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3 Ciência como arte

3.3 Ciência e arte em ruptura com o senso comum

3.3.2 Imaginação criadora

Nessa dimensão de abertura, nessa compreensão do dinamismo do pensamento, encontra- mos o elo comum que dá unidade à racionalidade científica e aos devaneios da imaginação criadora. Bachelard toma o cuidado de distinguir aquilo que chama de imaginação criadora da mera imaginação reprodutora:

“A imagem percebida e a imagem criada são duas instâncias psíquicas muito diversas e seria necessária uma palavra especial para designar a imagem ima-

ginada. Tudo que é dito nos manuais sobre a imaginação reprodutora deve ser

creditado à percepção e à memória. A imaginação criadora tem funções com- pletamente diversas da imaginação reprodutora. A ela pertence essa função do

irreal que é psiquicamente tão útil quanto a função do real, evocada com tanta

frequência pelos psicólogos para caracterizar a adaptação de um espírito à re- alidade etiquetada por valores sociais” (BACHELARD, apud PESSANHA, 1985, p. xxii) .

Movida pelas seduções da libido, mas não determinada por elas, a imaginação funda-se sobre as necessidades humanas mais primitivas, sem reduzir-se a elas. Se o sonho científico radica-se, para Bachelard, no domínio mais abstrato do ultra-racionalismo, o devaneio localiza- se na região mais primitiva de uma materialidade anímica, orgânica.

Enquanto os distintos posicionamentos associados ao pensamento científico-racional po- dem ser categorizados em um perfil epistemológico, permitindo divisar um processo evolutivo (não linear) associado à formação do espírito científico, em contraposição, não é possível, de- vido à própria natureza do fenômeno, estabelecer uma organização sistemática de mesmo tipo para o devaneio, a imaginação criadora. “A filosofia da poesia deve reconhecer que o ato poé- tico não tem passado – pelo menos não um passado no decorrer do qual pudéssemos seguir a sua preparação e o seu advento” (BACHELARD, 1974a, p. 341). É como se essas atividades se localizassem “abaixo” da primeira categoria associada ao pensamento científico, sob o rea-

dos símbolos demonstra plenamente sua potência. Em seu livro A poética do espaço, ao re- fletir a respeito da imagem da casa, associando-a ao “abrigo para o devaneio”, ao lugar onde podemos sonhar em paz, Bachelard distingue os devaneios associados ao sótão daqueles associ- ados ao porão. Parece-me que essa organização vertical da imaginação e a contraposição entre esses dois polos ilustram, metaforicamente, a distinção entre a criação racional, científica e a imaginação poética profunda:

“Os andares mais altos, o sótão, o sonhador os ‘edifica’, e os edifica bem edifi- cados. Com os sonhos na altitude clara estamos, repitamo-lo, na zona racional dos projetos intelectualizados. Mas o habitante apaixonado aprofunda o porão cada vez mais, tornando-lhe ativa a profundidade. O fato não basta, o devaneio trabalha. Ao lado da terra cavada, os sonhos não têm limite. Revelaremos em seguida devaneios de além-porão” (BACHELARD, 1974a, p. 367).

O caráter aberto da imaginação criadora se verifica porque, de forma semelhante ao que ocorre com a racionalidade científica, a imaginação vai ao real ao invés de partir dele (FELICIO, 1994, p. 50). Se, no pensamento científico, a perspectiva de realização racional impõe um vetor

epistemológico que aponta do racional para o real, na imaginação criadora, igualmente pode-

se falar de um vetor imaginário que se orienta “para o mundo em que a imaginação compõe sínteses” (FELICIO, 1994, p. 52).

A ruptura que a imaginação opera com relação ao senso comum demanda, assim como ocorre a propósito do pensamento científico, uma educação da imaginação criadora, para que esta possa romper com imagens estagnadas por convenções sociais ou por racionalizações. Essa educação se dá, para Bachelard, através da meditação de uma matéria: “o postulado de materi- alidade da imagem, que estabelece uma relação matéria-imaginação, tem dois aspectos: de um lado a matéria educa a imaginação; de outro, a imaginação tem, por conseguinte, uma matéria” (FELICIO, 1994, p. 46).

