconhecer e valorizar?

O que cria um docente? Vejo em torno ao docente pelo menos duas “materialidades” com as quais ele interage de forma potencialmente criativa. Por um lado o corpo de conhecimentos do qual ele é suposto um conhecedor, cuja síntese ele deve ser capaz de formar, cujos pos- síveis significados e sentidos ele deve explorar. Por outro, o conjunto de estudantes por cuja “formação” ele é co-responsável.

O uso aqui da palavra “materialidades” tem efeito provocador. Por um lado, é evidente que um “corpo de conhecimentos” não possui materialidade física, mas apenas simbólica. Referimo-nos à sua materialidade ao identificar a complexa estrutura – de conceitos, de experi- ências, de paradigmas de pensamento e ação, de leis – que dá corpo a uma determinada área de conhecimentos. Por outro lado, embora seja evidente o caráter material, corpóreo dos estudan- tes, a imagem deles como uma “matéria a ser formada” é bastante estranha. Afinal, o sentido de formar estudantes deve ser bem distinto (esperamos!) daquele associado a formar uma está- tua de um pedaço de mármore. Enquanto o pedaço de mármore apresenta uma resistência que deve ser “vencida” pelo artista para formar aquilo que deseja, da relação professor-estudantes

esperamos uma relação de trocas, o estabelecimento de consensos e mesmo um protagonismo discente. Em outras palavras, se a ação de um escultor sobre um bloco de mármore é uma ação criativa sobre um objeto3, a ação de um docente em relação com estudantes é uma rela-

ção criativa entre sujeitos. Por isso, não faz sentido pensar a criatividade docente de forma

desarticulada da criatividade discente.

Talvez nosso maior desafio, na proposição da docência como criação, seja a superação do paradigma da transmissão: o docente como elo de ligação entre uma tradição científico-cultural e alunos, que são como páginas em branco; e quanto menor o atrito oferecido por esse professor – conector, melhor a qualidade da transmissão. Não há dúvida de que boa parte da pesquisa rea- lizada em ensino foi motivada pelo combate a esse modelo de educação, tão bem caracterizado por Paulo Freire como educação bancária, fundamentada em “depósitos” de “conhecimento” na consciência dos alunos. Mesmo assim, é difícil negar que este continue sendo o paradigma dominante. No contexto de um processo histórico de profunda desvalorização social da docên- cia, vale a pena refletirmos sobre os efeitos alienantes e opressivos desse modelo não apenas sobre os estudantes, como também sobre os professores. Nesse sentido, afasto-me de con- cepções associadas à noção de transposição didática, tal como proposta por Yves Chevallard. Essas concepções, embora fundamentem diversas pesquisas atuais em ensino de ciências, são, a meu ver, problemáticas por não reconhecerem na atuação docente e / ou discente um processo também de criação de conhecimentos, mas somente de transmissão e assimilação:

“O saber que produz a transposição didática será portanto um saber exilado de suas origens e separado de sua produção histórica na esfera do saber sá- bio, legitimando-se, enquanto saber ensinado, como algo que não é de nenhum tempo nem de lugar nenhum, e não se legitimando mediante o recurso à auto- ridade de um produtor, qualquer que fosse. ‘Podem acreditar em mim’, parece dizer o docente, para afirmar seu papel de transmissor, que não pode trans-

mitir senão sob a condição de não produzir nada, ‘podem acreditar em mim

porque não se trata de mim. . . ”’ (CHEVALLARD, 2009, p. 18, tradução e grifos meus).

