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Em conferência em Belo Horizonte proferida em 1999, Badiou, ao defender a antifilosofia de Lacan, traz uma citação de Nietzsche (2001), de Crepúsculo dos ídolos, que servirá para este trabalho como ponto de convergência entre o psicanalista e o filósofo Deleuze,

ambos franceses, contrariando o curso dos estudos que ressaltam a incompatibilidade teórica entre eles. Badiou (1999, p. 56) então diz: “Este texto liga a abolição da verdade à afirmação dionisíaca na qual o ato se resolve”. Em seguida, cita Nietzsche: “O mundo-verdade foi por nós abolido. Qual mundo nos restou? O mundo das aparências. Mas com o mundo-verdade foi igualmente por nós abolido o mundo das aparências. Meio-dia, o momento em que a sombra é mais curta” (apud BADIOU, 1999, p. 56).

Badiou (1999) parte da citação nietzschiana de que meio-dia é o ponto em que o sol não projeta sua sombra nos objetos para contrapor-se ao pensamento hegeliano, de que o filósofo vem “após”, na caída da noite. Esse deslocamento surge como mais uma marca desse campo que ele busca demarcar em vários de seus textos, como mais um traço da antifilosofia. Tanto Lacan quanto Deleuze integram esse campo que Badiou (1997b; 1999) chama de antifilosofia, por operar na inversão do platonismo, o que não significa não se constituir como uma filosofia, mas de se fazer uma fuga em relação a uma tradição filosófica5. Para Badiou (1999, p. 56), “meio-dia é o nome do acontecimento real, da báscula da vida”. É quando o sol a pino destitui todas as formas projetadas e distorcidas das coisas existentes.

Em outro texto, ele dirá: “A antifilosofia é sempre como um surgimento, porque sua certeza é da ordem do ato; e de um ato podemos ter certeza, porque ele tem efeitos. O filósofo traduz sentido, o antifilósofo produz efeitos” (BADIOU, 1997b, p. 3). Assim, o acontecimento real ao qual Badiou se refere pode ser entendido como aquilo que produz causalidade no sujeito, e este como efeito entre significantes. Ou seja, há uma causa-efeito que funciona como báscula da vida, que apoia a vida.

Voltemos à proposta inicial. O mundo-verdade foi abolido, mas o mundo das aparências também. Chegamos à implosão do corte epistemológico estabelecido por Platão, entre

5 Em entrevista concedida à revista Cult, a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco diz que Lacan

não pertence mais aos psicanalistas, referindo-se à inserção desse autor em outras áreas de conhecimento, sobretudo à filosofia. “Como disse, Lacan é comentado de modo mais interessante hoje por filósofos como Alain Badiou, Jean-Claude Milner. Mesmo nos EUA, Judith Butler e os cultural studies são mais criativos com a obra de Lacan do que os psicanalistas. [...] Lacan foi quem melhor pensou, entre os psicanalistas, a pulsão de morte, o racismo, a organização insana do capitalismo, a sexualidade feminina, a criminalidade. Era isso que eu queria dizer: o século 21 reivindicará esse pensamento permanente subversivo. Lacan é fulgurante como um surrealista. Isso vai ficar. Seu pensamento não pertence mais aos psicanalistas. Provavelmente será comentado cada vez mais pelos filósofos, pois Lacan vai entrar para a história do pensamento, assim como Derrida, Foucault, e toda uma geração francesa dos anos 1960”. Ver a entrevista completa em: <https://revistacult.uol.com.br/home/lacan-e-um- logico-que-desafia-a-logica-diz-elisabeth-roudinesco/>. Acesso em: 4 maio 2017. Contudo o antiplatonismo parece, mais do que uma antifilosofia, uma marca do nosso tempo. Žižek (2017), ao falar de Platão, Descarte e Hegel, dirá que cada um deles projetou uma persistente sobre os que os seguiram. Sobre Platão, o esloveno traz para o argumento uma leitura de Foucault: “Michel Foucault (1920-84) disse uma vez que toda a história da filosofia ocidental poderia ser definida como a história das rejeições de Platão: mesmo hoje, marxistas e liberais anticomunistas, existencialistas e empiristas analíticos, heideggerianos e vitalistas estão todos unidos em seu antiplatonismo” (ŽIŽEK, 2017, p. 75-76).

inteligível e sensível, essência e aparência. Sem a essência e sem a aparência, o que fica são o ato e seus efeitos. O que interessa a Lacan é o ato analítico. Isso traz implicações na análise. “O objetivo na análise é criar um saber sobre a parte não sabida da verdade” (BADIOU, 1997b, p. 3).