É necessário aqui tomar um cuidado porque as palavras que são utilizadas no contexto ci- entífico e no contexto poético possuem, em cada um deles, sentidos muito distintos, embora não desconexos. A palavra “matéria”, da perspectiva da imaginação material, adquire conota- ções bastante diferentes daquelas que lhe atribui a racionalidade científica. Seus “elementos” constituintes estarão associados não a partículas elementares, mas sim aos quatro elementos – terra, água, ar e fogo – presentes nas cosmologias antigas, assim como na alquimia medieval. A meditação sobre a matéria associa-se assim a distintas forças, distintos temperamentos e ati- tudes. Embora favoreça um elemento “preferido”, a imaginação material gosta de brincar com suas combinações, como por exemplo: o casamento da água e do fogo no álcool, da terra e da água na massa, etc (FELICIO, 1994, p. 47). A mesma observação se aplica à noção de espaço. Diferentemente do espaço neutro e isotrópico da racionalidade científica, o espaço imaginado

transforma-se em lugar habitado e permite múltiplos matizes emocionais: casa, concha, ninho, cofre, gaveta servem como morada para os afetos, como fontes para a criação poética (PESSA- NHA, 1988, p. 156). E quando a imaginação vai ao mundo microscópico, chega novamente a um mundo habitado, da miniatura, plena de delicados afetos, de centros de vida e de fogo (BACHELARD, 1974a, p. 454).

A noção de imaginação material é relevante ao opor-se à imaginação formal. Esta última, característica de uma tradição de pensamento racional, associa-se ao império da visão e, com ele, a uma relação essencialmente contemplativa com o mundo. Mesmo no domínio científico, Bachelard rejeita o domínio dessa tradição ao reconhecer a existência de uma fenomenotécnica que não se contenta com a visão panorâmica, mas busca os detalhes e não se contenta com a con- templação, mas cria seus próprios objetos, constrói os fenômenos científicos em todas as suas peças. Ao invés de uma relação espectador-espetáculo, a imaginação material constituir-se-á a partir de uma relação corpo a corpo, do corpo operante com o corpo do mundo12 (PESSA-

NHA, 1988, p. 154). Nesse sentido, o dualismo contemplativo sujeito-objeto é substituído pelo “dualismo energético” matéria-mão (PESSANHA, 1988, p. 158).

Em A terra e os devaneios da vontade, Bachelard explora as ambivalências criadas a partir da imaginação de matérias duras e matérias moles. É interessante refletir quão complexa seria a exploração racional-científica de características tão aparentemente imediatas como o “duro” e o “mole”. Do ponto de vista da “mão imaginante”, entretanto, elas adquirem uma conotação elementar, correspondem a uma dialética de base:

“Mas na ordem da matéria o sim e o não se dizem mole e duro. Não há imagens da matéria sem essa dialética de convite e de exclusão, dialética que a imagi- nação transporá a inumeráveis metáforas, dialética que às vezes se inverterá sob a ação de curiosas ambivalências até definir, por exemplo, uma hostilidade hipócrita da moleza ou um convite provocador da dureza” (BACHELARD, 2001, p. 16).

Por que o sim se diz mole? Porque a matéria aqui não representa um objeto inerte, disponí- vel para contemplação e análise, mas uma entidade dinâmica, que se deixa ou não penetrar. Essa matéria, entretanto, não diz apenas sim ou não. Provida de um interior, de uma profundidade, se nega à simplicidade e, ao dizer não, ela pode provocar, desafiar:

“Considerar a dureza como um mero motivo de uma exclusão, em seu pri- meiro não, é sonhá-la em sua forma exterior, em sua forma intangível. Para um sonhador da dureza íntima, o granito é um tipo de provocação, sua dureza ofende, uma vingança que não se vingará sem armas, sem ferramentas, sem

12É interessante comparar essas premissas com a descrição, por Cassirer, do “fenômeno expressivo”, que cons- titui a relação “eu-tu”, como anterior à relação “eu-isto” (seção 3.2.2 na página 128).

os meios da astúcia humana. Não se trata o granito com uma cólera infantil. Será preciso esfriá-lo ou poli-lo, nova dialética em que a dinamologia do con-

tra encontrará a oportunidade de múltiplos matizes” (BACHELARD, 2001, p.

18).