Não se trata de negar que o professor possa ser um elo de ligação, mas sim de rejeitar a imagem desse elo como um elo de transmissão ou a imagem de transmissão como um processo pelo qual, idealmente, um mesmo conteúdo simplesmente muda de lugar4. Se o docente é um

3Admito que essa descrição da atividade de um escultor está, aqui, bastante rasa. Afinal, em seu envolvimento sensível com a materialidade do mármore, o escultor não pode percebê-la, também, como um sujeito, dotado de toda uma profundidade? Bachelard (2001), por exemplo, comenta longamente a respeito dos devaneios em torno às profundidades da matéria, ao seu interior. Como minha intenção aqui, entretanto, é apenas enfatizar como, no caso da docência, essa ação criativa, com maior razão ainda e em sentido literal, é uma ação entre sujeitos, opto por manter a comparação.

4Evidentemente, a noção de transposição didática reflete sobre as transformações do conhecimento ao mudar de lugar. Entretanto, ela não parece aceitar esse processo como um processo também de construção e de criação de conhecimentos.

elo de transmissão, a interferência de sua subjetividade é compreendida como um ruído ou, na

melhor das hipóteses, como um adorno dispensável. O importante é a sua adequada inserção em um sistema racional que pretende alcançar objetivos bem definidos, com a maior eficiência possível. Se pensamos este elo como um elo de criação, então a maneira específica e pessoal como o docente “traduz” uma certa herança científico-cultural, a maneira específica como ele cria, junto com os estudantes, novos sentidos para o mundo através dos instrumentos fornecidos por essa herança, a maneira como ele e seus estudantes se transformam por esse diálogo é que representam o fundamental de um processo pedagógico. Juntamente com a pesquisadora Alice Lopes, preferimos, nesse sentido, a noção de “mediação didática”:

“Mais coerentemente, devemo-nos referir a um processo de mediação didática. Todavia, não no sentido genérico, ação de relacionar duas ou mais coisas, de servir de intermediário ou “ponte”, de permitir a passagem de uma coisa a outra. Mas no sentido dialético: um processo de constituição de uma realidade a partir de mediações contraditórias, de relações complexas, não imediatas. Um profundo sentido de dialogia” (LOPES, 1999, p. 209).

Desenvolveremos melhor, adiante, essa relação criativa que docentes e estudantes podem estabelecer com o conhecimento específico. Antes, gostaria de retomar as características que associamos à criatividade e pensar sobre seus sentidos na docência. O caráter consciente e in- tencional, que assumimos serem inerentes aos processos criativos, é bastante evidente na ação docente: afinal, é esse caráter intencional, com objetivos, que diferencia uma aula de um en- contro espontâneo entre pessoas. Já a relevância da intuição neste trabalho costuma ser muito menos enfatizada ou percebida. Frequentemente, a demanda de intencionalidade é confundida com uma atitude racionalista que exige de toda proposição a sua adequada motivação e a defi- nição dos objetivos que ela pretende alcançar. Essa demanda de completa coerência de nossas proposições, de sua inserção não-problemática em uma estrutura racional de objetivos já esta- belecida, acaba atuando como um obstáculo à possibilidade de proposição de novas ordens, de novos objetivos que, ao serem criados, não aparecem em uma estrutura já acabada, mas com- põem uma ordem apenas intuída. Tal como a percepção, a intuição é, para nós, uma faculdade integradora, de criação de ordens:

“Enquanto identificamos algo, algo também se esclarece para nós e em nós; algo se estrutura. Ganhamos um conhecimento ativo e de auto-cognição, uma noção que ao identificar as coisas, ultrapassa a mera identificação. Em qual- quer situação em que nos encontremos, por exemplo, haverão de surgir inúme- ros dados, dos quais alguns talvez já nos sejam familiares, outros novos, alguns talvez desconexos e outros até mesmo insólitos. No entanto, de modo aparen- temente misterioso, de pronto os unimos. Os dados serão vistos em conjunto, pertencentes à situação à qual também nós pertencemos” (OSTROWER, 1977, p. 57).