Badiou (1997b) leva-nos a articular Lacan para além do sujeito suposto saber, no sentido de que o sujeito quando está em análise supõe que o analista tem o saber para a cura de suas dores psíquicas. Destituir o analista desse lugar do suposto saber dependeria de um ato que é da ordem do Real, de um não saber. Ato que implica um corte que deixa um resto: o objeto a. Chegamos ao axioma principal de Lacan, de que o Real “não cessa de não se escrever” (LACAN, 1985, p. 81). A dupla negação pode ser lida também como o Real sendo aquilo que sempre retorna (em Deleuze, a repetição é a afirmação da diferença) sem ser simbolizado, mas, ao mesmo tempo, age como causalidade da linguagem ao buscar cobrir, pelos sentidos, os buracos deixados no simbólico.

Não teríamos aí uma aproximação entre o virtual e o Real? Talvez, mais precisamente, nas páginas de Diferença e repetição, no qual Deleuze (1988) desenvolve sua noção de objeto

virtual com O seminário sobre a “A carta roubada”, de Lacan, com base no conto de Edgar

Allan Poe:

Nesse sentido, parecem-nos exemplares as páginas em que Lacan assimila o objeto virtual à carta roubada [...]. Lacan mostra que os objetos reais, em virtude do princípio de realidade, estão submetidos à lei de estar ou de não estar em alguma parte, mas que o objeto virtual, ao contrário, tem a propriedade de estar e de não estar onde ele está, onde ele vai (DELEUZE, 1988, p. 173, grifo do original)6.

Para Deleuze (1988, p. 174), o objeto virtual “nunca é passado em relação a um novo presente; do mesmo modo, ele não é passado em relação a um presente que ele foi”. Chegamos

6 Na biografia Gilles Deleuze & Félix Guattari, o historiador e filósofo François Dosse (2010) faz referência

também a essa mesma passagem, mas mostra as implicações desenvolvidas: “Lacan observa com grande interesse esse empréstimo e saúda com insistência a ‘elegância de Gilles Deleuze’, ‘nosso amigo’, em seu seminário de 1968 e 1969. Opõe a imbecilidade que reina na psicanálise à maneira como Deleuze mostrou que o prazer masoquista constitui o Outro em forma de um contrato. Na sessão de 12 de março, Lacan convida seu público a ler Diferença e Repetição e Lógica do sentido: ‘Acontece, por exemplo, que o senhor Gilles Deleuze, continuando seu trabalho, lança, como suas teses, dois livros capitais’. Ele dá a entender que as teses apresentadas por Deleuze foram muito fortemente inspiradas nas suas. ‘Ele, em sua bonança, teve tempo de reunir em um único texto não somente o que está no cerne do que meu discurso enunciou – e não há dúvida de que esse discurso está no cerne de seus livros, pois isso é reconhecido ali como tal, e que o seminário sobre A carta roubada é a porta de entrada. Ao mesmo tempo, Lacan reconhece a contribuição do filósofo, particularmente por ter introduzido em suas análises as reflexões dos estoicos. Ele saúda igualmente em Deleuze aquele que conseguiu definir melhor o paradigma estruturalista. ‘Os senhores versam que ele diz em algum lugar que o essencial do estruturalismo, se essa palavra em um sentido..., é ao mesmo tempo um vazio, uma falha na cadeia significante, e o resultado disso são objetos errantes na cadeia significada’” (DOSSE, 2010, p. 160).

assim à tese do filósofo, que remonta a Bergson, sobre o passado puro como o virtual. O passado puro, ou o passado que nunca foi presente, não pode se tornar atual. Daí a ênfase de Deleuze (1988, p. 335) de que “o virtual não se opõe ao real, mas somente ao atual”.