Assim como as imagens representam um obstáculo à criação matematizada da racionalidade científica, da mesma forma, a racionalização será um obstáculo à imaginação criadora. Por exemplo, uma “massa”, “constituída” pela combinação ambivalente, às vezes conflituosa, dos elementos terra e água, pode produzir consistências de muitos tipos, algumas vezes “moles demais”, outras “duras demais”. Bachelard escreve a respeito da consistência ótima, “ideal”, a “massa perfeita” que se coloca frente à “mão imaginante” assim como o “sólido perfeito” se coloca frente aos olhos do geômetra. Uma espécie de massa em si, de barro primitivo, capaz de receber e conservar a forma de qualquer coisa. E então surge o perigo:

“Tal imagem material tão simples, tão intensa, tão vivaz é naturalmente esprei- tada pelo conceito. É este o destino de todas as imagens fundamentais. E o conceito de uma massa que se deforma sob os nossos olhos é tão claro e tão geral que torna inútil a participação na imagem dinâmica primitiva. As ima- gens visuais recuperam então sua primazia. O olho – esse inspetor – vem nos impedir de trabalhar” (BACHELARD, 2001, p. 65).

Sonho anagógico e devaneio poético. Das poucas observações que tecemos até aqui,

podemos notar que, embora ocupando polos opostos, o sonho anagógico, científico e o devaneio poético compartilham características comuns e não são independentes mas estabelecem um com o outro uma relação dialética que lhes confere dinamismo. Procuro sistematizar na figura 3.11 a forma como compreendo essas relações.

Tomando, nessa figura, o caminho “da esquerda para à direita”, que parte do terreno da imaginação criadora em direção à criação científico-racional, vemos a referência aos obstácu- los epistemológicos que derivam de uma adesão direta e imediata a imagens e metáforas, que carregam consigo uma série de projeções do sujeito. O progresso da racionalidade científica se coloca em ruptura com essas imagens, demandando uma constante psicanálise do espírito científico. Isso não significa, entretanto, que as imagens sejam inúteis ou puramente nocivas à dinâmica da racionalidade científica. Sem elas, como seria possível empreender a crítica que põe o pensamento científico em movimento? Quando Bachelard afirma que “as intuições são muito úteis, servem para ser destruídas”, acredito que devemos levar muito à sério essa sua utilidade. Na epistemologia dialética de Bachelard, precisamos reconhecer o papel produtivo, construtivo dos obstáculos. Se um ultra-objeto, como o átomo moderno, é concebido como

Figura 3.11

uma não-imagem, como a soma de todas as críticas a que foram submetidas as imagens propos- tas para representá-lo, devemos reconhecer que sem a proposição dessas imagens – por mais “ingênuas” que sejam – esse ultra-objeto jamais seria constituído.

Pensando agora no caminho reverso que, de acordo com a figura 3.11, vai da racionalidade à imaginação criadora, reconhecemos que o pensamento racional também se coloca como um obstáculo à imaginação criadora: sua indevida ingerência em um processo criativo é denomi- nada uma racionalização. A ação inibidora da racionalização parece associar-se justamente a um bloqueio da participação imediata do sujeito na imagem, à imposição de um olhar distanci- ado, preocupado com a atribuição de uma significação bem definida a cada imagem. Essa hege- monia de uma compreensão racional é metaforicamente comparada ao predomínio do sentido da visão (um “olho inspetor”) com relação aos demais sentidos, sentidos estes que engendram uma participação não-distanciada, um envolvimento do sujeito em seu objeto de percepção, ou melhor, da mão na matéria com que trabalha.

Nesse caso, não podemos nos referir, da forma como fizemos com relação aos obstáculos epistemológicos, ao papel construtivo dos obstáculos – “racionalizantes” – à imaginação cri- adora. Isso porque os produtos da imaginação não possuem, para Bachelard, o mesmo tipo de organização arquitetônica que aqueles da racionalidade científica, não se edificam em uma sólida construção, mas se aprofundam em uma região nunca bem conhecida, nunca bem es- clarecida. Cada imagem poética solicita a quem a aprecia não a determinação causal de sua origem, mas a entrega, o envolvimento imediato com o seu ser. A imaginação criadora não é

cos profundos. As suas criações, entretanto, são capazes de “conversar” conosco porque, por um “determinismo às avessas” (FELICIO, 1994), podem mobilizar nossas profundezas: “pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos” (BACHELARD, 1974a, p. 341). Mais do que uma via de interpretação, de determinação de uma suposta origem de uma imagem ou de seu significado, Bachelard propõe a entrega à pura presença da imagem. Nessa entrega à imagem, sentimos as ressonâncias e a repercussão que ela nos provoca:

“É nesse ponto que deve ser observada com sensibilidade a duplicidade feno- menológica das ressonâncias e da repercussão. As ressonâncias se dispersam nos diferentes planos da nossa vida no mundo, a repercussão nos chama a um aprofundamento de nossa própria existência. Na ressonância, ouvimos o po- ema, na repercussão nós o falamos, pois é nosso ser. A repercussão opera uma revirada do ser. Parece que o ser do poeta é nosso ser. A multiplicidade das ressonâncias sai então da unidade do ser da repercussão. Dito de maneira mais simples, trata-se de uma impressão bem conhecida por todo leitor apai- xonado por poemas: o poema nos prende por completo. (...) A exuberância e a profundidade de um poema são sempre fenômenos da dupla: ressonância- repercussão” (BACHELARD, 1974a, p. 345).

Como já comentamos, para Bachelard, a origem de um conhecimento científico associa-se antes a um devaneio (que será progressivamente depurado de seus elementos subjetivos) que a um experimento. Reciprocamente, pergunto-me se os produtos da racionalidade científica não podem servir, uma vez depurados de seu caráter objetivo e racional, como ponto de partida para novos devaneios, para novas criações da imaginação. Se o sonho científico coloca-se no extremo oposto com relação aos sonhos noturnos movidos pelas seduções da libido, esses extremos não podem ser conectados de forma a permitir um processo cíclico de retro-alimentação? Se a ciência se forma sobre um devaneio, não é possível devanear sobre uma imagem científica?

Parece-me que Bachelard, graças a sua grande erudição também no domínio científico, realiza frequentemente essa passagem. Por exemplo, quando ele escreve que a análise “microp- sicológica” de pequenas imagens pode ser submetida a um princípio de indeterminação análogo ao papel exercido pelo princípio de incerteza de Heisenberg na microfísica:

“No campo da imaginação sensibilizada, pode-se considerar uma espécie de princípio de indeterminação da afetividade no mesmo sentido em que a micro- física propõe um princípio de incerteza que limita a determinação simultânea das descrições estáticas e das descrições dinâmicas. Por exemplo: queremos sentir mais de perto uma nuança verdadeiramente sutil de antipatia, e eis que ela agrada. Inversamente, queremos dedicar-nos com muita intensidade a uma impressão de simpatia, e eis que ela aborrece. Veremos esse princípio inter- vir com muita frequência tão logo consentirmos praticar a micropsicologia ao trabalhar no nível de nossas pequenas imagens” (BACHELARD, 2001, p. 63).

A equivalência entre massa (matéria?) e energia, sintetizada na célebre equação E = mc2 também parece ecoar na concepção de imaginação material bachelardiana. “A matéria revela

nossas forças. (...) Não se espantem, pois, de que sonhar imagens materiais – isso mesmo, simplesmente sonhá-las – é imediatamente tonificar a vontade” (BACHELARD, 2001, p. 19). Dessa forma, a imaginação material é uma verdadeira fonte de energia psíquica. Como não associar a energia que se pode obter das profundezas atômicas da matéria e aquela que se obtém de suas profundezas oníricas?

“De qualquer modo, as imagens materiais – as imagens que nós fazemos da matéria – são eminentemente ativas. Não se fala muito disso; mas elas nos sustentam assim que começamos a confiar na energia de nossas mãos” (BA- CHELARD, 2001, p. 23).

O devaneio sobre imagens científicas encerra um duplo perigo. Por um lado, corre-

mos o risco de, contaminados por uma atitude racionalizante, engessar a ação da imaginação, impedindo sua atividade criadora. Por outro, uma leitura muito ingênua das obras científicas pode banalizar tanto o seu sentido que podemos nos questionar qual o motivo para realizar esse tipo de aproximação. Quaisquer que sejam os perigos envolvidos, entretanto, uma coisa é certa: essa aproximação ocorre o tempo todo. Nossa imaginação está constantemente envolvida com todo tipo de material que se lhe apresenta e os objetos (e os ultra-objetos) da ciência compõem, em nossa cultura, parte marcante deste conjunto. Os objetos da ciência moldam nossa realidade atual. Como afirma Fayga Ostrower:

“Não é preciso, hoje em dia, ser físico ou matemático para saber que a mesa que se encontra à nossa frente, apesar de imóvel e maciça, é constituída por incontáveis moléculas e átomos, por elétrons girando em torno de prótons, núcleos atômicos, cujos contínuos movimentos resultam, por sua vez, de pro- cessos subatômicos onde, ulteriormente, a matéria se transmuta em energia. Se não o sabemos, o sentimos. Para nós, agora, as vivências da realidade são impregnadas de um sentido de modificação constante. Este entendimento faz parte do clima mental de nossa época. E se não em nível científico, certamente em nível emocional molda profundamente a visão existencial de todos os se- res que hoje vivem. Moldam suas aspirações e expectativas, suas certezas e incertezas, suas esperanças e seus desesperos. A arte em nosso século bem o testemunha” (OSTROWER, 1998, p. 49).

Por isso, interessa-nos refletir a respeito dos caminhos que tornam menos ou mais interes- santes o diálogo entre a imaginação poética e a racionalidade científica. Acredito que o caminho associado a férteis conexões deriva do não-esquecimento de que essas duas faculdades humanas não se dão no vazio, mas sim materializadas em linguagens, em formas simbólicas particulares. Estando a imaginação poética e a racionalidade científica mais fortemente associadas, respec- tivamente, às funções expressiva e significativa discutidas por Cassirer, parece-me que o risco

maior de banalização dos produtos poéticos e científicos de nossa cultura esteja associado a uma leitura que, procedendo uma espécie de média, enxergue, de maneira muito imediata e não problemática, apenas a dimensão representativa de cada uma dessas produções, supondo assim que cada símbolo simplesmente represente diretamente um objeto do mundo.

A imaginação não é concebida por Bachelard como anterior à linguagem, mas sim como comprometida com ela. É como evento da linguagem que a imaginação torna-se criação, novi- dade absoluta. Sua atividade constitui uma linguagem capaz de ser, ao mesmo tempo, “invenção constante e deciframento profundo” (FELICIO, 1994, p. 40). A língua não permanece a mesma após o advento de um grande poeta. Embora associada a energias psíquicas profundas (a arqué- tipos), a imaginação não se reduz a esses arquétipos, mas, ao contrário, cria sempre a partir deles.

Mesmo na apreciação de obras essencialmente visuais, como a pintura, Bachelard será ca- paz de reconhecer o papel que exerce a imaginação material. Se muito “contaminados” por uma atitude racionalista, temos a tendência de, muito rapidamente, esquecer a constituição material de uma pintura – a materialidade da tinta que se coloca em relação com a materialidade da tela – e “contemplar”, à distância, apenas a forma global da obra, preocupando-se principalmente, talvez, em reconhecer a referência àquilo que ela pretende representar. Em contraposição, a imaginação material de Bachelard começa por devanear em torno a essas materialidades. E já na contemplação de um simples desenho a lápis a cultura científica contribui para o dinamismo da imaginação:

“Quem gosta de entrar no minúsculo das coisas, na competição entre a matéria negra e a matéria branca ganhará escutando ao físico. Entrará então no mistério das lutas dos gnomos atomizados. Viverá uma incrível dialética da coesão e da adesão. Pois: o que faz um desenhista? Se aproxima de duas matérias. Empurra suavemente o negro lápis em direção ao papel. Nada mais. A coesão do grafite é atraída então à adesão pelo papel imaculado. O papel é despertado de seu sonho de candura, despertado de seu branco pesadelo. A que distância começa a atração mútua, íntima, do negro e do branco? A partir de que limite a adesão extrovertida se sobrepõe à coesão introvertida? Em que momento a torrente de átomos de carbono – negro polem! – abandona a mina para invadir os poros do papel? Em sua linguagem rápida a física responde: a 10−5cm, a um

décimo de milésimo de milímetro. Os átomos são ainda dez vezes menores. Eis aí o lápis sobre o papel” (BACHELARD, 1997, p. 71).

A imaginação em torno à materialidade da cor, em particular, parece-me ser um desafio particularmente difícil para o espírito viciado em uma conduta racionalista. Ao menos, é um desafio difícil para mim. Sempre tive uma certa dificuldade com perguntas do tipo: “qual a sua cor predileta?”. Qual a diferença entre uma cor e outra, penso eu, quando estou dominado pela