Reivindicar a docência como criação é também reivindicar um maior espaço para a indeter- minação de objetivos, uma suspensão das compreensões e dos sentidos já dados a priori, para permitir a construção de novas possibilidades de interpretação e de representação do mundo e de nós mesmos neste mundo. É reivindicar espaço para o não-saber, necessário à possibilidade de construção do saber. E quão difícil é a um docente reivindicar o seu direito ao não-saber! Um não-saber que não é incompetência ou má formação, mas a própria condição para a pos- sibilidade de exercício do pensamento. Lembro-me da forma como Brecht expressou, através do personagem de Galileu Galilei, a necessidade de tempo para esse não-saber como condição para a pesquisa e o pensamento:

“[Galileu -] Eu ensino e ensino, e quando é que estudo? Homem de Deus, eu não sei tudo, como os senhores da Faculdade de Filosofia. Eu sou estúpido. Eu não entendo nada de nada. De modo que necessito preencher os buracos do meu saber. E quando é que tenho tempo? Quando é que faço pesquisa?” (BRECHT, 1991a, p. 65)

Lembro-me também de Funes, el memorioso, o personagem de Jorge Luis Borges que era incapaz de esquecer qualquer evento, qualquer sensação, mesmo a menor e mais fragmentária delas, e que, tamanho era o sufoco causado por sua memória e atenção infinitas, que já não podia mais pensar:

“Os dois projetos que indiquei (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens de sua recordação) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Deixam-nos vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Ele, não esqueçamos, era quase incapaz de ideias gerais, platônicas. Não somente lhe custava compreender que o símbolo genérico cachorro abarcasse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos y formas; molestava-lhe que o cachorro das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cachorro das três e quinze (visto de frente)” (BORGES, 1944).

Parece que o excesso de conteúdos escolares, o excesso de objetivos a serem alcançados serve muitas vezes como um mecanismo de controle que impede ao invés de promover o pen- samento e a criação tanto discentes quanto docentes. Por outro lado, o extremo oposto, também frequente, de uma completa falta de conteúdos e objetivos, tem efeito ainda mais desestimula- dor para o exercício do pensamento. O vazio que é necessário à criação é um vazio pleno de potencialidades, cheio de vontades, um vazio tonificado. Encontrar o equilíbrio sutil entre a necessidade de conhecimentos e de espaço para a reflexão é uma arte difícil. Arte difícil que desenvolvemos no exercício da difícil arte da docência.

Se o envolvimento intelectual com o fazer da docência é evidente e o envolvimento intuitivo acaba de ser discutido, a importância do envolvimento físico com o ambiente para o desenvolvi- mento da criação docente precisa ainda ser muito discutida. De fato, a nossa tradição cultural de

dicotomização entre atividades intelectuais e físicas atinge em cheio a profissão docente e a ma- neira como pensamos a sua formação. Frequentemente, esquecemos que o exercício deste ofício não é apenas um trabalho intelectual, como também físico-corporal, e este “esquecimento” tem implicações nefastas inclusive para a saúde destes profissionais5. Ao associarmos a importân-

cia de pensar essa dimensão corporal do trabalho docente à sua ação criativa, valorizamos a sensibilidade associada a essa dimensão: a percepção do próprio corpo e dos outros corpos, da própria voz e das outras vozes em sua dimensão estética, significativa, plena de sentidos.

Pode parecer esdrúxulo pensar a simples presença, em relação, do professor e dos estu- dantes em sala de aula como um momento criativo. Entretanto, quantas coisas não acontecem nestes encontros! Trata-se de uma criação fugaz, que dificilmente documentamos, associada a momentos que eventualmente comentamos com um colega e depois esquecemos. Tomo como exemplo o relato, feito por uma estudante, de uma aula que desenvolveu com alunos como parte de suas atividades de estágio. Ela organizou um debate entre estudantes, em que metade da turma deveria defender que a Terra é plana e imóvel, enquanto a outra metade deveria defen- der uma Terra esférica e movente. Organizou os dois grupos frente a frente, o que, segundo seu relato, “deu ao debate uma sensação de disputa”. Aos poucos, entretanto, os defensores da Terra imóvel foram ficando “sem jeito”, por defenderem algo que sabiam ser “errado” , até que a estudante-estagiária fez uma intervenção:

“um dos meninos da equipe estava jogando a borracha para cima e pegando com a mão, eu pedi que ele repetisse para que todos observassem. Percebi que os alunos imaginaram que eu reclamaria ou criticaria aquela atitude e não a usaria como parte da aula. Ele então repetiu o movimento e eu questionei: — Se a Terra realmente se move, por que a borracha cai exatamente na mão dele e não um pouquinho para o lado?