Sob todos os objetos virtuais, dirá Deleuze (1988, p. 174-175):

Lacan descobre o “falo” como órgão simbólico. Se ele pode dar esta expansão ao conceito de falo (subsumir todos os objetos virtuais), é porque este conceito compreende efetivamente as características precedentes: dar testemunho de sua própria ausência e de si como passado, estar essencialmente deslocado em relação a si mesmo, ser encontrado apenas como perdido, existência sempre fragmentada que perde a identidade no duplo – pois ele só pode ser procurado e descoberto do lado da mãe, tendo a propriedade paradoxal de mudar de lugar, não sendo possuído por aqueles que têm o “pênis” e, todavia, sendo tido por aqueles não tem “pênis”, como é mostrado pelo tema castração. O falo simbólico significa tanto o modo erótico do passado puro quanto o imemorial da sexualidade. O simbólico é o fragmento do deslocamento, valendo por um passado que nunca foi presente.

O falo simbólico, como fragmento do deslocamento, é, em Lacan (1998), o significante – o significante fálico. Rabinovich, ao dissertar sobre o texto de Lacan “A significação do falo”, publicado em Escritos, diz: “O significante não é, pois, uma representação, assim como tampouco é representável; opera, condiciona por sua presença como pura diferença” (RABINOVICH, 2005, p. 23).

A pura diferença que também está presente no objeto virtual de Deleuze (2006e) é o que permite a elaboração de uma convergência com o Real, a tal ponto que ousaremos elaborar a formulação: o virtual é o que não cessa de não se escrever no atual. Pelo próprio modo como Deleuze (2006e) destacou o falo simbólico da teoria lacaniana, ele adquire em sua teoria a afirmação do devir enquanto deslocamento em relação a si mesmo. Por isso, em Lógica do

sentido, o filósofo (2006e) fala em “devir-louco”, entre as passagens, sobre a afirmação do

simulacro:

Em suma, há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado como o do Filebo em que “o mais e o menos vão sempre à frente”, um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e ao mesmo tempo, mas nunca igual (DELEUZE, 2006f, p. 264).

Poderíamos ainda substituir o virtual por acontecimento, fazendo-se mais pertinente, já que ele (acontecimento), como já foi dito, é o espaço sempre aberto, a brecha na qual permanecerá como não sentido, mas que causará o fluxo da linguagem num devir-louco.

O acontecimento, nessa articulação de Deleuze (2006e) com Lacan, não ocuparia o lugar dos buracos deixados no simbólico pelo Real, aquilo que foge à simbolização, à representação,

ao modelo, às cópias boas, e o que advém só poderia ser da ordem do simulacro, já que o modelo, estruturado no simbólico, foi desarticulado? O acontecimento passa a ser o nome para a parte não simbolizável de um evento, desencadeando, com base nele, imagens sem modelo, o simulacro.

Deleuze (1988, p. 34) segue: “O acontecimento pertence essencialmente à linguagem, mantém uma relação essencial com a linguagem, mas a linguagem é o que se diz das coisas”. Há aqui uma ligação com a leitura do filósofo sobre o Crátilo de Platão. Lembremos: “Simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com seu ponto de vista” (DELEUZE, 2006f, p. 264). O acontecimento não estaria na ordem do simulacro? Não seria uma diferença se efetuado em um estado de coisas? Para Deleuze:

Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna (apud ZOURABICHVILI, 2004, p. 6).

É esse momento presente da efetuação de um exprimível em um estado de coisas ou em uma linguagem que caracteriza o “duplo diferente das significações; de outro, das coisas” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 6). Temos aí a noção clássica de Deleuze (1996g) de que o virtual se contrapõe ao atual. O virtual como potência não pode ser reduzido a um atual. É como se ele se excedesse a qualquer estado de coisa. Assim, no acontecimento, o que escapa à representação, à linguagem como cópia, à simbolização, pertence ao virtual, ao passo que é o que faz funcionar a linguagem.

Pode-se estabelecer uma convergência por caminhos opostos com Lacan (1985), na medida em que o Real é aquilo que não é introduzido na linguagem, ao mesmo tempo em que consiste na sua causação para tentar cobrir os buracos (falta) deixados. Seja pelo excesso do virtual, seja pela falta marcada do Real, há sempre algo que força para o caminho de transgredir (simulacro) um modelo (cópia). Por isso, o simulacro é o devir menor, a diferença para Deleuze (2006e); diferença marcada pela falta, em Lacan (1985).

3.5 “O OBSERVADOR FAZ PARTE DO PRÓPRIO SIMULACRO”

Levemos ao extremo. Para Deleuze, “o simulacro inclui o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com seu ponto de

vista” (2006f, p. 264). Se o observador faz parte do próprio simulacro, ele não se constituiria nesse limiar, ou seja, nesse excesso que faz o autor afirmar que as cópias fantasmas são de outra natureza, destituindo-as por completo de qualquer semelhança com uma essência? O observador constitui-se como um sujeito intervalar, que se transforma e se deforma nas imagens autônomas, sem modelo.

A imagem que circulou no Facebook durante os protestos de junho de 2013 serve, na extensão deste trabalho, para ilustrar a aparência como simulacro na inversão deleuziana. A imagem reproduz traços de uma conhecida pintura com um novo significante inserido (o que não deixa de ser uma nova aparência): a pintura de quatro moedas de cinco centavos em realismo que impressiona, mas, logo abaixo, vê-se a afirmação (em francês) Ceci n’est pas vingt

cents. A bricolagem feita com base no quadro La trahison des images (1928-29), de René

Magritte, não é nem cópia da pintura (que por sua vez coloca em xeque a noção de representação da linguagem) nem cópia da realidade referida, a dos protestos liderados pelo MPL, cuja bandeira foi reduzida ao significante de R$ 0,20 na tarifa de ônibus.

Essa imagem cria um problema se articulada ao cerne do diálogo platônico. Na observação de Žižek (2008), ao recorrer ao antiplatonismo para analisar o filme Um corpo que

cai (1958), de Alfred Hitchcock:

Quando Platão descarta a arte como sendo “cópia de uma cópia”, quando ele introduz três níveis ontológicos (o das ideias, o de suas cópias materiais e o das cópias dessas cópias), o que se perde é o fato de a Ideia poder surgir apenas na distância que separa nossa realidade matéria ordinária (o segundo nível) dessa cópia. Quando copiamos um objeto material, o que de fato copiamos aquilo a que nossa cópia se refere, não é nunca o próprio objeto particular, mas sua Ideia (ŽIŽEK, 2008, p. 224, grifo do autor). O que Žižek (2008) traz à tona é, talvez, o que constituía o próprio fantasma para Platão, por isso tão presente em sua teoria, a de que a arte não compete, pela semelhança, com os objetos materiais, como se fosse possível uma cópia direta (o que não deixa de ser uma cópia da cópia, já que a primeira se assemelharia às Ideias). Contudo, ao contrário, “compete com a própria Ideia suprassensível” (ŽIŽEK, 2008, p. 224), que é o ponto observado por Lacan (1997b) em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

Sob esse significante econômico, um processo de individuação estabelece-se em diversas capitais e cidades traçando uma nova cartografia subjetiva, uma multiplicidade de sentidos (o que poderíamos também relacionar com o sujeito em Lacan, que emerge do deslizamento dos sentidos na cadeia significante, constituindo-se nesse espaço intervalar),

mobilizando desejos. Aqui, deparamos novamente com o ponto crucial da diferença entre Deleuze (2006e) e Lacan (1985): a do excesso e da falta.

Independentemente desse ponto de divergência entre o filósofo com Guattari e o psicanalista, o qual desencadeou toda uma literatura profícua, dizer que o observador faz parte do simulacro é o mesmo que dizer que ele se constitui no acontecimento, na brecha aberta, como já trabalhamos, que separa os efeitos das causas. Pela via lacaniana, essa articulação dá- se por meio da noção de que o sujeito se constitui no espaço intervalar da cadeia significante, cujo sentido dependeria da diferença entre significantes como se ele fosse expressão de algo que nunca cessa de não se escrever?