O silêncio foi total, uma menina falou “só falta agora ela falar que a Terra está parada” outro argumentou “é que o movimento da Terra é muito lento” mas um outro logo olhou uma anotação no caderno e viu que era de aproximadamente 1500Km/h portanto o argumento não valia (Relatório de estágio elaborado

pela estudante)”.

Há alguns momentos particularmente significativos neste relato, que vale ressaltar. Em pri- meiro lugar, a proposição – consciente, planejada – de organizar os grupos de estudantes frente a frente. Ao intensificar a “sensação de disputa”, essa simples disposição, sem necessidade de verbalização adicional, é, sem dúvida, significativa, como a própria estudante faz notar. Depois, a intervenção da estudante, que ocorre no momento em que, segundo a sua percepção, chegava- se a uma situação limite, é um exemplo desses significados que são construídos na situação imediata da relação, sem nenhum planejamento prévio, mas de forma consciente e intencional. 5Basta mencionar a generalizada ocorrência de problemas de voz em professores de todos os níveis de ensino.

Para além do conteúdo verbal de seu discurso, sua intervenção carrega também outros senti- dos. Um aluno estava jogando a borracha para cima. Qual o sentido de sua atitude? Para a turma, aparentemente, representava uma “bagunça”, uma “distração”. De qualquer forma, um comportamento não previsto que, como tal, seria, pela ordem comum em vigor, alvo de repre- ensão. A atitude da estagiária transformou o sentido daquela atitude em um argumento contra a mobilidade da Terra. Quebrou duplamente a expectativa dos alunos: por defender uma tese “errada” e por não repreender, mas incluir em seu discurso, uma atitude “errada”. E o “silêncio total” que se segue a este ato é, também, evidentemente, bastante significativo. Acredito que esses sentidos de nossas atitudes em sala de aula são tão ou mais importantes do que aqueles associados aos conteúdos verbais de nossos discursos.

Se há envolvimento com o fazer, cada um destes pequenos acontecimentos, cada nova per- cepção de uma certa forma de pensar, dos limites que ela estabelece, cada possibilidade de superação destes limites, é um momento criativo no qual nos renovamos, nos “articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos”.

2.2

Traduções

“Cada poesia é uma leitura da realidade, e toda leitura de um poema é uma tradução que transforma a poesia do poeta na poesia do leitor”.

Octavio Paz (LARROSA, 2004, p. 63).

Ao pensarmos a relação do docente com a sua área de conhecimento específico como uma atividade criativa, precisamos esclarecer como e em que sentido as possíveis “traduções” que ele realiza destas formas de conhecimento podem (e precisam) ser criativas. A noção de tradução, que, em sua etimologia, associa-se a “levar de um lugar a outro”6, pode dar a impressão de

uma operação relativamente mecânica, através da qual se expressa um mesmo significado, um mesmo conteúdo em distintas formas. Ao nos darmos conta, porém, de que a etimologia da palavra metáfora é essencialmente a mesma que a de tradução7, podemos suspeitar que essa

passagem de uma forma a outra talvez não seja tão simples ou tão inócua.

Vejamos um exercício de “tradução” realizado por estudantes na disciplina Oficina de Pro-

jetos de Ensino. Propus a eles a seguinte questão:

“Suponha um mundo em que não existem letras, nem palavras, nem números. Traduza para este mundo a lei da inércia, utilizando os recursos que quiser. Você não precisa se preocupar, nessa questão, em ser exato, preciso ou fiel”.