O retorno disso que nunca se escreve na pintura de Magritte à imagem Ceci n’est pas

vingt cents coloca em xeque a forma como, sobretudo, a grande mídia reduz os protestos sobre

o direito ao transporte urbano à cifra de R$ 0,20. Movimento de desterritorialização7, de sair do curso esperado, da lógica cristalizada, para abrir uma linha de fuga e distribuir-se numa multiplicidade de sentidos.

Seja na pintura de Magritte, sem nenhum original para afirmar que “Isto não é um cachimbo”, seja na imagem que deixa em aberto o fato de que a luta do MPL não se reduz à cifra de R$ 0,20, há apenas um jogo de cópias que não versa a respeito da semelhança de uma identidade, de um original, mas sim de uma “Ideia suprassensível” (ŽIŽEK, 2008, p. 224). Isso é o mesmo que dizer que o observador integra o simulacro, já que não é a semelhança a outro que caracteriza a cópia, porém a Ideia suprassensível, mobilizada por uma potência que não cessa de não se escrever ou que não se reduz a um atual (a própria aparência).

O que dizer dos protestos que se sucederam inicialmente pela redução da tarifa do transporte público, no entanto não demorou muito para ganhar volume e ocupar quase todo o país, dissolvendo-se numa variada desmedida de temas, sem liderança e organizados por meio

7 Em Cartografias do desejo, Guattari e Rolnik (1999) precisam bem as diferenças entre território,

desterritorialização e reterritorialização: “A noção de território é entendida aqui num sentido muito amplo [...]. Os seres existentes se organizam segundo território que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. [...] Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros de tribos e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a travessar, cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais. A reterritorialização consistirá numa tentativa de recomposição de um território engajado num processo desterritorializante. O capitalismo é um bom exemplo de sistema permanente de reterritorialização: as classes capitalistas estão constantemente tentando ‘recapturar’ os processos de desterritorialização na ordem da produção e das relações sociais. Ele tenta, assim, controlar todas as pulsões processuais (ou phylum maquínico) que trabalham a sociedade” (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p. 323).

das redes de relacionamento da internet? Da bricolagem à dispersão dos temas protestados, não estaríamos diante da multiplicidade que, em Deleuze (1988), seria a potência da diferença? Ou diante de uma falta irrepresentável, cuja manifestação se dá na repetição vertiginosa do que não se deixa representar? Quanto à multiplicidade, Silva (2002) novamente nos ajuda: “A multiplicidade não tem nada a ver com a variedade ou a diversidade. A multiplicidade é a capacidade que a diferença tem de (se) multiplicar” (SILVA, 2002, p. 66). Ora, seja na imagem despretensiosa que circulou nas redes sociais, seja na variedade de temas que se sucederam nos protestos – como em torno da saúde, educação, PEC 37 etc. –, a semelhança deve ser entendida como afirmação da diferença.

O que está em questão não é da ordem do modelo – como se a imagem selecionada sobre os R$ 0,20 se assemelhasse à pintura surrealista, ou que a sucessão de temas se assemelhasse a uma realidade sensível (em tom de denúncia pública, tendo um modelo como contraponto) –, mas sim, e o que é bem diferente, que a disputa, o confronto, o que advém com o que se coloca em xeque não se assemelham a um modelo ideal, porém à demarcação de novas linhas de subjetivação.

Žižek (2008) parece mesmo tocar em um ponto central: os simulacros competem com o Ideal suprassensível, ou seja, apontam para construções de um devir-outro. Em uma linguagem deleuziana, o devir-outro não deixa de ser um movimento de desterritorialização e reterritorialização, como o par virtual-atual: “Temos que pensar a desterritorialização como uma potência perfeitamente positiva, tendo um reverso, uma complementariedade na reterritorialização” (DELEUZE, 1995b, p. 68).