6Do latim: trans (de um lugar a outro) + ducere (guiar / conduzir)

7Do grego: meta (fora) + pherein (transladar). Até hoje, no grego moderno, metáfora é associada a transporte, sendo utilizada para referir-se por exemplo ao ônibus, que realiza o transporte urbano e também para referir-se a transferências bancárias.

Os estudantes deveriam publicar suas traduções no blog da disciplina. A seguir, deveriam realizar, por escrito, uma leitura verbal, um comentário de pelo menos uma contribuição não- verbal de um colega. Por fim, discutiríamos esse conjunto de “traduções” e “traduções de traduções” em sala de aula.

Algumas das respostas propostas, que foram enviadas através do blog da disciplina, estão dispostas nas figuras 2.2 e 2.3. Elas demonstram quão variada pode ser uma tradução e como a presunção de uma dicotomização entre forma e conteúdo, que tornaria fácil e mecânica a tra- dução, é artificial. A linguagem não é neutra, não é única, nem sequer uniforme e os conteúdos estão como que encrustados em sua materialidade expressiva. Por isso, o ofício de traduzir é tão problemático. Como afirma Ostrower (1977, p. 35):

“Não é possível traduzir nem parafrasear o processo imaginativo, porque trans- por de uma matéria específica para outra desqualifica essa matéria e não qua- lifica a outra. O único caminho aberto para nós seria conhecer bem uma dada materialidade no próprio fazer. Com este conhecimento e com a nossa sensi- bilidade tentaríamos acompanhar analogicamente o fazer de outros; sempre, é claro, por analogias de estrutura e não de operações mecânicas”.

O educador espanhol Jorge Larrosa defende o valor de se pensar o ato de ler como uma tradução. Se mesmo uma língua individual é sempre múltipla e heterogênea, se mesmo uma comunidade humana individual é sempre múltipla e heterogênea, não pode existir algo como a compreensão desproblematizada. Por isso, ao invés da leitura como uma coleta, uma aquisição, uma apropriação de um significado, ele propõe a leitura como transferência, como transporte. Nesse sentido, qualquer comunicação torna-se o difícil exercício de uma tradução, de uma negociação entre as diferenças.

Ao observar as imagens das figuras 2.2 e 2.3, espanto-me com a multiplicação que a pro- posição de uma tradução provoca. Saberei o que significa a lei da inércia? Serei proprietário de seu significado essencial? Saberei o que significa traduzir? Procuro, então, compreendê-las, lê-las, traduzi-las e, nesse esforço, identifico nessas figuras aproximadamente quatro sentidos distintos para o que seja o traduzir.

1 Na figura 2.2b, vejo uma concepção que entende a tradução como uma correspondência

termo a termo entre duas linguagens. Uma vez que sabemos o que pretende comunicar essa tradução, é fácil para nós encontrar a significação que o autor atribui a cada signo: significa “corpo em movimento”; significa “corpo em repouso”; significa “se ... então”; sig- nifica “certo”; e significa “errado”. Nessa espécie de tradução “literal”, fica apenas faltando um signo para representar o significado de “na ausência de forças”... A dimensão criativa dessa

(a) (b) (c) (d) (e) (f)

Figura 2.2: Imagens propostas para responder à questão: “Suponha um mundo em que não exis-

tem letras, nem palavras, nem números. Traduza para este mundo a lei da inércia, utilizando os recursos que quiser. Você não precisa se preocupar, nessa questão, em ser exato, preciso ou fiel”.

(a)

(b)

(c)

(d)

(e)

Figura 2.3: Instantâneos extraídos de vídeos ou animações realizados visando responder à ques- tão: “Suponha um mundo em que não existem letras, nem palavras, nem números. Traduza para

este mundo a lei da inércia, utilizando os recursos que quiser. Você não precisa se preocupar, nessa questão, em ser exato, preciso ou fiel"